[editorial]

Quinta-feira

Na semana passada este blogue alcançou a barreira das 50.000 page views e dos 35.000 visitantes. Agradeço a todos os que aqui vão passando e encontram motivos para regressar. Aos que se interessam e comentam, escrevem, linkam e vão enriquecendo a experiência de conviver aqui na blogosfera.

De um acto pessoal ao momento em que se tem consciência de não estarmos sós, escrever um blogue é uma caminhada de longo curso. Para os que resistem, o percurso emocional parece-me exactamente o inverso: começa-se a escrever para que nos leiam mas vamos permanecendo pela vontade simples de escrever, cada vez mais pessoal, mais porque nos interessa fazê-lo. Hoje alegra-me mais não o número de visitas mas descobrir na consulta ao contador de página que tenho visitantes do Brasil e mais além das Américas, do centro da Europa, da Austrália e de Timor. Não são muitos, mas fico a descortinar as razões que aqui os trazem, um a um, e nesse sonhar encontro um sentimento de reencontro com o que torna esta experiência especial.

Notícias recentes apontaram para mais de 70 blogues criados todos os dias em Portugal e mais de 35.000 em actividade. Tem-se escrito sobre a sua importância, o seu significado no contexto dos media, se são ou não jornalismo, se são uma moda ou uma revolução. Acho que são as duas coisas. Goste ou não, o Tchernignobyl escreveu uma coisa que resume bem aquilo que sinto: Por um lado são feitos a custos irrisórios e na sua maioria com paixão, muitos deles para “nada” que não sejam motivos que uma certa caretice travestizada de “racionalidade” descreve como “fúteis”.
E neste debate, a vontade que tenho é colocar-me exactamente nessa posição de escrever para “nada”, não para integrar um movimento ou navegar a onda da contemporaneidade, apenas para abrir páginas de um bloco de notas perdido na areia que outros podem ter gosto em abrir e talvez escrever também. Porque nesse “nada” encontro o mundo de razões que me fazem desejar estar aqui.

[que fazer pela qualidade do estado]

Quarta-feira



Um dos debates clássicos em ciência política é o conflito entre “racionalismo” e “incrementalismo”. A abordagem racionalista consiste em criar aquilo que se entende como o sistema perfeito, identificar quais as actividades e elementos essenciais para o formar e, posteriormente, canalizar os recursos necessários para o por em prática. A segunda abordagem, incrementalista, parte do princípio oposto, de que é impossível criar o sistema perfeito. Assim, ele consiste em construir um sistema a partir daquilo que já existe, começando onde estão as pessoas e os meios e, a partir deles, introduzir um conjunto gradual de transformações com vista à obtenção do melhor sistema possível. Concluindo, tratam-se de abordagens que traduzem a dificuldade em compatibilizar o “real” com o “ideal”.

A nossa cultura teórica e académica promove o pensamento racionalista em prejuízo do incrementalista. É-nos mais fácil conceber um modelo teórico ideal do que conceber o modelo que melhor se adapta à realidade existente, com todas as suas vicissitudes e contrariedades. Um dos problemas do academismo teórico é produzir modelos simplificadores da realidade: é sempre mais fácil dar resposta a uma questão quando a traduzimos em poucas variáveis do que partir da realidade complexa e afinar os múltiplos factores que nela intervêm.

Ambos os métodos têm, em abono da verdade, benefícios e prejuízos. A abordagem racionalista permite promover transformações mais radicais e eliminar entraves, obtendo um maior impacto e visibilidade. No entanto, pode também fomentar soluções do tipo “terra queimada”, desbaratando recursos e “know how” por força de regras impositivas e pouco participadas. Do lado oposto, a atitude incrementalista beneficia a comunicação e a participação, sendo mais transparente e democrática. Ela parte de conservar os recursos existentes e reconhecê-los como parte importante na construção da solução. Mas são-lhe igualmente reconhecíveis alguns contras: os processos de transformação são mais lentos e podem ser pouco motivadores. Por outro lado, a sua permeabilidade à opinião “popular” nem sempre conduz às medidas mais eficazes e correctas: a abordagem incrementalista pode estar mais sujeita à demagogia.

