Quarteirão da Portugália: um debate público, mas pouco transparente



De acordo com a descrição das alterações feita pelo Diário de Notícias, a discussão pública teve pouco efeito nas intenções de projecto do quarteirão da Portugália. Também o facto de o relatório com as conclusões daquela consulta aos cidadãos não ter sido divulgado leva a concluir que o processo não estará a ser conduzido com a devida transparência.

O período de debate público sobre o projeto do quarteirão da Portugália terminou no dia 18 de junho. Uma notícia publicada no Diário de Notícias no passado dia 6 dá conta de que os serviços técnicos da Câmara Municipal de Lisboa não só elaboraram o relatório com as conclusões extraídas da consulta feita aos cidadãos como estas foram já comunicadas ao promotor, tendo mesmo sido entregue um projecto com as correspondentes alterações.

Não abona à transparência do processo o facto de este relatório não ter sido publicamente divulgado, o que se justificaria pelo enquadramento de impacte relevante daquela operação urbanística, bem como pela contestação suscitada pela construção de um volume edificado com 60 metros de altura que motivou uma petição reunindo localmente mais de 2800 assinaturas.

Da descrição feita pelo DN podemos concluir que a maior alteração é a redução da altura daquele bloco em apenas 11 metros, passando também a ter uma localização mais interior em relação ao que estava inicialmente projectado. Na prática esta exigência reflecte somente o objectivo de minimizar o impacto que o edifício tinha sobre as vistas da cidade a partir do Miradouro do Monte Agudo e da Penha de França, uma vez que a cércea de 49 metros continuará a desrespeitar a regra geral de integração na altura média das fachadas da zona envolvente que, naquela zona da Avenida Almirante Reis, se situa entre os 20 e os 25 metros.

Significa isto que a aprovação daquela proposta só poderá prosseguir com a aceitação da cláusula de excepção do PDM prevista para situações de remate de quarteirão – o que, naquele caso, se afigura de aplicabilidade muito duvidosa. Concretiza-se assim um precedente perigoso que poderá sempre ser invocado pelos promotores imobiliários em zonas consolidadas e cuja admissibilidade já não dependerá tanto da vigência de uma regra geral do PDM mas da aceitação casuística que venha a ser feita pelos serviços da Câmara Municipal de Lisboa.

Outras dúvidas se levantam relativamente à questão dos créditos da construção. Por um lado, o artigo do DN faz um destaque referindo que o aumento de área resultante da aplicação do RSIOUIM é reduzido de 11 mil para seis mil metros quadrados. No entanto, o mesmo texto refere que os serviços técnicos municipais “confirmaram os cálculos efectuados pelo projectista”. Em que ficamos?

Interroga-se se os créditos de construção foram efectivamente reduzidos ou se foram apenas retirados da proposta, em área edificada, mas aceites pela CML, revertendo antes para créditos que o promotor não utilizou, mas de que poderá beneficiar sobre outra forma – transaccionando, por exemplo, no mercado imobiliário ao abrigo daquele mesmo sistema de incentivos.

É assim legítimo questionar a CML quanto ao escrutínio exercido na análise da aplicabilidade dos parâmetros de cálculo do regime de créditos de construção, tendo em conta as fragilidades de alguns fundamentos apresentados: por exemplo, os créditos reclamados pela solução de rega de espaço público – num projecto onde não existe espaço público, mas apenas espaço privado de utilização pública – ou da iluminação pública – tratando-se afinal de um espaço privado.

Se os serviços técnicos confirmaram efectivamente os cálculos efectuados pelo projectista, como refere a CML em resposta ao DN, porque é que esse parecer não consta da documentação divulgada no âmbito do processo de discussão pública? Onde é que está esse parecer, afinal?

Persistem assim justificadas dúvidas sobre o facilitismo e, agora, alguma falta de transparência que parecem envolver o licenciamento desta operação, caso paradigmático do modo como a Câmara Municipal de Lisboa não parece estar a exercer o seu devido papel de mediador entre o interesse privado e o interesse público, sendo mais favorável a permitir o alavancamento dos parâmetros de construção e a correspondente especulação do que a aplicar de forma equitativa as regras de planeamento que todos deviam cumprir.


Sobre este tema ler também: Contributo para o debate público do Quarteirão da Portugália.

Prédio Coutinho: legalidade e decência



A um martelo todos os problemas se parecem com um prego – a expressão parece adequar-se à actuação da Vianapolis que teve como única missão, desde 2004, desalojar os residentes do Edifício Jardim, também conhecido como “Prédio Coutinho”.

