Luz sobre Portugal

Entrevista com Fernando Guerra [via Arkinetia]


O fotógrafo de arquitectura tornou-se o Midas dos arquitectos. Não são poucas as vezes em que basta que um bom fotógrafo oriente a sua retina de celulóide para uma obra para que esta seja conhecida em todo o mundo. Pelo contrário, uma obra de arquitectura não fotografada geralmente torna-se inadvertida. A presença de uma obra nos media depende tanto da sagacidade do fotógrafo como da qualidade do arquitecto.

Fernando Guerra é um dos mais importantes fotógrafos de arquitectura. Juntamente com o seu irmão Sérgio Guerra conduz a empresa FG+SG. As reportagens dos irmãos Guerra aparecem em livros e revistas de todo o mundo. A cada dia que passa cresce o seu prestígio que é disputado por vários dos arquitectos mais famosos.



O labor dos Guerra excede o campo específico da fotografia para arquitectura. Sem eles, a arquitectura e a cultura portuguesa contariam com muito menos espaço nos media. Os Guerra lançam luz sobre Portugal.

Os fotógrafos em geral falam muito e fazem-no com extrema correcção. A conversa com eles quase sempre é interessante e amena. São simples, são artesãos natos e obtêm o grau de artista competindo sempre com uma enorme quantidade de amadores e sem outras credenciais para além do seu próprio trabalho.

Fernando Guerra não é uma excepção.



A conversa poderia ter abordado a globalização, com Álvaro Siza desenhando os seus traços firmes sobre a exuberante Coreia diante dos olhos de todo o Ocidente, através do fotógrafo, quase em tempo real; ou poderia ter tratado da imperturbável pureza da cultura lusa, que oscila entre o imperial e o marginal sem alterar o seu orgulho nem a sua modéstia, valendo-se de alguns artistas das arestas afiadas para atrair de imediato a atenção do mundo inteiro. Mas a conversa tratou de paixões. Pela arquitectura e pela fotografia, que para Fernando Guerra são a mesma coisa. Tratou do humano imprescindível para que um sítio assim se torne, numa foto ou em Lisboa: a figura anónima que dá vida à arquitectura, as suas duas filhas que assinalam o ponto do planeta ao qual é sempre possível regressar.



arkinetia: Há quanto tempo és fotógrafo?
Fernando Guerra: Desde que me lembro. Transformou-se em profissão ou em ocupação a tempo inteiro sem que se tenha perdido o lado do prazer de sempre.
Qual é esse lado do prazer?
A procura por novas imagens que ultrapassam o mero processo documental.
Chegaste a trabalhar como arquitecto?
Acabei o curso no ano de 1993 e fui em seguida para Macau trabalhar como arquitecto, num atelier local.
Porquê Macau?
Era a ideia de estagiar num sítio diferente que me atraiu. Fui passar 6 meses e fiquei 5 anos. O difícil foi depois regressar.
Começaste em Macau como fotógrafo profissional?
Fotografava diariamente, mas principalmente pessoas. Tudo tinha de ser centrado à volta de alguém e não de algo. Tinha como objectivo fotografar e viajar para sítios diferentes do meu dia-a-dia, fora de roteiros, o que acabei por fazer no Vietname, Nepal, China, Tailândia, entre outros. (Pode-se ver algum desse trabalho em www.fernandoguerra.com, escolher "viagens").
Na altura não dava grande importância a fotografar edifícios, nem mesmo aqueles que desenhava ou em que participava. Acabava sempre por me desleixar e perder a hora certa para os fotografar.
Como qualquer arquitecto...
Exactamente.



