Imagino agora o que ela terá pensado, por detrás daqueles olhos verdes, ao ver-me invadir o território sagrado da sua vida partilhada com aquela que por certo tinha como sua única companheira. Quem será este? Com que intenções se apodera do nosso lugar, do nosso tempo de aconchego, quando a noite cai e o mundo pertence apenas a nós duas?
Dediquei à pequena Cinza o mesmo desprezo que ela me dirigia. Não por desgosto ou falta de afeição. Pelo contrário, porque nestas coisas dos gatos devemos sempre respeitar os seus tempos e os seus espaços.
Passaram por certo duas semanas. Pensei que estaria para mim perdida aquela gata que a tantas doçuras se entregava pela mulher com quem um dia eu haveria de casar. E estava eu sentado, rodeado sei lá que afazeres, quando ela chegou por cima de tudo como quem atravessa o mundo. Assim me dedicou o seu primeiro beijo áspero, delicioso como se nada fosse, a maravilhosa Cinza.
Sabe quem alguma vez conviveu com gatos ou cães que todos são diferentes. Não apenas no temperamento mas no grau de evolução intelectual. Sim, eu disse intelectual. A Cinza foi, e porventura sempre será, a gata mais inteligente que eu já vi. Assim lhe dedicámos o cognome de “gato-pessoa”, pelo brilho, pelo afecto profundo, pela carência, pelo ciúme, por tudo aquilo que fez dela a mais luminosa presença da nossa casa durante os anos que agora julgaremos sempre tão curtos. E, no entanto, se as probabilidades mandassem, a Cinza já devia ter morrido há muito.
Quando a tristeza se apoderou das nossas vidas, no tempo suspenso de uma frágil gravidez perdida, foi ela quem sentiu mais fundo a dor que nos atingiu. Acolheu-a como sua, deixou de comer e assim se abeirou da morte. Duas novas palavras entraram na nossa casa: lipidose hepática. O estado clínico da Cinza disparava em valores dez vezes para lá de todas as esperanças. Diversos dias de internamento deixavam-na agora prostrada para a encontrarmos, mais um dia passado, à beira do fim.
Podíamos ler-lhe nos olhos: a Cinza desistiu de viver. Se aqui fica, morre. Falámos com os veterinários explicando porque tínhamos de levá-la para casa. Os médicos alertaram-nos para a complexidade do tratamento, com muita medicação e alimentação regular, por um tubo esofágico, de três em três horas, sem excepção. Sim, numa situação normal, levá-la para casa seria uma loucura. Mas nós não somos pessoas normais.
A Cinza viveu um mês em cima da nossa cama. Uma capa impermeável esticada, com cobertas por cima. Uma caixa de areia ao fundo, assim mesmo. Quase não se movia e a nada reagia. Mas foi sobrevivendo, dia-a-dia, àquela rotina desesperada. De quando em vez a indisposição sobrevinha para se perder em espasmos. Ficava desfeita. E a rotina recomeçava mais uma vez.
A pouco e pouco a medicação, a comida e o amor foram curando aquele frágil fígado doente. E regressou um dia, como se nada fosse, para o meio de nós, cumprimentando-nos com um novo primeiro beijo. Para mais uma vida.
A Cinza deixou este mundo, suspensa nas minhas mãos, no Domingo passado, juntando-se à nossa pequena cadela branca que morreu há cerca de dois meses. Todas as vidas começam encharcadas em dor e talvez uma nova vida tenha começado ali mesmo. Uma vida de que a Cinza já não fará parte, mas em que a lembrança dos seus gestos, dos seus abraços, dos seus beijos, do seu cheiro, fará sempre parte de nós. Possam todos conhecer, uma vez na vida, a bênção da devoção mais pura como a da nossa pequena Cinza, a gata mais extraordinária que alguma vez existiu.
I wonder now what she must have thought, behind those green eyes, as I invaded the sacred territory of a life shared with the one she deemed to be her only companion. Who is this man? What brings him to our place, invading our time of cuddling, when the night falls and the world belongs to just the two of us? I ignored Cinza just as she ignored me. Not for contempt or lack of affection. It was, in fact, the opposite, for when it comes to cats one should always respect their own time and space. [+/-]
Two weeks passed. I thought she would never offer me the compassion she candidly expressed for the woman I would one day marry. And there I was, distracted by some kind of business, when she came walking through it all and surprised me with her first sand paper kiss. Wonderful Cinza.
If you ever lived with a cat or a dog you know they are all very different. Not just in temper but in regard to intellect. Yes, I said intellect. Cinza was, and probably always will be, the most intelligent cat I have ever known. And so we gave her the nickname of “cat-person”, for her clarity, profound affection, neediness, jealousy, for all the magical things that made her the brightest presence in our home for years.
