“Direita é rigor” e outras histórias



Naquela que é a dimensão económica do debate político a direita conquistou um território determinante ao fazer passar uma ideia muito simples: “direita é rigor”; a esquerda pode ser idealismo, lirismo, poesia e bons sentimentos, mas para grande parte do público é sinónimo de falta de rigor e ausência de realismo.

A ascensão desta ideia teve como pano de fundo o desencanto dos cidadãos para com a Política, por um lado, e a forma hábil como a direita foi adoptando uma linguagem de formulação técnica e de aparência apolítica. As ideias passaram a sustentar-se não como produto de vontades mas em função da sua validade académico-científica. Assim, também o debate transitou do campo do confronto das ideias para se dirimir no plano da construção da própria realidade. E é essa “realidade” – de que tão bem nos fala Pacheco Pereira – que é fabricada laboriosamente todos os dias por comentadores e consultores de comunicação que, nas televisões, nos jornais, nos blogues e nas redes sociais, trabalham o desfile selectivo de índices parcelares e variações homólogas que pincelam o pequeno quadro do mundo que lhes importa relevar, ignorando tudo o que não tem lugar nas suas narrativas.

Em boa verdade, o predomínio do económico no debate político acabou por favorecer uma profunda iliteracia económica junto da opinião pública. Uma iliteracia fundada em ideias simples, de “senso comum” que “todas as pessoas percebem”. Que fazem sentido no mundo do dia-a-dia mas que são absurdos no mundo real da política monetária e financeira.
Comentadores que falam de economia com metáforas da economia familiar, da dona de casa que gere bem o lar, de que não se pode gastar mais do que se ganha. “Isto é uma coisa que toda a gente percebe!”.

Dizer que “quem não paga as dívidas é caloteiro” (como dizia em entrevista Marinho e Pinto há alguns meses) todos compreendem. É uma ideia que passa numa frase. Explicar que vivemos num sistema financeiro em que o dinheiro é criado sobre a forma de crédito já demora cinco ou dez minutos. É preciso fazer referências, citar documentos, para a partir daí ponderar sobre uma complexa teia de implicações que nada tem de senso comum.

Explicar o que foi a expansão monetária das últimas quatro décadas e a bolha exponencial do crédito da década pré-2008 demora outro tanto. Como dá trabalho explicar o absurdo que leva países em regime de moeda fiduciária a submeterem-se a financiamento exclusivo junto da banca privada, ou do absurdo de uma Europa cujo banco central se permite insuflar 1.2 biliões de euros em quantitative easing para o interior do sistema financeiro privado, mas que para alavancar um plano (Juncker) de estímulo económico obriga os países a financiarem-se junto da banca comercial, através de emissão de mais crédito, logo com aumento de dívida pública ao sector privado.

O “rigor” e o “realismo” que nos impõe a corrente política dominante da Europa tornou-se afinal uma repressão do pensamento, uma submissão a uma construção que nada tem de lógico ou racional, uma construção que é apenas uma de muitas alternativas possíveis. Um sistema distorcido pela desregulação financeira, que perverteu as regras do próprio capitalismo e subjugou a sociedade ao poder financeiro, através da dependência do crédito como base do seu modelo de crescimento.

A Europa que se nos revelou nas últimas semanas só pode deixar tranquilos aqueles que vivem na “realidade” dessa iliteracia. Aquilo a que assistimos foi ao cair de uma máscara, deixando a descoberto a verdadeira face do poder. E ficámos a saber – se dúvidas ainda persistissem – que a União Europeia é uma estrutura que defenderá, a qualquer preço, o mesmo sistema financeiro que gerou monstruosas bolhas de endividamento, de que foi o principal beneficiário.
Os cidadãos podem falir, as nações podem falir, mas os bancos não. Para as pessoas e até para os países não há risco sistémico. Afinal, “se um sair, ficam dezoito”.

Está escrito nos tratados: “A União é fundada nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do primado da lei e do respeito pelos direitos humanos”. Ao lermos hoje estas palavras, não podemos deixar de ser invadidos por um profundo e doloroso desalento. E talvez um dia, mais cedo do que imaginamos, sejamos confrontados com essa pergunta: como foi possível destruir tanto por tão pouco, em tão pouco tempo.

