[o direito à felicidade]

Terça-feira



Quando oiço alguém reclamar pelo direito à felicidade recordo-me do meu antigo avô paterno. Aos oito anos de idade levantava-se bem cedo na madrugada e ia passear as cabras pelos montes daquelas berças perdidas para lá de Castelo Branco. Percorria as veredas descalço mesmo quando chovia e no bolso talvez levasse um pedaço de pão e uma cebola, os dias passando e com eles uma infância que nunca chegou a ser.
Naquela época as mulheres e os homens não reclamavam pelo direito à felicidade. Ali, nos dias gelados do Inverno, as pessoas já se davam por satisfeitas se não sofressem as agruras da fome.

Menos de cem anos passados sobre aquele tempo e tornámo-nos num povo com outras expectativas. Todos reclamamos direitos, andamos todos à procura de alguma coisa. Está triste: veja uma comédia. Está aborrecido: passeie no shopping. Está estagnado: compre um carro maior. É pobre: recorra ao crédito. É infeliz: foque-se em felicidade e alegria, seja budista ou fale com os anjos... e pelo caminho, passeie no shopping e recorra ao crédito.

O problema da felicidade é que é uma coisa difícil de definir. Ao contrário da qualidade de vida, que é quantificável, a felicidade tem mais que ver com o modo como individualmente nos relacionamos connosco próprios e com o mundo. Por isso encontramos pessoas cheias de tudo e perfeitamente vazias de espírito, miseráveis à procura de andar à procura. E outras vezes damos de caras com alguém que passou a vida a passear cabras pelas veredas de um monte e por aqueles caminhos encontrou a felicidade.

Uma coisa que me aborrece é a sedução sazonal que a nossa sociedade ocidental tem pelo budismo ou outras formas de “espiritualidade”. De tempos a tempos todos se descobrem budistas (light), lêem livros, inscrevem-se no ioga, fazem meditação. Ora quem já tenha contactado com o mundo de onde é originária aquela doutrina compreenderá facilmente que o budismo é incompatível com o emprego das nove às cinco, com a experiência do transporte pendular dos subúrbios, com a poluição (sonora, ambiental, visual) das nossas cidades, com a fast-food e acima de tudo, com o nosso entendimento de satisfação pessoal.
É que lá nos sopés do Anapurna, onde o silêncio é total e o vento nos enche a cara, todos nos tornamos budistas sem esforço. Todos compreendemos que naquele vazio só o presente faz sentido. Ali, onde nada mais se deseja e nada se ambiciona, nada se sofre.
Ao contrário disto nós os ocidentais não suportamos o tédio. A rotina é o inimigo a abater, todos queremos fazer coisas novas, conhecer outras pessoas, comprar mais sapatos ou ir à praia. Mas na praia não nos basta a sensação da areia nos pés e o balançar do mar. Tudo nos aborrece se não jogarmos soft-ball ou comprarmos um gelado, beber um drink na esplanada e depois mergulhar à bruta. A felicidade está ali, presa de pára-quedas empurrado num barco a motor, a emoção, a aventura, o entretenimento. O destino é sempre algo que temos que fazer, que comprar ou que ser. O destino nunca é este momento, aqui mesmo, agora.

Eu não sei o que é a felicidade. Penso que será um equilíbrio que resulta da aceitação da impermanência das coisas. Os budistas encontraram conforto na aceitação do ciclo do renascimento, que tudo é assim para voltar a ser assim e que nada voltará a ser o mesmo. Mas nós temos outro caminho a percorrer, é aqui na voragem absurda das luzes e dos outdoors que temos de encontrar o sentido de tudo isto, no ruído do trânsito e nos pequenos silêncios que vamos descobrindo. É aqui que temos de encontrar a nossa vereda dos montes e buscar lá longe uma clareza no olhar. Algures num lugar profundo, dentro de nós próprios.

2 comentários:

  1. No seu texto - aliás fantástico - em que critica a busca de "satisfação pessoal" (versus "felicidade") acabou por aproximar-se "perigosamente" da visão budista que se baseia na impermanência e, por consequência, no desapego.
    Acho que nenhum budista, mesmo que seja "light" - quer dizer "sem açúcar" - encontra "conforto" no ciclo do renascimento. Sabe-o bem:)
    E rótulos à parte, o que interessa é - como acabou de dizer - encontrar a "nossa vereda".
    Desejo que a sua seja pouco acidentada e lhe dê motivos para sorrir. Afinal, nem tudo é tão sério como parece.

    ResponderEliminar
  2. Eu, que tenho andado a navegar por outras latitudes, agora que aqui volto, logo aporto neste texto. Ele há coincidências...
    Quanto ao Laurinda, teve graça, acho-a inteligente e bem intencionada, como aliás é este blog.

    ResponderEliminar