Cinza left this world, as I held her in my hands, last Sunday, joining our little white dog that passed away two months ago. Every life begins soaked in pain and perhaps a new life began that very moment. A life that Cinza will not be a part of, but in which the memory of her gestures, her hugs and kisses, her scent, will always be a part of us. May everyone know, at least once in this lifetime, the miracle of love and purest devotion that Cinza blessed us with, the most extraordinary cat that ever existed.
If you ever lived with a cat or a dog you know they are all very different. Not just in temper but in regard to intellect. Yes, I said intellect. Cinza was, and probably always will be, the most intelligent cat I have ever known. And so we gave her the nickname of “cat-person”, for her clarity, profound affection, neediness, jealousy, for all the magical things that made her the brightest presence in our home for years.
Cinza left this world, as I held her in my hands, last Sunday, joining our little white dog that passed away two months ago. Every life begins soaked in pain and perhaps a new life began that very moment. A life that Cinza will not be a part of, but in which the memory of her gestures, her hugs and kisses, her scent, will always be a part of us. May everyone know, at least once in this lifetime, the miracle of love and purest devotion that Cinza blessed us with, the most extraordinary cat that ever existed.
Todos que já tiveram um animal de estimação que se foi compreendem o que diz. E se comovem....
ResponderEliminarobrigado por compartilhar.
ResponderEliminarEu percebo isto. Abraço.
ResponderEliminarhttp://porto.taf.net/dp/node/4835
Daniel, lamento a vossa perda. Eu adoro gatos, sempre os tive em casa dos meus pais mas vi demasiados a morrer para que quando mudei para casa própria ter a coragem de ter um.
ResponderEliminarSão animais inteligentes, com vontade própria e uma personalidade vincada, se não gostam de alguém dificilmente mudam de ideias, admiro o seu sentido de indepedência e liberdade.
E com os anos de convivência criam-se laços emocionais que a morte teima em não desfazer de imediato.
Mais uma vez lamento a vossa perda.
Tivemos uma gata - a primeira gata que tivemos -, a quem chamámos (premonitoriamente) Blimunda e que provavelmente tinha poderes.
ResponderEliminarAndava connosco para todo o lado, parecia entender tudo o que lhe dizíamos e era teimosa como a maioria dos felinos.
Atirávamos-lhe um brinquedo e ia buscá-lo para continuar a brincadeira. Como um cão, embora eu não ache metade da piada aos cães (continuamos a ter gatos).
Uma noite de Lua cheia, à hora de voltar para casa, teimou que havia de ficar na rua. Fiz tudo o que me ocorreu para a convencer a vir para dentro, como habitualmente, mas o apelo da Lua foi mais forte e eu acabei por me irritar e fui dormir (estava sozinho em casa).
Na manhã seguinte, acordei com a estranha sensação de que alguma coisa não estava certa. Fui à rua e ouvi imediatamente o seu lamento em surdina. Descobri-a, em muito mau estado, debaixo de um carro, ainda viva. Consegui recolhê-la a custo, trouxe a caixa para casa, comecei a vestir-me à pressa, em desespero para sair para o veterinário, mas ela já não me deu tempo sequer para voltar a saír. Deu uns pinotes e o brilho abandonou-lhe o olhar.
Fui trabalhar, como era normal, mas passei o dia a chorar.
Ao final do dia, fui pedir uma enxada a uns vizinhos e fui sozinho enterrá-la num terreno ali ao lado.
Cavava e chorava como se estivesse a abrir uma sepultura de pessoa.
Chorei por aquela gata o que não me parecia correcto chorar por um bicho e jurei a mim mesmo que nunca mais gostaria de um bicho como gostei daquele.
Continuo a ter gatos e não voltei a ter que enterrar nenhum, mas penso que ergui mesmo uma barreira e nunca mais sofrerei o mesmo.
Espero não estar enganado.
ZM
Um grande abraço a pensar na Chloé, de peito branco, corpo negro e olhos esbugalhados que, por mal fadado destino, padeceu do mesmo mal da Chloé da L'Écume des Jours que lhe emprestou o nome. E também para a Tigrona, filha de Chloé, que não aguentou a falta da mãe e recusou a vida.
ResponderEliminar...agradeço este momento sereno.
ResponderEliminarNão há palavras que sejam ditas nestas alturas e nos ajudem a minimizar a dor, que fica sempre cá dentro...
ResponderEliminarMas lamento muito Daniel & Dora! :(
Recentemente perdi um dos gatos mais velhos de casa da minha mãe... e ontem teve que ser adormecido um dos mais jovens (um dos bebés da Luana, que apanhara dos quintais há um ano atrás)...