Esta sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos – pertencendo ao Estado (60%) e à Câmara Municipal de Viana do Castelo (40%) – foi constituída no ano 2000 tendo por objecto a gestão dos investimentos a realizar no quadro do Programa POLIS, não podendo, de acordo com os seus estatutos, prolongar-se para além de 31 de Dezembro de 2004. No entanto, pelo fundamento único de não se ter concluído o processo de expropriação e subsequente demolição do Edifício Jardim, a Vianapolis conseguiu justificar a sua existência muito para lá do termo previsto para a sua actividade, com os correspondentes encargos em fornecimentos, serviços externos e custos de pessoal, até aos dias de hoje – ver Auditoria à sustentabilidade de empresas de capitais públicos (pág. 30, 31), Tribunal de Contas, 2011.

Como se pode verificar a partir do Portal BASE, só no ano de 2019 somam-se já quase 60 mil euros em Patrocínios Judiciários. Considerados os dados relativos aos últimos dois anos, em assessoria jurídica, financeira e gestão de projectos, temos mais de 130 mil euros, tudo em ajustes directos promovidos pela Vianapolis.

Para lá destes contratos, do Portal BASE figura apenas informação relativa à empreitada de demolição do Edifício Jardim, lançada em 2018 no valor de 1.168.536,41 €, e dois outros processos de 2014 que vale a pena olhar com alguma atenção. Temos, por um lado, uma empreitada de "Reabilitação sobre as patologias associadas às infiltrações nas caves do Edifício Quarteirão (...)", no valor de 247.103,27 €, e ainda a Fiscalização daquela empreitada no valor de 7.960,00 €.

Ora o Edifício Quarteirão é o "edifício de luxo" construído pela Vianapolis, para onde pretendia deslocar os moradores expropriados do Edifício Coutinho. Numa reportagem promovida pelo Público em 2018 podemos ver algumas filmagens evidenciando o mau estado de conservação em que este edifício se encontrava no ano passado.



Parece assim que o Prédio Coutinho se tornou num bom pretexto para a Vianapolis justificar quase 20 anos de prolongada existência, muito para lá da operacionalidade do programa financeiro que lhe deu origem. Acresce a isto que, tendo como único objectivo a expropriação dos seus moradores, esta sociedade serviu para concretizar uma política odiosa pela qual dificilmente um município daria a cara.

Poderá dizer-se que o processo de expropriação do Edifício Jardim seguiu todos os trâmites legais, em todas as instâncias, e que todas elas validaram a posição do Estado contra os proprietários. Mas importa ter presente que existe a questão jurídica mas existe igualmente a questão política. É o próprio Supremo Tribunal Administrativo que o refere: Os tribunais administrativos só tratam de problemas de legalidade, sendo alheios à inconveniência ou ao demérito das opções da Administração.

Foi o Governo Português que atribuiu, no quadro dos poderes que detém, a declaração de utilidade pública das expropriações a realizar, decretadas urgentes, a pedido da sociedade Vianapolis. Uma decisão para a qual nenhum dos cidadãos foi chamado a participar. A este respeito, não coube aos tribunais pronunciarem-se sobre os méritos da decisão de expropriar, mas apenas quanto à legalidade dos actos praticados no âmbito dos respectivos processos.

Importa aliás dizer que seria sempre possível, ao Estado e ao município, regulamentar no sentido de instituir o direito de opção para, a pouco e pouco, ir adquirindo as fracções em falta, ou, em alternativa, accionar a expropriação aquando da transmissão a herdeiros – assegurando o usufruto da presente geração. O processo poderia durar uma ou duas décadas, um prazo insignificante no que respeita ao tempo da cidade, bem maior do que o de um mandato autárquico ou de um POLIS.

Deste modo, ainda que a vitória na via judicial confira ao processo legitimidade jurídica, não serve de atestado quanto à legitimidade política ou à boa qualidade das decisões que lhe deram origem. O Estado de Direito faz-se de Leis mas faz-se também da decência na relação entre o Estado e os cidadãos. Ora estes proprietários não cometeram qualquer crime, não fizeram nenhuma ocupação ilegal, não violaram quaisquer regras.

Cabia ao Estado e à Câmara Municipal de Viana do Castelo levar a cabo uma estratégia negocial que não permitisse chegar à brutalidade social a que temos assistido – uma situação em que proprietários são arrastados para o calvário dos tribunais por uma sociedade que tem todo o tempo e o dinheiro do mundo para litigar contra os cidadãos, actuando como testa de ferro de políticos que não foram capazes de fazer melhor nem quiseram assumir o custo político das suas decisões.