Penso que esta introdução é importante para se reflectir sobre as formas de transformar a qualidade do Estado. Porque se trata de uma estrutura complexa, um organismo disfuncional numas coisas e eficaz noutras. A dimensão do sector público torna difícil afinar os meios e os fins, nem sempre equilibrados e bem distribuídos. Transformar o Estado é assim um processo complexo: o Estado não é uma empresa em que o director pode obter informação sobre um qualquer departamento e actuar directamente sobre ele; é antes um conjunto de organismos com sectores e sub-sectores, autonomias e competências distribuídas a muitos níveis diferentes.

É por isto que a acção de um governo é tão difícil. Deixem-me fazer uma pequena metáfora a respeito do défice público e usar de algum simplismo. O governo consegue medir o défice como quem mede um caudal de água na origem. Ele sabe quanta água introduziu no caudal e que se gastou água a mais do que a que estava disponível; logo houve défice. Mas o governo não consegue actuar sobre todas as torneiras distribuídas pela máquina pública, ele consegue apenas fechar a válvula na origem.
O problema é este, é que ao fechar a válvula, o governo não controla exactamente se se está a retirar água onde ela é esbanjada ou se está a ser aplicada onde verdadeiramente faz falta. Para isso, o governo tinha de ser uma espécie de maestro das mil torneirinhas. E porque não o consegue fazer, o que sucede é que a água se gasta nos sítios mais próximos da fonte, ou seja, do topo da máquina estatal para o fundo, faltando assim nos locais onde essa água (permitam-me) é fundamental para o trabalho técnico específico.
Perdoem a imagem e algum simplismo, mas foi a forma que encontrei para ilustrar parte da realidade do sector público e da sua complexidade.

Julgo que, quer se trate dos meios financeiros ou da capacidade técnica da máquina estatal, é necessário introduzir processos de aferição da Qualidade. Falo de qualidade não como conceito subjectivo mas como um conteúdo concreto monitorizável e perfeitamente definido em termos técnicos.
Para promover a qualidade do estado é necessário que as suas organizações disponham de uma força de trabalho motivada pela compreensão da função que executa e a presença dos meios para a executar. Complementarmente, é fundamental que estejam definidos critérios mensuráveis para a tipologia de trabalho e formas de monitorizar os seus resultados.
Para fazer uma verdadeira Reforma da Qualidade do Estado não é necessário inventar a pólvora, basta adaptar os modelos que vários países já desenvolveram, nomeadamente no norte europeu. Uma grande parte da doutrina desenvolvida ao nível do sector público baseia-se exactamente na introdução de critérios de certificação técnica, em que se fundam os processos de planeamento da Agenda 21 Local para o Desenvolvimento Sustentável, só para dar o exemplo mais mediático.

É necessário promover novas abordagens de prática democrática e do serviço público, envolvendo os processos de gestão e decisão de mecanismos mais transparentes, abertos e monitorizados. Promover uma verdadeira participação dos cidadãos; fazer marketing pela cidadania; compreender que parte crucial da função do sistema público consiste em identificar e responder às aspirações das pessoas; criar um clima de credibilidade mútua entre o público e o privado e não de suspeição constante; evitar controvérsias frívolas e resolver os problemas não com fanatismo mas com inteligência.
Acima de tudo, é necessário que conceitos como os que enunciei se tornem em mais do que chavões e sirvam para produzir doutrina aplicável, traduzida nos procedimentos e interiorizada pelas pessoas que os executam. E há que plantar as sementes de uma verdadeira transformação, sem as quais dificilmente se poderá esperar obter uma boa colheita.

[burocracia: a inteligência do estado]

Segunda-feira

A Burocracia é, em termos simples, o sistema de poder baseado na divisão hierárquica do trabalho em sectores. A estrutura de administração burocrática obedece a um exercício vertical do poder, também conhecido como sistema “top-down”.

