As técnicas de venda porta a porta tornam reconhecíveis os mecanismos da tomada de decisão. O que induz alguém a comprar, por exemplo, um robot de cozinha hiper inflacionado está longe de ser o resultado de um processo de pensamento racional. Em boa verdade não é uma análise ponderada das necessidades, custos e benefícios que está em causa. A faísca da decisão é, afinal, bem mais prosaica. Algures entre o delicioso refresco de fruta, um sorbet instantâneo e o bacalhau à brás para totós o cérebro baixa a guarda e os mais incautos tornam-se felizes proprietários de um equipamento adquirido em suaves prestações mensais que nunca mais acabam.
Mas o que nos devia verdadeiramente inquietar, para lá do risco de enchermos as nossas casas com uma vasta parafernália de maquinaria inútil, é saber até que ponto a construção das opiniões que temos acerca do mundo que nos rodeia não se baseia em mecanismos de pensamento semelhantes.
Se atentarmos na profusão de espaços de opinião e comentário, na televisão, nos jornais e nos blogues, apercebemo-nos que o opinion-making nada tem de científico. Ser fazedor de opinião não depende da elaboração lógica de uma argumentação sustentada em factos mensuráveis, salvaguardando a liberdade para sobre eles todos podermos elaborar uma análise qualitativa, subjectiva e pessoal.
Sejamos claros: qualquer indivíduo com um Q.I. minimamente capaz pode desenvolver duas argumentações opostas sobre um mesmo tema. Tomemos como exemplo a crise que estamos a viver e a cisão de opiniões que encontramos, à esquerda e à direita. O que está em causa? O que nos divide?
Divide-nos o que escolhemos ver a cada momento: o laxismo dos governos que navegaram a economia do crédito e ignoraram (ou ocultaram) o endividamento crescente dos seus estados; a falsa economia privada sustentada pelo dinheiro público; o jogo viciado da especulação dos mercados em torno das dívidas soberanas dos países do Euro; a fragilidade concorrencial das nações desenvolvidas na economia aberta e desigual da globalização; ou seja ainda a corrosão interna dos estados sociais por via de toda a espécie de abusos dos seus próprios cidadãos.
Doutrinas opostas podem assim suportar-se em factores verdadeiros, bastando para isso a manipulação dos dados que escolhemos relevar no curto espaço de attention span disponível nos media. Observamo-lo todos os dias e o que vemos é, tão só, a mesma receita, o mesmo business as usual de todos aqueles que ainda não perceberam que o mundo mudou e que nada ficará como dantes.
Vivemos ainda, social e politicamente, ensopados na cultura da não-crise dos vendedores de Bimbys. Pese embora a sombra da crise eterna faça parte do código genético dos países ocidentais, a economia assente em crédito das últimas décadas produziu uma sociedade incapaz de se confrontar consigo própria e com todas as suas contradições. E por isso sobrevive o wishful thinking, o desejo que tudo passe, o vislumbre de uma saída fácil, sem dor. Ninguém quer afinal comer a colheita amarga dos erros que andámos longos anos a semear.
Do dia mais curto aos dias mais frios distam vários meses, tal a força do atrito da Terra. E assim a não-crise resiste ainda, pois que se vivemos hoje os dias mais curtos da nossa democracia, os dias mais frios não chegaram ainda.
Muito bem escrito, como sempre, Daniel!
ResponderEliminarAbraço
Parabéns pelo texto!
ResponderEliminarAo fim de um mês continuamos na não crise, ou já a convidámos para a ceia? Ouvir-se-ão menos bimbys a bombar e mais bimbos a chorar?
Anónimo, porque o que é um nome quando este não tem cara?