Quarta-feira
Um dos debates clássicos em ciência política é o conflito entre “racionalismo” e “incrementalismo”. A abordagem racionalista consiste em criar aquilo que se entende como o sistema perfeito, identificar quais as actividades e elementos essenciais para o formar e, posteriormente, canalizar os recursos necessários para o por em prática. A segunda abordagem, incrementalista, parte do princípio oposto, de que é impossível criar o sistema perfeito. Assim, ele consiste em construir um sistema a partir daquilo que já existe, começando onde estão as pessoas e os meios e, a partir deles, introduzir um conjunto gradual de transformações com vista à obtenção do melhor sistema possível. Concluindo, tratam-se de abordagens que traduzem a dificuldade em compatibilizar o “real” com o “ideal”.
A nossa cultura teórica e académica promove o pensamento racionalista em prejuízo do incrementalista. É-nos mais fácil conceber um modelo teórico ideal do que conceber o modelo que melhor se adapta à realidade existente, com todas as suas vicissitudes e contrariedades. Um dos problemas do academismo teórico é produzir modelos simplificadores da realidade: é sempre mais fácil dar resposta a uma questão quando a traduzimos em poucas variáveis do que partir da realidade complexa e afinar os múltiplos factores que nela intervêm.
Ambos os métodos têm, em abono da verdade, benefícios e prejuízos. A abordagem racionalista permite promover transformações mais radicais e eliminar entraves, obtendo um maior impacto e visibilidade. No entanto, pode também fomentar soluções do tipo “terra queimada”, desbaratando recursos e “know how” por força de regras impositivas e pouco participadas. Do lado oposto, a atitude incrementalista beneficia a comunicação e a participação, sendo mais transparente e democrática. Ela parte de conservar os recursos existentes e reconhecê-los como parte importante na construção da solução. Mas são-lhe igualmente reconhecíveis alguns contras: os processos de transformação são mais lentos e podem ser pouco motivadores. Por outro lado, a sua permeabilidade à opinião “popular” nem sempre conduz às medidas mais eficazes e correctas: a abordagem incrementalista pode estar mais sujeita à demagogia.
Penso que esta introdução é importante para se reflectir sobre as formas de transformar a qualidade do Estado. Porque se trata de uma estrutura complexa, um organismo disfuncional numas coisas e eficaz noutras. A dimensão do sector público torna difícil afinar os meios e os fins, nem sempre equilibrados e bem distribuídos. Transformar o Estado é assim um processo complexo: o Estado não é uma empresa em que o director pode obter informação sobre um qualquer departamento e actuar directamente sobre ele; é antes um conjunto de organismos com sectores e sub-sectores, autonomias e competências distribuídas a muitos níveis diferentes.
É por isto que a acção de um governo é tão difícil. Deixem-me fazer uma pequena metáfora a respeito do défice público e usar de algum simplismo. O governo consegue medir o défice como quem mede um caudal de água na origem. Ele sabe quanta água introduziu no caudal e que se gastou água a mais do que a que estava disponível; logo houve défice. Mas o governo não consegue actuar sobre todas as torneiras distribuídas pela máquina pública, ele consegue apenas fechar a válvula na origem.
O problema é este, é que ao fechar a válvula, o governo não controla exactamente se se está a retirar água onde ela é esbanjada ou se está a ser aplicada onde verdadeiramente faz falta. Para isso, o governo tinha de ser uma espécie de maestro das mil torneirinhas. E porque não o consegue fazer, o que sucede é que a água se gasta nos sítios mais próximos da fonte, ou seja, do topo da máquina estatal para o fundo, faltando assim nos locais onde essa água (permitam-me) é fundamental para o trabalho técnico específico.
Perdoem a imagem e algum simplismo, mas foi a forma que encontrei para ilustrar parte da realidade do sector público e da sua complexidade.
Julgo que, quer se trate dos meios financeiros ou da capacidade técnica da máquina estatal, é necessário introduzir processos de aferição da Qualidade. Falo de qualidade não como conceito subjectivo mas como um conteúdo concreto monitorizável e perfeitamente definido em termos técnicos.
Para promover a qualidade do estado é necessário que as suas organizações disponham de uma força de trabalho motivada pela compreensão da função que executa e a presença dos meios para a executar. Complementarmente, é fundamental que estejam definidos critérios mensuráveis para a tipologia de trabalho e formas de monitorizar os seus resultados.
Para fazer uma verdadeira Reforma da Qualidade do Estado não é necessário inventar a pólvora, basta adaptar os modelos que vários países já desenvolveram, nomeadamente no norte europeu. Uma grande parte da doutrina desenvolvida ao nível do sector público baseia-se exactamente na introdução de critérios de certificação técnica, em que se fundam os processos de planeamento da Agenda 21 Local para o Desenvolvimento Sustentável, só para dar o exemplo mais mediático.
É necessário promover novas abordagens de prática democrática e do serviço público, envolvendo os processos de gestão e decisão de mecanismos mais transparentes, abertos e monitorizados. Promover uma verdadeira participação dos cidadãos; fazer marketing pela cidadania; compreender que parte crucial da função do sistema público consiste em identificar e responder às aspirações das pessoas; criar um clima de credibilidade mútua entre o público e o privado e não de suspeição constante; evitar controvérsias frívolas e resolver os problemas não com fanatismo mas com inteligência.
Acima de tudo, é necessário que conceitos como os que enunciei se tornem em mais do que chavões e sirvam para produzir doutrina aplicável, traduzida nos procedimentos e interiorizada pelas pessoas que os executam. E há que plantar as sementes de uma verdadeira transformação, sem as quais dificilmente se poderá esperar obter uma boa colheita.
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