Por isso o teu texto, Daniel, tocou-me bem fundo e é com os olhos em água que vos deixo estas palavras.
Um imenso obrigada e coragem,
Alexandra.
Daniel,
ResponderEliminarVocê não me conhece, me chamo Mariana, sou brasileira e estudante de arquitetura. Pois bem, desde que lembro estar na universidade já lia seu blog para acrescentar sempre à minha vida, por assim dizer, arquitetônica.
Hoje entrei aqui e me deparei com este texto sobre a Cinza e te garanto que me emocionei como nunca enquanto lia este texto repleto de amor por um ser, que pra mim é tão sagrado, que são os gatos.
Desde pequena a arquitetura e os gatos fizeram parte da minha vida.
E infelizmente, desde pequena sofro a perda dos meus gatos-pessoas, sim sim, também os chamo assim por entender que eles possuem caracteristicas de fantastica inteligencia e sentimentos, assim como nós as pessoas. Mas nem de perto passei a dor que é acompanhar um gato enfermo, pois os meus eram sempre subtraídos de minha residência enquanto eu estava ausente.
Tamanha foi a minha comoção agora que repassei para a minha mãe este link do post e até ela, que não gosta tanto - ou seria não compreende o mundo dos gatos-pessoas? - se emocionou e ainda complementou: "que homenagem linda à Cinza este jovem fez" com os olhos cheios de água e emoção.
Lamento demais a sua perda.
Nestas alturas é muito difícil termos as palavras certas que possam aliviar um pouco a dor que vocês sentem...mas mesmo assim arrisco.
ResponderEliminarDas memórias felizes da minha infância, fazem parte os animais de companhia.Ainda me lembro do Bright, que morreu teria eu uns quatro anos e do enterro sentido que lhe fizémos no quintal... Nessa altura, explicaram-nos que um animal não era uma pessoa e acreditavam que os animais não têm alma...
Depois veio a Nice, uma cadelinha meiga que dormia aos pés da minha cama e que era a fonte da minha segurança quando acordava de noite com pesadelos e a sentia a dormir calmamente a meus pés. Percebia então que estava tudo bem e continuava a dormir.Já devia ter uns dez anos quando ela partiu...
Hoje, já avó,acredito que tal como há pessoas mais inteligentes do que outras, também há animais mais evoluídos do que outros. E acho que os animais também têm ALMA!
Mas neste mundo tudo é finito e temos de estar preparados para enfrentar as perdas...Este é um grande desafio: perceber e aceitar que Nada nem Ninguém nos pertence...e que nos pode ser tirado em qualquer momento!...
Neste momento de perda e luto, dêem Graças por terem partilhado as vossas vidas com a Cinza! Por todos os momentos felizes em que conviveram com ela e pela felicidade que lhe deram também...
Um grande abraço para vocês.
Butterfly
Daniel,
ResponderEliminarEste foi o post mais intenso que li num blog de arquitectura. Demonstra o ser humano que está atrás de um arquitecto.
Obrigado pelas palavras que partilhas... não pela dor, mas sim, pela demonstração de amor, carinho, admiração e afecto pela Cinza.
Abraço de força!
Nuno Rodrigues Cramês
Daniel,
ResponderEliminarEste teu texto fez-me lembrar a perda do meu Bull. Entendo a tua perda.
Um forte abraço,
telmo
Daniel,
ResponderEliminarObrigada por partilhares conosco a tua relação com um ser tão extraordinário como a cinza e nos dares a conhece-la.
É importante esta tua história e cheia de lições. É incrível como muitos animais conseguem marcar a nossa vida de forma que muitos humanos nunca conseguirão. E ainda dizem que somos mais evoluídos?..
Eu tenho gatos, sempre tive e já tive experiências dramáticas também. Sei como deve estar a ser difícil.
Entendo que a cinza tenha sido e continue a ser (seja lá onde estiver) um ser evoluído e especial. Percebo que os animais não são todos iguais e percebe-se pelo olhar.
Tenho um gato, o Mitsubhishi, que se fosse uma pessoa seria uma espécie de Dalai Lama. É incrivelmente calmo, sensível e profundo. O olhar dele comunica conosco e toca bem no fundo da nossa alma.
Gostava também de partilhar a história da Margarida.
O meu primeiro contacto com ela foi ao ver um objecto pequeno no meio de uma estrada movimentada que abana uma cauda quando passo por ela de carro a 1 m de distancia. As minhas mãos tremeram e fiquei paralisada por perceber que era um gato bebe e ainda estava vivo!
Consegui inverter a marcha e correr na sua direcção. Foi difícil chegar até ela devido ao movimento da estrada.
Agarrei-a mas parecia quase morta.