A repartição do poder em departamentos administrativos depende da correcta comunicação entre eles, e por isso a Burocracia precisa de procedimentos cuja forma e linguagem esteja padronizada e seja clara para todas as partes. Deste modo, na sua origem, a Burocracia é tão mais eficaz quanto mais racionais forem os seus procedimentos.
Um dos principais problemas dos sistemas burocráticos é exactamente o da racionalidade, ou mais concretamente, da distinção entre a racionalidade “formal” e racionalidade “substantiva”. A sociedade procura organizar-se em estruturas “formalmente” racionais de modo a maximizar a concretização dos seus objectivos. Mas em muitos casos essa racionalidade formal acaba por ir contra a racionalidade sustantiva, ou seja, a linguagem procedimental da estrutura burocrática acaba por perder de vista o verdadeiro objectivo para o qual foi criada.

Em Portugal, e ao nível do Estado, este tema não é apenas de interesse teórico; ele constitui um dos principais factores de atraso nacional e começa a ser reconhecido e denunciado tanto no sector privado como no interior do sector público. Pela enorme complexidade que resulta da dimensão orgânica do Estado e as muitas disfuncionalidades que nela existem, ele não é resolúvel por medidas que simplifiquem a dimensão do problema como dizer por exemplo que é necessário reduzir o número de papéis para metade. É que o problema da Burocracia não é o excesso de papéis mas sim a falta de inteligência que existe na máquina do Estado, uma falta de inteligência que resulta exactamente do conflito entre a prática do procedimento burocrático e os objectivos que este devia servir em primeiro lugar; ou seja, o conflito entre a racionalidade formal e a racionalidade substantiva.

Um dos motivos para este fenómeno reside na falta de capacidade técnica e conhecimento especializado existente no sistema estatal. A isto alia-se uma grave falta de compreensão das entidades públicas e dos funcionários pela missão pública e a responsabilidade que lhe está associada.
É fácil perante o problema demonizar a figura do funcionário público como principal culpado, mas ela cumpre exactamente com a ideia de Burocracia em que se fundou o sistema público português: o funcionário de carreira financeiramente dependente não questiona a aplicação impessoal de regras genéricas, independentemente das suas consequências. Como pequeno soldado num grande exército, o funcionário burocrata vive protegido do erro, como o mero executante de regras que não criou e de que não é responsável. É o sistema.

Na prática, o cidadão que acede ao Estado confronta-se com isto de várias formas. Por exemplo, quando as regras genéricas são dificilmente aplicáveis ao seu caso concreto. Sabendo-se que a realidade é sempre mais complexa do que todos os exemplos previsíveis, um tal fenómeno é inevitável. Nestes casos, o Estado acaba por promover a paralesia do procedimento por razões menores, revelando-se incapaz de “introduzir inteligência” no processo e assim produzir doutrina procedimental que contemple já situações semelhantes que se venham a verificar.

Mas a outros níveis, em especial no licenciamento estatal (não só municipal, mas também) sucede ainda que muitas vezes o funcionário responsável pelo procedimento não faz a distinção entre aquilo que é regulamentarmente exigível e aquilo que é o seu entendimento pessoal, introduzindo razões puramente subjectivas e altamente discutíveis do ponto de vista do técnico. Estas situações, facilmente demolíveis com a presença de um bom advogado, revelam-se no entanto extremamente problemáticas para o cidadão comum e para os técnicos que o representam, sujeitos a uma exposição que os pode vir a prejudicar no futuro.

Ainda que o Estado preveja alguns mecanismos de reclamação - como o Livro Amarelo – é necessário reforçar e divulgar a sua prática de modo a que se tornem veículos eficazes para a resolução dos problemas concretos dos cidadãos, no tempo útil em que os seus procedimentos decorrem. Na prática, quase sempre o conflito entre um particular e o Estado resvala para uma “guerra formal” que a habilidade burocrática permite ilibar.
No limite, o problema da irracionalidade processual no Estado só se resolverá pela formação séria dos funcionários e a alteração da prática (não legal mas doutrinária) dos organismos públicos. Só a promoção de um entendimento verdadeiro daquilo que é o serviço público e a causa pública poderá contrariar a sua continuada degradação, que é em Portugal o fruto de enorme atraso e improdutividade, com danos cada vez maiores tanto para o sistema público como para o privado.

