Projectos estruturantes [1] – Introdução

Comecemos por um exemplo simples. Imagine o leitor que tinha decidido ser promotor privado de um equipamento destinado a utilização colectiva. Consideremos, para efeitos deste pequeno exercício, um ginásio – porque não?
Ainda que possa ter desde o início um sonho quanto à qualidade, ao ambiente, aos equipamentos e serviços do seu ginásio, esse não será o seu ponto de partida. O leitor, que é um gestor precavido, resolve considerar previamente o local – ou locais – onde julga ser possível instalar o seu estabelecimento. Quantas pessoas habitam nessa zona? Quais os extractos sociais dominantes, o poder de compra, os hábitos de vida e de consumo dos seus potenciais clientes? E qual a concorrência já implantada nas proximidades? Assim, em função do apuramento destes dados e da realidade que o rodeia, bem como da sua capacidade para reunir capital – próprio e, eventualmente, a crédito – você começa a definir ideias precisas quanto ao investimento, à dimensão do espaço e aos custos que pode vir a assumir.
Quantos utentes espero ter? Que equipamentos terei de comprar – e quanto custam? Quantos trabalhadores terei de contratar? E qual a área adequada para garantir a sua funcionalidade? E, também, que custos de exploração poderei suportar – em material de apoio, gastos de energia, limpeza e demais despesas mensais? E na manutenção futura do espaço e das máquinas? E em publicidade? E impostos? E por aí fora…

O leitor, que está agora a pensar como um verdadeiro gestor e sabe o que quer, vai então estabelecer diálogo com um projectista – desejavelmente um arquitecto – que vai desenvolver o seu programa, os seus objectivos, as suas necessidades quanto ao ginásio que pretende gerir. É você que decide os termos deste caderno de encargos preliminar; e é porque estabeleceu esses princípios que os projectistas poderão ir ao encontro do que você realmente pretende. Desejavelmente, um bom arquitecto deverá não apenas satisfazer soluções pré-estabelecidas que possa ter como apresentar-lhe alternativas, ser aditivo, estudar consigo as melhores possibilidades técnicas – que você talvez desconheça – e outras formas de organização espacial e funcional, porventura mais eficazes, que de todo não lhe haviam ocorrido. Através deste esforço colaborativo, você e o seu arquitecto estão agora em condições para obter o melhor projecto possível.

Imagine agora o leitor que, em vez de ser promotor de uma obra de exploração privada, é antes promotor de um empreendimento público: um equipamento desportivo, um espaço cultural, uma escola, um centro de saúde. Entenderá o leitor que, por se tratar de uma promoção estatal, está isento de aplicar o mesmo detalhe e igual rigor na definição dos princípios que vão determinar tal empreendimento?
Poderá dizer-se: mas estes equipamentos, ao contrário do exemplo anterior, têm por objectivo uma função de interesse público e não se motivam pela obtenção de rentabilidade, de lucro. É verdade. Mas neste pensamento está igualmente um erro de partida. É que todos esses equipamentos são igualmente pagos pelo cidadão. Podemos dizer que não são pagos directamente – no ingresso, na propina, na factura médica – mas também eles são pagos, a todo o momento e na íntegra, através dos impostos de todos os contribuintes.
Mais do que isto, importa perguntar se será lícito promover empreendimentos – mesmo nos casos em que a sua rentabilidade seja forçosamente deficitária – sem considerar seriamente todas as possibilidades de optimizar os seus custos, eliminar desperdícios e adequar a sua estrutura às necessidades reais que ele virá suprir. Pelo contrário, são exactamente esses empreendimentos públicos – aqueles cujo funcionamento dificilmente será capaz de obter ganhos capazes de cobrir as despesas de exploração – que mais devem ser estudados ao pormenor. Eles representam, afinal, um esforço financeiro acrescido para o futuro da sua vida útil. O contrário seria dizer, por absurdo, que o Estado poderia aumentar impostos cada vez que construísse uma escola ou um hospital.