Em 1999 regressas a Portugal. Com que planos?
Abri atelier e comecei a trabalhar em alguns projectos de arquitectura, participei em concursos públicos e também, paralelamente, dava aulas na universidade. Um percurso normal.
Mas ainda nada de fotografias de arquitectura...
Fui fazendo uma ou outra reportagem. Quando o Sérgio acabou o curso de arquitectura começou a trabalhar num atelier aqui em Lisboa. Com sua ajuda, fui-me organizando. Assim, foi possível consolidar o processo desde o início. Começamos a ter retorno e pedidos para novos trabalhos de alguns dos mais respeitados arquitectos em Portugal. Há dois anos deixei as aulas e o atelier de arquitectura, para me dedicar em full-time à fotografia.
Como funciona a sociedade com o Sérgio?
Passo a maior parte da semana a viajar. Ele, em Lisboa, assegura todo o sistema da FG+SG: contactos, novos trabalhos, entregas, a colocação das reportagens em revistas e livros, tanto nacionais como internacionais, e manter o últimasreportagens. Em qualquer sítio estou permanentemente ligado ao atelier por email e em comunicação em tempo real com o Sérgio.
São vocês que fazem tudo?
Não, embora seja uma equipa pequena, nós queremos mantê-la assim. Temos um designer e um editor para os livros. O essencial é manter a qualidade dos trabalhos feitos e prazos de entrega realistas para os mesmos. E também poder passar longos períodos de tempo fora com projectos menos interessantes financeiramente, mas muito importantes para o nosso percurso como atelier de imagens. Fotografo e edito os trabalhos sozinho, a ideia de meter alguém a fotografar comigo é no mínimo estranha. Provavelmente também seria para o cliente. Além de que gosto de fotografar em silêncio e com muita calma.



A sorte ajudou?
Penso que chegámos ao mercado na altura certa. A internet e o e-mail tornaram o mundo pequeno e as novas revistas e editoras facilmente tiraram partido desta globalização e da possibilidade de chegar rapidamente a outros conteúdos. Mensalmente colocamos uma série de projectos portugueses em diversas revistas como a Wallpaper, Architectural Record, a+u, Detail, Interni, Icon, entre tantas outras.
Dependes disso como artista?
A ideia da fotografia como forma de arte para uma elite intelectual consumir em acontecimentos sociais não me interessa. Por isso não sei se sou um artista, mas nunca me preocupei. Prefiro a mensagem que chega a todos, o compromisso com a ideia de comunicar e ser compreendido. A mensagem é o importante, não eu nem o meu trabalho. Acima de tudo, presto um serviço, sou o mensageiro. E a mensagem pode estar entrelinhas ainda que seja uma fotografia. Olhar uma obra é, antes do mais, um acto voluntário e uma selecção crítica. A fotografia é a concretização desse modo de ver particular, é a parte visível de um registo pessoal que se procura tornar instrumento de conhecimento da realidade.



As tuas reportagens mostram sempre diferentes horas do dia.
Geralmente contam a história de uma obra durante um dia: desde a manhã até ao pôr-do-sol. As transformações da luz, a envolvente que desperta, as pessoas a passar...
...tão características no teu trabalho.
Sim, sempre as pessoas. É o elemento de união entre o meu trabalho de sempre e o trabalho que faço hoje. Trago a reportagem de rua para dentro da arquitectura, a arquitectura vazia e estéril, não me interessa. O facto de estar tanto tempo na obra faz com que as pessoas se esqueçam de que estou lá e a naturalidade de quem lá está, não posada ou ensaiada, acaba por acontecer.
Então o teu trabalho é, em grande parte, uma espera?
Há que esperar, sim, que aconteça alguma coisa, porque surge sempre algo interessante, inesperado... seja numa rua ou dentro de uma casa. O simples facto de a luz mudar faz com que a fotografia também mude. O que era banal há meia hora, muda na fotografia e de repente resume o trabalho do arquitecto naquele sítio. A essência do projecto. Existem trabalhos que demoram algum tempo e que apanham diversas estações.
Por exemplo?
Trabalho actualmente num livro sobre uma cidade coreana perto de Seoul, chamada Paju. Através de imagens, relato o dia a dia das pessoas que ali vivem ou trabalham durante um período de meses ou anos. É um dos projectos mais apaixonantes em que me envolvi recentemente e sairá em livro daqui a aproximadamente um ano.