[daily dose of imagery]

Segunda-feira



Muito recomendável este fotoblog de Sam Javanrouh, um iraniano residente no Canadá. Uma nova imagem, todos os dias, neste Daily Dose Of Imagery.

[thom mayne, architect]

Quarta-feira

O pai da Morphosis foi premiado com o Pritzker de 2005.

Prémio Pritzker 2005

Pritzker Mediakit em formato PDF

Pritzker Mediakit em formato HTML

Factsheet sobre Thom Mayne

Website da firma Morphosis


Adenda:

Pela mão do Planeta Reboque fui descobrir este interessante texto do A Daily Dose Of Architecture: Being Mayne.
John Hill relembra o impacto que a apresentação dos projectos da Morphosis teve na afirmação da própria firma e da influência que tiveram no mundo da arquitectura. A fusão de informação em layers múltiplas com plantas, cortes, imagens de modelo, fotografias, as maquetes esqueléticas insinuando os espaços para lá do corpo material acentuavam a expressão da própria arquitectura, rompendo com formas mais assépticas de comunicação visual. Recordo bem as imagens do Los Angeles Arts Park, publicadas na El Croquis, como uma lufada de ar fresco que nos deixou a todos fascinados. O desenho contaminado pela intenção e pela forma, como uma extensão da pose da arquitectura (ou porque não dizê-lo, do arquitecto).
A conclusão de Hill é interessante: será a Morphosis uma influência tão determinante hoje como foi há dez ou quinze anos no meio universitário. Possivelmente não. Mas nesta realidade em que a arquitectura é por vezes um meio para maximizar os lucros da produção de cidade, a atitude da firma de Mayne continua na vanguarda da resistência a uma instrumentalização da profissão. Uma arquitectura que se afirma como agente de uma nova filosofia de desenho no contexto urbano, assumindo o impulso para desempenhar um papel consequente e uma reacção aos espaços amorfos e insignificantes que nos vão rodeando – criando tensões e inter-relações, e com elas, criando espaço e uma vigorosa urbanidade.

[expo 2005 aichi japan]

Quinta-feira

A poucos dias da abertura da Exposição Internacional 2005 em Aichi, Japão, vale a pena visitar o super website oficial. A primeira exposição internacional do século XXI, que só os mais sortudos de nós poderão visitar, irá durar entre 25 de Março e 25 de Setembro. Sob o tema “A Sabedoria da Natureza” serão abordadas várias áreas como o ambiente, novas tecnologias e recursos energéticos renováveis, transportes ecológicos de alta rentabilidade, educação ambiental e muito mais.
Passear em viaturas “da próxima geração” ecológicas e sem condutor, ver exposições interactivas e passear no meio de robôs, experimentar os modos de vida e as tecnologias do futuro ou visitar a história do passado da Terra, o evento promete um pouco de tudo com muita animação. Tudo complementado com umas mascotes estupidamente divertidas.

Uma pequena nota para lamentar o facto da participação portuguesa
não dispor de website próprio. Como comparação vejam os websites do Pavilhão Espanhol ou do Pavilhão do Reino Unido, este último com um divertido gecko (será uma salamandra) interactivo. Divirtam-se.

[évora musical]

Segunda-feira



Porque não é publicidade quando estamos a falar de amigos abro esta página para divulgar o belíssimo projecto Évora Musical. Trata-se de uma empresa destinada à produção de eventos musicais que agrupa músicos e grupos de grande qualidade. Do grande acontecimento musical ao acompanhamento de uma recepção mais pequena ou mesmo um evento de carácter intimista, o Évora Musical dedica-se à realização de um serviço centrado na particularidade de cada situação, sempre com aquela bonomia e sensibilidade alentejana.

Avanço o destaque para o maravilhoso conjunto Modas à Margem do Tempo, cheio de histórias e sentimentos do universo da tradição alentejana tocados com a doce contemporaneidade genuína e acústica deste discreto colectivo. Para vos encher o coração de música deixo aqui estes dois trechos.