Aquilo que vamos observando no modo como os agentes públicos têm promovido obra pública, tanto a nível central como local, tem sido a enorme falta de cultura de gestão e de sensibilidade quanto ao rigor que lhes seria exigido no planeamento da aplicação dos dinheiros públicos. E um dos problemas centrais reside exactamente no entendimento que fazemos, colectivamente, do Estado enquanto entidade abstracta. Em boa verdade, o Estado só existe porque colectivamente o pagamos – e porque esses dinheiros são fruto da produção e do trabalho de muitos, quem exerce funções públicas devia ter sobre si a responsabilidade singular de utilizá-los com enorme rigor e seriedade.
Voltarei ao tema para reflectir sobre exemplos concretos e sobre a necessidade de alterar toda uma cultura de más práticas de gestão que se instalou nas últimas décadas neste domínio e que, pese embora o enorme problema de liquidez que aflige hoje o Estado Português, parece persistir até ao limite do insustentável, com consequências dramáticas para o futuro de todos.

Da blogosfera para a atmosfera

De que falamos quando falamos sobre os blogues? Como encarar essa constelação tão diversa de conteúdos que tem em comum o facto único de partilhar uma imensa infra-estrutura de conexões em rede?
Se falamos das vicissitudes da blogosfera portuguesa, então tratamos de um assunto bem específico e distante do emaranhado dessa rede interminável. Num panorama onde nunca se afirmou uma cultura ou uma ética blogue, o espaço online tornou-se na caricatura de uma horizontalidade sem referências que vai dando corpo a uma devastadora terraplanagem intelectual, um espaço de relativização absoluta onde tudo vale o mesmo e já nada tem valor. De resto, até o diálogo assertivo e recíproco se revela tantas vezes uma impossibilidade real. A blogosfera nacional alimenta-se do conflito, de uma dissimulação identitária que se exprime no acknowledgment do grupo, meras lógicas de rejeição ou colagem que nada têm de expressão intelectual ou troca de opinião. Nesse território opaco até a hiperligação vai sendo negligenciada, perdendo-se aquela que é uma instituição única da rede quando comparada com outros suportes de comunicação: a capacidade de estabelecer ligações.

A esse respeito, e sobre as particularidades com que o fenómeno dos blogues se instalou em Portugal, Pacheco Pereira apresentou um retrato da paisagem que nos rodeia:

Não é por se usar a mesma ferramenta de software que os americanos, brasileiros, japoneses e chineses que deixamos de ser portugueses, de levar para lá o nosso mundo exterior. Não somos ricos na Rede se somos pobres cá fora, não somos sofisticados em linha, se somos trogloditas cá fora, não sabemos mais e pensamos melhor nas páginas do Blogger do que pensamos cá fora, nos cafés de província, ou no Bairro Alto ou no Lux ou nas páginas dos jornais, não se é cosmopolita lá dentro se se é provinciano cá fora, não se é subserviente cá fora e independente no ecrã diante do computador, não se é burro cá fora e inteligente lá dentro.
O que se passa é que esse verdadeiro mostruário em linha, feito de mil egos à solta, revela mesmo a nossa pobreza, a nossa rudeza, a falta de independência face aos poderosos, grandes, pequenos e médios, os péssimos hábitos de pensar a falta de estudos e trabalho, de leitura e de "mundo", que caracterizam o nosso "Portugalinho". Nem podia ser de outra maneira. Com a diferença que nos blogues o retrato é mais brutal porque mais arrogante e mais solto, ou pelo anonimato, ou pela completa falta de noção de si próprio de quem, por poder escrever sem edição para os milhões de leitores potenciais da Rede, acha que é crítico de cinema instantâneo, engraçadista brilhante, analista político, escritor genial de aforismos, herói único da denúncia dos males do mundo, e portador de todas as soluções que só não são aplicadas porque os outros, a começar pelo blogue do lado e a acabar no fim do mundo, são todos corruptos, vendidos e tristes.
[Abrupto: A cultura de blogue nacional]

Pese embora a verdade destas palavras, será um erro descurar o poder dos blogues como veículos capazes de nos ligar a uma poderosa rede de troca de pensamento, tanto pelas imensas possibilidades de acesso a informação como pela oportunidade de projectar conteúdos “lá dentro” – um equívoco, aliás, que o próprio Pacheco Pereira não comete. Mais do que isso, será um erro maior ignorar que muitas das patologias que afectam a blogosfera são um prolongamento de fenómenos bem entranhados no país que existe “lá fora”.

Aquilo a que se refere o Nuno Grande não terá tanto a ver com esse universo abrangente que é, em boa verdade, a blogosfera – também de arquitectura, território onde dificilmente poderemos descurar coisas como o BLDGBLOG, o Subtopia, o City of Sound, o Life Without Buildings, o Lewism ou o Progressive Reactionary, entre tantos outros. Não esquecendo o blogue de crítica de arquitectura, pura e dura, redigido – e muitas vezes ilustrado – pelo Lebbeus Woods.