Isto não é jornalismo


Image credits: Bobby Becker.

A célebre reportagem de José Rodrigues dos Santos sobre ”Os Gregos”, transmitida pela primeira vez em Janeiro deste ano, devia ser um caso de estudo para o jornalismo televisivo português. Trata-se de uma peça que enferma de diversos erros formais conhecidos no que respeita a um retrato fiel e rigoroso dos factos: falácias lógicas e truques de retórica que transmitem uma mensagem tão provocatória quanto perigosa.

O tom grave com que Rodrigues dos Santos dá início à peça cedo se dilui num relato maniqueísta da realidade, dando conta de diversos casos notáveis para elencar um retrato moral da sociedade grega. O primeiro exemplo dessa narrativa é-nos contado dando conta do suborno que “muitos dos Gregos” fazem a médicos corruptos de modo a obter uma declaração fraudulenta de invalidez para beneficiar de “mais um subsidiozinho”. A este seguem-se outros casos igualmente sensacionais tais como um programa estatal não quantificado de “férias para os pobres” ou as casas de Atenas com piscina não declarada para efeitos fiscais, para derivar numa conclusão mais abrangente sobre “os gregos”, “o povo da zona Euro que mais foge aos impostos”.

Aqui podemos testemunhar dois importantes mecanismos de retórica destinados a conduzir a audiência a uma conclusão pré-determinada. O jornalista começa por estabelecer um conjunto de cenários que envolve invariavelmente grupos minoritários de cidadãos para derivar, por correlação, na culpabilização da sociedade grega na sua generalidade. Trata-se de uma falácia de composição assente na presunção de que se determinados factos são verdade para uma parte de um todo, devem ser igualmente a verdade do todo.
Em segundo lugar encontramos uma falácia de falsa equivalência. Rodrigues dos Santos denuncia a corrupção e a evasão fiscal como causas centrais da crise económica grega, ignorando a complexa teia de factores que conduziu ao sobreendividamento do país na década anterior à crise. Também aqui estamos perante uma simplificação argumentativa em que se um fundamento é verdadeiro, nenhum outro tem de ser invocado.

A este respeito o jornalista acaba por desenvolver a sua argumentação “em directo”, com uma frouxa análise, referindo de passagem “o colapso do Lehman Brothers em 2007 que pôs a nu um conjunto de problemas, designadamente os problemas da arquitectura do Euro” – uma frase incompreensível enquanto tradução de um qualquer pensamento político-económico.
Mas Rodrigues dos Santos vai tão longe quanto justificar que “o que a Troika diz é vocês têm um bolso roto e nós estamos a dar-vos dinheiro, e o bolso está roto de onde o dinheiro desaparece logo. Vocês têm de coser o bolso e, portanto, se nós parármos de fazer pressão vocês vão parar de fazer reformas”. Aqui entramos já no domínio da opinião e de um pensamento político bem definido. Frases como “nós estamos a dar-vos dinheiro” ignoram grosseiramente a complexidade dos mecanismos financeiros que foram postos em prática pelo programa de intervenção externa da Troika e os fins a que se destinaram. De igual modo, sobre aquilo que se entende por reformas e sobre os seus resultados, nada é dito.

Prossegue depois para o discurso da culpabilização: “Os Gregos defendem que a Europa é que tem de resolver os problemas. Não lhes cabe a eles resolver estes problemas. (…) Eles entendem que, embora reconheçam que hajam problemas sérios na economia do seu país, não são eles que têm de fazer o esforço para os resolver. Tem que ser a Europa a resolver tudo por artes mágicas”. Seria interessante podermos ouvir o testemunho directo d'"os gregos" que defendem este ponto de vista.
O ponto final do discurso odioso de Rodrigues dos Santos revela-se em pleno na sua conclusão final: “E sobre a pobreza na Grécia é importante acrescentar uma coisa. A Grécia é um país que é mais pobre do que Portugal, mas onde as pessoas durante muitos anos ganhavam mais do que em Portugal”- uma argumentação que prossegue na linha mais básica do incitamento à inveja, alheia ao enquadramento geopolítico do país e à situação laboral que hoje se vive.