Além Daquela Janela
Graças A Deus Que Já Temos

Para mais informações consultar o site do Évora Musical ou contactar via email para evoramusical@sapo.pt.

[isto é agora]

Sexta-feira



10x10 (ten by ten) é o snapshot do momento, o mundo visto pelos olhos da internet. Em cada hora, o 10x10 recolhe as 100 palavras e imagens mais procuradas numa escala global e apresenta-as num mosaico, o registo automático do tempo por uma sentinela electrónica, sem intervenção humana.

[desde puto]

Quinta-feira

Olá Daniel.
Isto de estar aqui do outro lado do mundo com a cabeça para baixo tem, por vezes, os seus efeitos secundários. Há algum tempo que leio o teu blogue e só recentemente fiz a associação entre o Daniel Carrapa autor do blogue e o Daniel Carrapa que conheço desde puto. Imperdoável.
Serve assim esta missiva para te perguntar como vais, o que andas a fazer e para saber se me autorizas a acrescentar um link para o teu blogue no meu (http://enfado.blogsome.com).
Um abraço.
Guilherme Cartaxo


A resposta já foi por email. E claro que já adicionei o teu surpreendente Enfado na lista de links. Não fazia ideia que estavas em Timor, pá, ainda me estou a beliscar. Um grande abraço! Eu sabia que este blogue ainda me haveria de servir para alguma coisa!

[herr flick delgado]

Quinta-feira

A vitória não está na equipa, mas na forma como ela se vê, conduz, posiciona e trabalha em conjunto. E essa tarefa, essencial, pertence a um treinador, ou chefe de governo, ou presidente de câmara, ou "patrão" de uma empresa.

O impagável Luís Delgado escreve esta deliciosa homilia a José Mourinho. Ao seu melhor estilo, o Herr Flick português elogia a tarimba superior do treinador do Chelsea, promovido a gestor inquestionável de potencialidades humanas. É o fartote de rir do princípio ao fim. Não é por Mourinho, sem dúvida merecedor de todos os elogios, mas pela constante analogia à figura estereotipada do gestor de sucesso a culminar previsivelmente no que espera Delgado dos nossos políticos. Liderança, esforço, sacrifício e desejo inato de vencer, enfim, o mito sebastianista hipermoderno.
A piada, bom, a piada está na simplicidade de espírito deste suspiro jornalístico, reduzindo a receita para o sucesso ao estilo, forma e modelo de quem lidera. Fazendo a psicanálise nacional, é neste caldo cultural que nascem figuras como Santana Lopes, actores políticos do estilo, da forma e do modelo (perna aberta ó-pra-mim tão natural) a quem ninguém aponta o vazio de conteúdo e substância política, cultural ou humana.

E já que falo de vazio, recomendo a leitura do livro de Santana Lopes, “Palavras Escritas”, para saberem do que falo. Por dez euros, está no limite de uma aceitável relação qualidade-preço.

[feng shui, energias e outros vudus]

Terça-feira



O Feng Shui é uma espécie de ioga da arquitectura. Fica bem falar disso nas festas com os amigos: ah, eu agora ando numa de feng shói!. E eu por mim tudo bem. Eu também gosto de dar nas vistas, mas quando me começam a falar em energias dá-me logo vontade de levantar as mãos e abaná-las freneticamente!

Simplificadamente, a doutrina Feng Shui é a arte - não a ciência - de conter e equilibrar as influências positivas e negativas do ambiente em que as pessoas vivem. Os seguidores desta doutrina acreditam que as influências da Natureza são uma força determinante do rumo da nossa vida, procurando assim conjugar os elementos naturais e estabelecer com eles equilíbrio e harmonia.
Longe de mim querer demolir o interesse e a beleza poética do Feng Shui. Muitos dos seus princípios buscam a correcta integração entre os elementos construídos e a natureza envolvente. A relação da construção com o exterior, a forma como se integra ou se expõe aos elementos que a rodeiam são exemplos de preocupações antigas da arquitectura e encontram no Feng Shui um enunciado profundo e bastante sólido. Acima de tudo, é uma filosofia profundamente enraizada na cultura do seu país de origem, a China, e o universo místico que a envolve. Não é alheio ao Feng Shui o estudo do I Ching, em que reside uma importante parte das suas origens, bem como as várias correntes da filosofia chinesa, em particular o taoísmo.