Pu-la no banco da frente do meu carro e levei-a o mais depressa que consegui ao veterinário.
Estava com hemorragias e quase não se mexia, só para soltar uns gritos de agonia de quando em quando. Ficou internada e passada 1 semana passou de 400g para um 1 Kg.
Conseguiu recuperar e tenho-a comigo há 3 semanas e pelo tempo que passo com ela (que é muito) vejo que é uma gata extraordinariamente dócil e que percebe tudo o que lhe aconteceu. Leio nos seus olhos o quão agradecida está. Conseguiu em tao pouco tempo tocar-me de uma forma que acredito que muitos seres humanos nunca experienciarão.
Como vivo num apartamento e já tenho 2 gatos estou a tentar encontrar um dono de confiança para ela, mas está difícil. Será que me conseguirei separar dela?
Abraço
Sónia Arrepia
Caro Daniel,
ResponderEliminarA sua descrição encheu-me os olhos de lágrimas...
Lamento muito.
Teresa
Caro Daniel, lamento muito... Sabes que eu, entre todas as qualidades e defeitos que compõem uma pessoa, divido-as entre as que tratam bem os animais e os outros, que sempre merecerão a minha desconfiança e desprezo. Infelizmente, estamos no neolítico, mas o teu post apesar de triste, enche-me de alegria. Por existires e teres tratado assim a Cinza. Um abraço. JRF
ResponderEliminarEu já enterrei tantos.. e já fui tantas vezes a correr para o veterinário com gatos que já tive, alguns em estado lastimável...
ResponderEliminarO que me custou ver partir foi um preto que se chamava Lelo e esse era especial, tanto pela sua inteligência como pela sua compreensão, caçador de aves, um verdadeio pantera e um grande amigo que nunca se esquecia de ronronar e esfregar o seu pescoço no meu como que dissesse boa noite antes de dormir aos meus pés...
A minha mãe ficava boquiaberta como aquele animal me compreendia e escutava aquilo que eu lhe dizia respondendo-me com um miau ou uma emoção gestual....incrivel!?!
Já tive tantos e já vi tantos a morrer, outros roubaram-mos tal era a beleza e bons tratos que apresentavam, outros fugiram atrás de fêmeas mas como o preto e enorme como uma pantera nunca vou ter certamente... é a vida!
Obrigado por partilhares a perda de um ser!!!
Um amigo meu mandou-me o link para o seu blog por saber o quanto eu AMO animais. Como o compreendo a si e a todos os que colocaram posts, tal como eu agora estou a fazer. Digo sempre que prefiro os animais às pessoas: são mais sinceros, amigos e leais. NUNCA nos traem. Adoram-nos sempre. Tenho 3 gatos no momento e o mais velho, o Nero, anda doente, não sabemos de quê ainda. Espero que de nada tão grave. Já tive de mandar abater gatos, mas estão sempre ao meu colo, para que eu esteja com eles até ao último momento. Apesar de me doer sempre e muito, digo a mim própria e aos outros que foi importante o tempo que estiveram connosco e mais importante ainda é termos a certeza de que fizémos tudo o que estava ao nosso alcance para lhes proporcionar uma boa vida. Ficam as saudades e as memórias.
ResponderEliminarsem palavras. fiquei muito comovida. lamento muito a vossa perda.
ResponderEliminarfiquei com um nó na garganta. ainda não passei por isso mas vou passar. neste momento, a minha gata que me acompanha há 11 anos tem um insuficiência renal grave e eu, que compartilho da sua insanidade, trouxe-a para casa para morrer comigo. neste momento, dorme sobre o meu peito muito chateada com a partilha do colo com o portátil mas amanhã talvez não estará cá. amanhã, para a semana, para o mês... ainda não é certo... ainda não sei eu também se foi o certo já que lhe fazer a enfermagem todos os dias me mata um bocadinho também...
ResponderEliminarespero poder despedir-me dela com a dignidade que ela merece e ao ler isto, fico um pouco mais certa que estou a fazê-lo bem.
Lamento muito pela Cinza... um abraço
Caro Daniel, também eu tenho o meu contemplativo e felino amigo, de nome Johhny, que já esteve para me deixar, dada a sua doença crónica. Felizmente, aguentou-se mas deu-me a capacidade de entender melhor o sofrimento de [poder] perder. Obrigado por partilhar a sua dôr connosco, e de nos lembrar do previlégio que é termos também esses amigos.
ResponderEliminarUm bem-haja.
Paulo
Lamento a querida Cinza e fiqueicom os olhos cheios de lágrimas...
ResponderEliminarLamento muito.
Como vos compreendo. Tenho um gato, o Maurício que tem 16 aninhos. Quando ele partir vai custar muito, ele é o meu menino.
Bem hajam
Paula