Qual consideras a tua cidade?
Lisboa. Cada vez mais, talvez por andar permanentemente em viagem. Gosto especialmente de regressar. Mas tenho consciência de que cada vez mais, vou precisar de viajar. Em Janeiro tenho trabalhos em Madrid, Barcelona, Londres e Bruxelas. Para quem não gosta de andar de avião, é curioso no mínimo. Vou juntando milhas para gastar em férias…
...que nunca chegam.
Não tenho férias nem fins de semana desde há quatro ou cinco anos, mas, para ser franco, não preciso muito. A nossa carreira é demasiado interessante para parar ou abrandar. Tento aproveitar as viagens que faço para poder olhar por fora da objectiva e relaxar. O melhor é quando os trabalhos se tornam de tal forma pessoais que acabam por se converter num escape.
Qual foi a tua última reportagem assim?
Apenas há uns dias atrás, Ainda não foi publicada (Ver a apresentação). Não sei que parte é trabalho e que parte é pessoal. Não sei... nem me interessa muito. Mostrar o lugar, a envolvente, pode ser igualmente apaixonante e enriquecer a reportagem ao conferir uma narração, um fundo ou um cenário.



OS ARQUITECTOS

Nem todos os fotógrafos de arquitectura são arquitectos.
Como arquitecto, tenho vantagem em relação ao fotógrafo tradicional de rapidamente perceber o conceito do projecto. Sei ler a obra, como sabe a maior parte dos arquitectos.
Acreditas que se pode fazer carreira como profissional nas duas áreas?
Por muito que nos custe reconhecer, enquanto arquitectos estamos presos em problemas que dependem dos clientes ou potenciais clientes, a sua vontade e disponibilidade financeira, as câmaras municipais e os seus inetrmináveis regulamentos e burocracia. Para mim é animador que o meu êxito ou o meu fracasso dependa só do que faço durante uma sessão e não do que não me deixam fazer. Sem desculpas. A fotografia permite-me concentrar no meu trabalho. A arquitectura não.
Também lidas com a má arquitectura?
Ainda bem que há quem faça boa arquitectura, ajuda-me a fazer a minha parte. Não sou crítico de arquitectura embora no meu trabalho faça um óbvio juízo critico, mas muito pessoal e filtrado. Sinceramente por vezes interessa-me mais o cliente e colega, do que a obra em si. Mas lido bem com projectos que não tenham tanto a ver com aquilo que desenharia. Não faria sentido de outra forma. Acima de tudo é um trabalho, um serviço, e a postura tem de ser sempre igual independentemente do arquitecto ou da obra.



És de uma família de arquitectos?
O meu pai é arquitecto e tornamo-nos de facto uma família com alguns arquitectos. Uma certa monotonia para ser franco. Quando conheço pessoas de outras profissões fico automaticamente interessado em conversar.
Relacionaste-te com arquitectos importantes por seres fotógrafo ou já conhecias alguns antes?
Não conhecíamos ninguém pessoalmente. Começamos com um primeiro trabalho quase por acaso para o Gonçalo Byrne e a partir daí foi tudo acontecendo de uma forma natural, uma bola de neve, com muito trabalho diário mas inicialmente sem grandes objectivos definidos. Talvez por isso, ter o trabalho reconhecido passado tão pouco tempo, saiba ainda melhor.
Escolhes os arquitectos com quem trabalhas?
Nunca temos metas desse género, tudo surge de forma natural e não programada, o que torna tudo muito mais interessante. Quando as coisas acontecem naturalmente sabem muito melhor. Ainda hoje sinto uma emoção especial, ao receber um telefonema do Álvaro Siza. Nunca pensei. E ainda bem.



Entrevista gentilmente cedida por Arkinetia.
Tradução de Miguel Coelho.