O que me incomoda, afinal, são as apropriações ocidentais do Feng Shui que promovem superficial e comercialmente uma doutrina nascida do mais profundo misticismo chinês para o envolver no manto pretensamente científico e indiscutível usual das pseudo-ciências. A esse pretexto vão surgindo supostos especialistas da matéria que invocam as energias, o chi ou o que lhe queiram chamar como factores que determinam o sucesso pessoal ou profissional de uma pessoa. E sem saber ou querer discernir entre o que são conceitos simbólicos da cultura chinesa (o dragão, as estrelas, a montanha, a água, os ventos, as cores) de conteúdos da realidade concreta.
Como forma de dotar o Feng Shui de uma credibilidade pouco discutível, os seus mentores reclamam invariavelmente a sua base científica baseada no estudo da energia solar e electromagnética, a astronomia ou mesmo as leis da física. E fazem-no com o registo pseudo-científico usual, sem demonstração ou correlação lógica, limitando-se a montar um cenário envolvente em que tudo até pode fazer algum sentido: basta ter um pouco de fé.

Trata-se afinal de uma doutrina naturalista e mística da cultura chinesa, cujos conteúdos são interpretativos dos diferentes estados da vida e da Natureza. Esses conteúdos, expostos e desenvolvidos no I Ching, por exemplo, ainda que sejam dotados de uma notável beleza poética e simbólica não devem ser transpostos para o campo da sorte, do oráculo ou da futurologia. Como faz invariavelmente o Feng Shui com as suas esotéricas energias.

[aesthetic ephemera]

Sexta-feira



Weightshift, design feito por quem sabe. Também mantêm um weblog chamado Memo.

[doce murcon]

Quarta-feira

Este blog anda com um ar desanimado. Pronto. É verdade, o mundo é um lugar terrível, mas já experimentaram os donuts? Seja como for, animem-se, é que finalmente o Professor chegou à blogosfera. O doce murcon.

[o não saber de todas as coisas]

Quarta-feira

A ONU lançou o alerta para o aumento do consumo de antidepressivos em Portugal em 45 por cento nos últimos cinco anos. A notícia preocupante tem obtido algum destaque nos meios de comunicação, ainda que não sejam de esperar grandes consequências. No Público, uma pequena chamada de rodapé era também a nota mais relevante: As razões deste consumo exagerado de drogas legais não são conhecidas pelas autoridades portuguesas.

Recordo-me de uma notícia mais antiga, talvez com mais de cinco anos. Num telejornal, uma reportagem denunciava o facto de cerca de um em cada cinco jovens portugueses em idade escolar apresentarem comportamentos indiciadores de depressão, ainda que muito poucos casos viessem a ser reconhecidos (no contexto familiar ou escolar) e devidamente diagnosticados ou merecedores de acompanhamento médico.
Recordo-me porque aquela notícia me assustou. Estamos a falar de pelo menos vinte por cento dos nossos jovens que passam por processos depressivos. Julguei que esta notícia iria provocar alguma espécie de reflexão, mas não. Passou como mais uma onda na maré informativa sem obter eco social ou político. Como mais um daqueles miseráveis factos da vida que fazem parte do fado português.