Essa blogosfera de arquitectura – infinitamente mais vasta e espalhada pelo mundo – dá corpo ao que de melhor tem a internet enquanto extensão possível e prometedora de uma economia baseada em conhecimento. Com formas e registos diversos, os blogues não estão necessariamente sujeitos ao imediatismo e apenas com um olhar restrito poderemos defender que estão isentos do escrutínio. Se eles se apresentam como plataformas de auto-publicação, estão igualmente sujeitos a formas espontâneas de referenciação e valorização, dentro e fora da rede.
Nada impede que nessa infra-estrutura se possa desenvolver o exercício da crítica e que isso possa ser feito em Portugal, como o demonstra João Lopes a propósito da cultura da imagem e, também, especificamente sobre cibercultura, no Sound + Vision. E nada impede, de igual modo, que isso possa ser feito em relação à arquitectura. Já aconteceu no passado com o Epiderme do Pedro Jordão, porventura o melhor blogue de arquitectura que se produziu entre nós.

O que decorre, no entanto, da argumentação de Nuno Grande é uma forma algo paternalista no modo de abordar a blogosfera – ou, dito de outra forma, os blogues – sem se considerar a complexidade que o próprio termo encerra. Em qualquer disciplina, fazer crítica dá trabalho... pressupõe investigação, leitura, consulta de fontes, entrevista, debate, confrontação, refere. Todas estas coisas se podem encontrar em qualquer dos blogues atrás citados. É certo que os blogues não estão sujeitos aos constrangimentos de uma supervisão editorial - com toda a responsabilidade pública que esse exercício encerra - não estando por isso dependentes do seu escrutínio prévio. Não sendo assim formas institucionalmente creditadas de certificação de conteúdos, os blogues apresentam um enorme potencial para o diálogo assertivo e directo - não me referindo aqui ao "comentário" mas ao tipo de discurso de escrita que um suporte de expressão pessoal permite, muito diverso daquele que podemos encontrar no domínio da publicação escrita.
Os blogues, para o bem e para o mal, não têm monitores e não respondem perante ninguém. É essa a sua força e, como será fácil compreender, a sua fraqueza, mas a sua importância reside nisso mesmo: no facto de viverem numa posição exterior face aos outros suportes de comunicação. Acima de tudo, os blogues exprimem-se com uma voz pessoal, têm um ponto de vista. No seu imediatismo, na sua subjectividade, são um exercício cheio de potencial para estabelecer ligações e escrutiná-las num espaço público, imediato e, tantas vezes, contraditório.

Não devemos esperar que os blogues se tornem num espaço alternativo, em competição com a publicação escrita e, muito menos, com a crítica. Mal daqueles que abandonem a pesquisa de saber, nos jornais, nas revistas, nos livros, e julguem poder construir conhecimento nos posts de um blogue. Mas estes podem complementar a transmissão e reflexão de conteúdos, permitindo, quando sucedidos, criar uma cadeia de comunicação na sua pequena comunidade de ligações, aberta a todos. Deveríamos assim, bloggers e não bloggers, reconhecer os pontos fortes de uns e de outros, e contribuir para melhorar a rede de pensamento que a nova paisagem digital permite estabelecer.
* * *

No que ao meu blogue se refere o texto original do Pedro Machado Costa, não deixo de sentir alguma perplexidade por se fazer apontamento de um desabafo ocasional e pouco recorrente como exemplo dessa incapacidade de estabelecer um diálogo mais sério na blogosfera, neste caso em torno da arquitectura. A nossa blogosfera é rica de exemplos em que o desabafo constante serve de registo e imagem de marca a formas de expressão pessoal.
Tendo em conta o contexto da discussão, talvez importe observar que este blogue não é um espaço de crítica de arquitectura, antes um espaço de opinião e divulgação de conteúdos. Nos seus bons momentos, A Barriga de um Arquitecto serviu como reflexo das minhas aventuras pelo mundo online, motivado unicamente por encontrar bom material e partilhá-lo. De resto, serve para falar dos temas que me interessam e preocupam, seja o planeamento territorial, o urbanismo, a política de obras públicas, a gestão urbanística, as práticas de licenciamento, a cultura da imagem e, até, a crítica, entre tantas outras coisas. E, já agora, dos ecos de uma trienal.