Em tudo isto podemos encontrar tácticas bem conhecidas de distorção informativa que devem ser denunciadas. Estamos afinal perante um testemunho que contribui para pintar um quadro genérico junto da opinião pública, representando os gregos como os vilãos de uma história de modo a validar um juízo moral maniqueísta, do bem contra o mal, que legitima a intervenção punitiva sobre um país, independentemente das consequências – e de quem as sofre. De resto, quase tudo aquilo que ali é revelado poderia ser dito, com exemplos mais ou menos próximos, sobre nosso país. Os leitores do Bild haveriam de gostar.

Diz que é um programa sobre economia



A Cor do Dinheiro, “programa semanal de debate sobre assuntos económicos e financeiros” da RTP Informação, dedicou o seu ultimo episódio ao tema da subida de preços no imobiliário. O jornalista e apresentador Camilo Lourenço deu a conhecer o enquadramento do tema interrogando-se sobre os eventuais efeitos da recuperação económica, da disponibilidade de emissão de crédito por parte da banca, da influência do turismo ou do interesse dos cidadãos estrangeiros em adquirir imóveis em território nacional.

Tendo como ponto de partida um diálogo com um consultor na área do imobiliário, o programa é um caso exemplar da superficialidade com que o fenómeno da construção é tratado nos meios da especialidade. De todo omisso está um olhar abrangente sobre a natureza sistémica que a crise de 2007/2008 teve sobre este sector da economia, em particular quanto aos mecanismos financeiros que sustentaram a evolução excepcional que se registou em Portugal desde 1970.
Igualmente ausente está uma qualquer reflexão sobre os efeitos que a injecção de liquidez resultante do programa de quantitative easing levado a cabo pelo BCE está a operar na banca comercial, favorecendo a valorização de activos no domínio imobiliário – a partir do qual poderíamos reflectir sobre a sustentabilidade da subida de preços enquanto reflexo de um efectivo crescimento económico.

Temos assim um diálogo travado com a desenvoltura própria dos “homens do meio”, um patamar acima de um vendedor de automóveis e muitos furos abaixo de um qualquer pensamento académico-científico sobre economia. Somos brindados com um chorrilho de lugares comuns, do país de brandos costumes – “que dá para controlar” (sic) – e do bom clima, culminando numa visão optimista assente em considerações dignas da sabedoria à Futre. Ao que parece estão a vir charters de Chineses da China para comprar casa em Portugal por causa desse grande pilar estratégico do nosso crescimento económico que são os vistos Gold.

De passagem, o consultor Pedro Santos refere um aspecto que vale a pena reter: em Lisboa, a procura de imóveis para investimentos no domínio da reabilitação parece estar a exceder a oferta disponível. Este facto devia motivar uma reflexão profunda, que fica igualmente por fazer, por dar conta do efeito que a paralesia do mercado da construção pode estar a ter no aumento do preço dos imóveis – revelando-nos, afinal, que tal fenómeno pode não decorrer de uma efectiva vitalidade do mercado mas antes dos efeitos inflacionários da compressão da oferta.
A verificar-se, estaremos a confundir com retoma aquilo que poderá não passar de uma distorção de preços, impeditiva para o seu ajustamento em baixa, lesiva para o futuro da economia da construção – aspecto particularmente grave para a aposta tão necessária no domínio da reabilitação urbana.

Sobre este tema ler também: Alguns dados para compreender a crise da construção em Portugal, A layer zero da arquitectura e do urbanismo (pensamentos sobre a criação de dinheiro e o problema das cidades) e Uma história de sobreaquecimento da economia.

Ground Z€ro



May your choices reflect your hopes, not your fears.

— Nelson Mandela

Uma interrogação que vale a pena colocar nos dias que correm.

Assistimos em 2008 à maior crise financeira da nossa geração, a que se seguiu um ataque especulativo aos títulos de dívida pública dos países mais frágeis da zona Euro.