A pouco e pouco, vamos somando as peças de um grande puzzle que nunca chegamos a ver na totalidade. Recordo então uma outra notícia que nada tem que ver com as anteriores: um inquérito realizado à escala europeia, questionava as famílias sobre quais os valores que gostavam de ver incutidos na educação dos seus filhos. E lá de fora apareciam respostas muito interessantes: a auto-confiança, a imaginação, a sabedoria, a responsabilidade, a capacidade de expressão, entre outras. E em Portugal vinham as prioridades bolorentas do costume: a disciplina, a obediência, o respeito pelos mais velhos.
Chamou-me a atenção porque a auto-confiança (que me recordo aparecia em vários países e chegava a ser a primeira resposta entre os ingleses) nem sequer aparecia entre nós. Parece então que não valorizamos a necessidade dos nossos filhos se sentirem bem na sua pele, de estarem de bem consigo, confiantes com as suas ideias e as suas escolhas. E isso é evidente à nossa volta: não cultivamos a frontalidade, a capacidade de discussão aberta e inteligente. Queremos que os nossos filhos não digam mentiras mas não nos importa se são realmente honestos. Queremo-los obedientes mas não pensantes. Importa-nos que saibam ler mas não necessariamente que saibam falar. Valorizamos a crítica mas não o sentido crítico.

E quem somos nós portugueses afinal senão os filhos de nós próprios. Quem poderíamos nós ser senão os filhos dessa grande depressão, sem auto-confiança e sem imaginação que séculos de obscurantismo, pobreza e repressão religiosa tanto ajudaram a cimentar?
Julgaram alguns intelectuais que depois do 25 de Abril a liberdade saíra à rua e condenados estavam todos os tabus. Mas continuamos a ser os filhos de uma educação onde não se valoriza ou se investe nas pessoas. Um lugar onde não se promove o comportamento consciente, submetido ao flagelo da depressão, da insegurança, aos relacionamentos sustentados na submissão lesiva e na alienação social. Somos todos os filhos deste não saber de todas as coisas.

Escreveu Exupéry: Uma criança mamava numa mãe tão cansada que parecia adormecida. A vida transmitia-se no absurdo e na desordem dessa viagem. Eu considerei o pai. Um crânio pesado e nu como uma pedra. Um corpo curvado no sono desconfortável, comprimido no fato de trabalho, feito de altos e baixos. O homem fazia lembrar um montão de argila. Assim, despojos informes carregam à noite os bancos dos mercados. E eu pensei: o problema não reside de maneira alguma nesta miséria, nesta imundície, nem nesta fealdade. Mas este mesmo homem e esta mesma mulher um dia conheceram-se e o homem certamente sorriu à mulher e por certo depois do trabalho trouxe-lhe flores. Tímido e desajeitado, tremia talvez à ideia de se ver repelido. A mulher, porém, por garridice natural, a mulher segura da sua graça, divertia-se porventura a inquietá-lo. E o outro, que hoje não é mais que uma máquina de cavar ou de martelar, experimentava desse modo uma angústia deliciosa no coração. O mistério está em que eles se tivessem tornado nestes volumes de argila. Em que terrível molde foram metidos e por ele marcados como por uma máquina de embutir? Um animal envelhecido conserva a sua graça. Por que razão este belo barro humano se estragou?
E eu prossegui na minha viagem por entre este povo cujo sono era turvo como um prostíbulo. Pairava no ar um vago ruído feito de roncos roucos, de gemidos débeis, do raspar dos sapatorros dos que, maçados de um lado, experimentavam o outro. E sempre em surdina esse interminável acompanhamento de seixos revolvidos pelo mar.
Sentei-me diante de um casal. Entre o homem e a mulher, o filho, bem ou mal, aninhara-se e dormia. Mas a dormir voltou-se e o seu rosto surgiu-me à luz da lampadazinha. Ah! que rosto adorável! Nascera daquele casal uma espécie de fruto dourado. No meio dessa grosseira manada nascera este prodígio de encanto e de graça. Debrucei-me sobre essa fronte lisa, sobre esse doce trejeito dos lábios, e disse de mim para mim: eis um rosto de músico, eis Mozart criança, eis uma bela promessa de vida. Os principezinhos das histórias em nada se diferenciavam dele: protegido, resguardado, instruído, que não poderia ele vir a ser! Quando, por mutação, nasce nos jardins uma nova rosa, eis que todos os jardineiros se comovem. Isolam a rosa, cultivam a rosa, protegem-na. Mas para os homens não há jardineiro algum. Como os demais, Mozart menino será marcado pela máquina de embutir. Mozart fará as suas alegrias mais altas da música de pacotilha, na fedorentina dos cafés-concertos. Mozart está condenado.