Como blogger sei bem do que fala o Pedro quando se lamenta da falta de reciprocidade que encontra nas suas reflexões. Talvez tenha razão o autor do Ma-Shamba quando escreveu, em tempos, que um blogue é uma ilusão, a ilusão de ser lido. Ou talvez sejam temas que não motivam o interesse dos outros arquitectos bloggers, ou de quem escreve nas revistas da especialidade. E eu não tenho de me queixar, pois encontro igual interesse nas coisas que escrevem e, evidentemente, preferem.
Não é pelo facto de, tal como o Geof Manaugh, escrever um blogue, que tenho a ilusão de estar a fazer um BLDGBLOG. Como não é pelo facto de organizarmos conferências, convidarmos figuras de renome internacional, e falarmos ao seu lado, que estamos, de igual para igual, a fazer e a pensar sobre as mesmas coisas. Escrevo um blogue porque não sei passar sem ele. E que por isso me entrego à meritocracia subjectiva da blogosfera, perdendo-me, e por vezes encontrando-me, nessa implacável forma de selecção natural que é o mundo nebuloso da rede em que vivemos.

Arquitectura do défice

Dois terços da minha vida profissional foram passados no Estado. Hoje, uma grande parte do meu trabalho na função pública – talvez mesmo a mais importante – consiste na produção de programas e cadernos de encargos de concurso para a elaboração de projectos de arquitectura.
Aquilo que eu e a equipa com que trabalho procuramos fazer é detalhar, tanto quanto possível, os objectivos, as necessidades, mas também todas as contingências que enquadram uma determinada obra. Por vezes esse esforço obriga a avançar um pouco pelo projecto adentro, desenvolvendo uma planificação conceptual ao nível de estudo prévio ou anteprojecto, mas mais importante do que isso, o elemento crucial reside em estabelecer o equilíbrio correcto entre o desejo daquilo que se pretende ver projectado e o enquadramento objectivo da gestão funcional e financeira em que a obra se deve vir a desenvolver.
Diria, em resumo, que a parte mais importante do meu trabalho consiste em poupar dinheiro ao Estado ou, pelo menos, garantir uma adequada aplicação dos seus meios financeiros na procura em obter a melhor qualidade possível. Não é um trabalho fácil e aprender a fazê-lo bem feito tem sido uma tarefa de vários anos. Trabalhar com as contingências é um acto contra-natura para os arquitectos. Em geral procuramos encontrar modos de fugir ao que chamamos de condicionantes. A minha missão tem sido fazer o oposto. Abraçar essas condicionantes e fazer delas uma parte determinante do encontro das soluções de arquitectura.

Uma das maiores fragilidades na promoção de arquitectura (e urbanismo) por parte das muitas entidades estatais – ministérios, autarquias e demais instituições públicas – reside na programação débil dos projectos que desenvolvem. Poucos parecem compreender que o projecto de arquitectura é algo que começa muito antes de uma concepção formal ou mesmo de um organigrama de funções. Que o acto de promover algo depende de uma necessidade profunda de contextualização das suas necessidades, da procura, das tendências da comunidade, do espaço e da sua utência futura. Para que essa contextualização seja possível é fundamental que os promotores desse processo, aqueles que o influenciam e que tomam decisões, sejam, de alguma forma, parte da equipa. Se não há bons projectos sem bons arquitectos, tal é igualmente impossível na ausência de bons promotores que conheçam a fundo aquilo sobre o qual estão a decidir.
Desconheço a atenção que os outros órgãos do Estado dão a este trabalho e o rigor com que o desenvolvem. O que observo são repetidos exemplos de desproporção dos investimentos relativamente às capacidades operativas que apresentam na sua vida funcional. Quanto maiores as obras, mais dramáticas se tornam as consequências financeiras da sua execução. Infelizmente, também parecem ser os maiores investimentos os que mais latitude oferecem aos seus projectistas. No vazio programático, os arquitectos tomam por vezes decisões que consomem recursos sem fundamentação racional e que resultam na gestão difícil, tantas vezes deficitária, da sua vida futura.

Podemos considerar que a responsabilidade derradeira por este problema pertence, em exclusivo, aos promotores, aos decisores públicos. Mas podem os arquitectos, enquanto classe, apresentar-se perante a sociedade como observadores inocentes deste fenómeno? A ideia que a boa obra, formal, de arquitectura, tudo justifica, é afinal uma ilusão que vamos alimentando mais do que quaisquer outros. Eu, pelo menos, ainda não ouvi ninguém queixar-se.