Não se trata aqui de ignorar os erros dos países que se colocaram nessa situação – políticas de expansionismo económico levadas ao limiar da insustentabilidade. Mas a interrogação persiste.

Que diálogo despoletou esta crise no seio das lideranças europeias? Que discussão teve lugar no contexto do projecto europeu e da união monetária: do que aconteceu, dos erros cometidos – e por quem? Que lições foram extraídas afinal desta crise?

Como foi possível que à maior crise das nossas vidas não se tenha seguido um debate europeu profundo, alargado, plural, sobre o projecto da união e da moeda única? Pelo contrário, prevaleceu o dogmatismo da letra dos tratados, das regras vigentes, do sistema monetário, da salvaguarda das instituições financeiras, a qualquer preço. Da intocável ordem estabelecida.

É esta paz podre ideológica que veio ser perturbada por esses desalinhados, irreverentes, impreparados, ingénuos líderes gregos.

E assim continuam as instituições da união a fugir de uma discussão sobre o processo que conduziu à crise das dívidas soberanas na Europa, fruto de bolhas de endividamento público acentuadas no período do euro, em particular entre 2000 e 2008 – que, importa não esquecer, as orientações europeias apoiaram até 2010.

O caso grego é paradigmático – tendo, em muitos aspectos, paralelismo com o caso português. Um processo de endividamento que sobreaqueceu a economia, com taxas de crescimento aceleradas que corresponderam, naquele país, a aumentos de nível de vida desconformes com a média europeia.

Alguns comentadores analisam a bolha de endividamento da Grécia concluindo que o pesado processo de ajustamento fez apenas a economia do país regressar ao ponto em que estaria se tivesse tido um crescimento normal, lento e gradual, e não sobreaquecido pelas políticas de expansionismo económico.

Mas esta conclusão enferma de um erro. A Grécia não voltou ao ponto de partida, onde devia estar. Voltou ao ponto em que estaria, mas a que se soma o peso da dívida entretanto constituída pelo estado grego. Dívida de dinheiro que, entenda-se, já lá não está – mas que os gregos agora terão de pagar, com a gravitas de uma exigência moral.

O ponto é este: se a Europa das instituições tivesse perante este processo um papel de genuína seriedade – uma postura moral – seria a primeira a exigir como ponto prévio à intervenção externa auditorias a esses processos de endividamento.

Claro que, se o fizesse, viria ao de cima que tais bolhas foram promovidas por governos dos dois principais blocos políticos da UE. Viria ao de cima que essas bolhas alimentaram dívidas que beneficiaram países como a França e a Alemanha, que financiaram, através da sua banca privada, esses processos – um bom exemplo são as aquisições significativas no campo militar levadas a cabo pela Grécia, exactamente à França e à Alemanha.
E saberíamos então quem gastou o dinheiro e para onde ele foi.

Mas esse é um tema de que esta Europa não quer sequer ouvir falar. A ideia de auditoria das dívidas é repudiada e catalogada nos principais media como uma agenda de radicais.

E os gregos, como ficam. Ficam com a “canga” da dívida, com pesados cortes de salários e pensões, com desemprego de um quarto da população, com uma geração jovem estilhaçada pelo desemprego, com uma vaga de emigração de quadros superiores, com um aumento de pobreza que leva milhares de cidadãos caídos da classe média para a condição de sem-abrigo, com um extenso programa de privatizações levado a cabo em circunstâncias de emergência lesivas para o Estado, com sistemas públicos como a saúde à beira do colapso, e uma economia eternamente incapaz de crescer.

Onde está então a solidariedade da Europa – sabendo nós agora que a parte principal dos fundos de resgate foram dirigidos á transferência dos títulos de dívida grega (que financiaram a bolha) do sector financeiro para o sector institucional – onde temos, por exemplo, o sistema de pensões grego, que foi fortemente atingido pelo "perdão" de 2012.



É este o outro lado da história que os líderes europeus recusam reconhecer, alimentando o conto de fadas da “solidariedade” e da “generosidade” dos programas de assistência – assim incitando à divisão irremediável dos povos da Europa.

É a isso que importa dizer “não”.