Sobre «O Dever da Verdade»



O Dever da Verdade não é apenas mais um retrato da situação económica e social portuguesa. É antes um documento que carrega o peso da realidade inescapável de um país à beira de enfrentar a sua verdade histórica.
O livro de Medina Carreira com Ricardo Costa é supreendentemente pequeno. O formato, em misto de diálogo e entrevista, pode fazer passar a ideia de estarmos perante um trabalho de interesse meramente jornalístico, de pouca consequência. Puro engano. Trata-se de um livro lúcido e certeiro, despido de obsolescências. Tudo é substância. E a substância que nele se encerra é o alerta desassombrado sobre a nossa verdade, vedada dos olhos do público pelo soundbyte mediático e vários ciclos de discurso político anestesiante.
A “verdade” de Medina Carreira é que não atravessamos uma crise. Não percorremos sobre qualquer ondulação transitória, normal em economia e recorrente na história das sociedades. Estamos, assim, numa situação mais profunda, cujas raízes se entranham no nosso processo histórico, na herança salazarista, no processo democrático débil, na delapidação de fundos da UE, na repetição de erros políticos, na trágica perda de oportunidades. A situação, afinal, somos nós.
Aquilo que a política tenta travestir como crise é um processo de decadência continuada, política e financeira, cujos efeitos se começam a sentir em sintomas diversificados de desagregação social.
O que está aqui em causa não é mais uma questão meramente ideológica ou partidária – daquilo que gostaríamos de ter ou ser – mas daquilo que podemos fazer face à realidade insustentável que nos cerca. Poderá dizer-se que a “verdade” do retrato testemunhado por Medina Carreira não é absoluta ou dogmática. Que ela encerra margem de erro, de incerteza. Agora o que não pode ser dito, com honestidade intelectual, é que a verdade pode ser isto ou o seu contrário. Entendo por isso que o desassombro deste livro despido de retóricas – tal a força dos factos e dos números – é um testemunho de verdadeiro patriotismo. Que nos coloca perante escolhas – entre a ilusão do discurso transitório e a assunção de uma cidadania avançada capaz de enfrentar os problemas e as dificuldades que nos reserva o futuro próximo.

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1 comentário:

  1. Muito bem descrito.

    É uma pena que o país esteja cego e viva numa ilusão. Os números esses, não têm emoções nem ideologias. São frios e implacáveis.

    E das duas uma, ou acordamos e entendemos a informação que os números transmitem ou continuamos a dormir, pensando que as coisas hão-de melhorar "de alguma forma, algum dia"...

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