Escrita nas paredes



Expression é uma instalação interactiva do Studio 2Roqs, uma projecção de mensagens enviadas por SMS através das faces de dois edifícios. A instalação esteve exposta numa praça de Bordéus no passado mês de Maio, fazendo lembrar a Dreaming Wall, aqui publicada anteriormente. Descoberto no blogue espanhol Flores en el ático, também com versão tumblelog a não perder.

Nonsense

O texto do Tiago Mota Saraiva é uma tolice. Assim mesmo. Falo com a tranquilidade de quem não tem nada a ver a trienal. Mas aquela demagogia sobre o preço dos bilhetes é, à falta de melhor expressão, uma load of bull. Façam o trabalho de casa e comparem com o custo de participação em qualquer conferência de qualquer evento semelhante, no panorama europeu, e terão algumas surpresas. O Tiago podia, já agora, ter tido o rigor de explicar que o preço de inscrição é substancialmente mais baixo no caso de estudantes e estagiários. Mas compreendo que se estivesse incluído um concerto dos U2 já ninguém se queixava.
Quanto ao architect’s belly showroom – lolada – não comento, porque aí até é capaz de ter alguma razão…

O sistema (está bem e recomenda-se)

Quando a realidade que nos rodeia assume contornos dramáticos – como os da actual crise, por exemplo – surgem reacções de perplexidade. Como foi possível chegar até aqui? Tais reacções esquecem o óbvio: um encadeamento de causas, factos e decisões que só poderiam conduzir a estas consequências. E que tais acções servem os interesses de um grande número de pessoas.

O filme brasileiro Tropa de Elite apresenta, a certa altura, um mosaico do negócio do tráfico de droga. É mesmo o maior motivo de interesse de todo o filme. Ali se retratam três mundos diferentes: os gangues do morro, a corrupção policial e a classe média-alta do Rio, em particular do meio universitário. Aquilo que nos é dado a ver é um sistema em perfeito funcionamento, uma cadeia de interesses de diversos intervenientes que actuam de forma convergente. Os motivos para tal são muito diversos, percorrendo um espectro que vai da ambição de poder à necessidade de sobrevivência. Mas nenhum desses “actores” – traficantes, polícia, jovens – é, por si só, ideólogo da violência. O crime brutal é uma consequência colateral da realidade do tráfico.
Outro aspecto interessante é o papel da força policial, o BOPE, naquele contexto. Não está em causa se a sua acção é certa ou errada; por vezes é mesmo altamente questionável. Mas ao actuar fora daquela pirâmide de interesses, este quarto actor choca com todos os outros fazendo despoletar uma inusitada violência. Eles são a anomalia na ordem estabelecida.

O que quero dizer é que quando olhamos para a pobreza, as desigualdades, as perplexidades que nos rodeiam nas actuais circunstâncias, esquecemos que todas essas consequências são o sub-produto de um sistema que funciona perfeitamente. Nele se estabeleceu uma rede de interesses que actua de forma colaborante e em que todos, de uma forma ou outra, participam. Partidos políticos, empresas, banca, estado e funcionários, corporações, ordens, sindicatos. Podemos não gostar das consequências que esse sistema produziu. Mas só uma enorme desatenção pode motivar qualquer perplexidade por algo que só podia ser evidente. O Portugal de hoje é um país em que ninguém está disposto a fazer concessões, seja em que circunstância for. Ninguém quer perder o seu estatuto, o seu poder, o seu conforto, a sua paz de espírito. E quase todos contribuíram num enquistar de interesses, optimizando as suas circunstâncias sem nunca medir os efeitos da sua acção individual.
Num tempo em que se fala de responsabilidade deveríamos questionar se a auto-regulação é possível em democracia. É isso que está em causa. Será possível à nossa democracia corrigir internamente os seus desvios, as suas disfunções, contra o próprio sistema que entretanto se estabeleceu? Ou estaremos condenados a mudar, de rojo, pela insolvência absoluta? As perspectivas parecem, hoje, pender para o lado da insustentabilidade, pondo em causa as noções de sociedade e democracia que pensávamos estar a construir.
Podemos não gostar do mundo em que vivemos. Mas não podemos dizer que estamos surpreendidos com tudo o que está a acontecer.

Freud, o boneco de acção



Enquanto não passamos para coisas mais sérias, que tal buscar um pouco de entretenimento brincando com esta – a derradeira – colecção de bonecos de acção. Afinal os intelectuais também podem ser geeks. Via Coudal.