A Câmara Municipal de Lisboa submeteu o projeto de obras de alteração e ampliação do quarteirão da Portugália, também denominado como Portugália Plaza, a debate público. Este processo é obrigatório devido à natureza da operação que promove a construção de um bloco com 60 metros de altura ao abrigo de uma cláusula de excepção do regulamento do PDM prevista para situações de remate de quarteirão, excedendo em duas vezes e meia a média das alturas das fachadas da zona envolvente – estimada em cerca de 25 metros a partir da análise das peças desenhadas disponíveis.
Pese embora a polarização do debate através das redes sociais que tantas vezes contribui para uma lógica de entrincheiramento de posições, contra ou a favor, revela-se evidente que existe um genuíno desejo de participação por parte dos cidadãos. A principal motivação para tal reside no sentimento adverso quanto à opção pela construção em altura que gera uma desconformidade com a estrutura de quarteirões existente. O processo parece, no entanto, dificultado pelos equívocos gerados por uma discussão centrada mais na apresentação do projecto de arquitectura em prejuízo de um olhar mais vasto sobre o enquadramento urbano da operação que ali se propõe levar a cabo, declarada de impacte relevante e/ou semelhante a operação de loteamento.
Aspecto de decisiva importância na compreensão desta operação imobiliária é o seu respaldo no Regulamento Municipal que aprova o Sistema de Incentivos a Operações Urbanísticas com Interesse Municipal (RSIOUIM). Este regulamento, em vigor desde 2013, prevê a concessão de um aumento da área de construção a operações urbanísticas que prossigam determinados objectivos considerados de interesse estratégico para o município tais como a promoção da habitação, a melhoria da qualidade habitacional, da acessibilidade e segurança dos edifícios, a salvaguarda e valorização do património ou o desempenho energético e a sustentabilidade ambiental.
Ao abrigo deste sistema de incentivos, o projeto Portugália Plaza reclama um acréscimo de superfície de pavimento de 11.049,10 m2, a somar ao valor base resultante da aplicação dos índices previstos no Regulamento do Plano Director Municipal de Lisboa (RPDML), de 18.022,25 m2, resultando uma área total de 29.071,35 m2. Trata-se de um acréscimo de 60% à área edificada de que resulta uma área bruta de construção de 44.411,83 m2, bastante superior à área anteriormente existente de 27.201,00 m2.
O acréscimo expressivo de capacidade edificatória gerado pelos efeitos do modelo de cálculo dos créditos de construção previsto no RSIOUIM não pode deixar de causar alguma perplexidade. Essa é uma reflexão que transcende, é certo, o âmbito específico deste processo de discussão pública. No entanto, afigura-se claro que o actual modelo não estará devidamente calibrado, em especial pela ausência de mecanismos capazes de equilibrar a relação entre o benefício gerado e a realidade envolvente, em particular em zonas consolidadas. Esta circunstância agrava-se pelo facto da fórmula de cálculo, aplicada em função da área de lote da operação, não prever uma degradação gradual da majoração do índice de edificabilidade que evite acréscimos de área desproporcionados, de impacto excessivo no caso de grandes parcelas urbanas, como parece suceder no actual projecto.
Os méritos deste regime são aliás bastante questionáveis. Se é certo que os municípios devem actuar no sentido de incentivar o investimento, especialmente em alturas de crise, importa igualmente considerar a sua acção enquanto reguladores do mercado em momentos de euforia do imobiliário. O argumento a favor do aumento de áreas parece ser a vontade de prosseguir uma estratégia de densificação de que resulte a redução do preço por m2 da construção, em geral, e da habitação em particular. No entanto, deveria considerar-se o efeito inflaccionário gerado por esse aumento do potencial edificatório no custo do solo urbano – cujo impacto se verifica não só sobre as parcelas disponíveis mas também sobre a envolvente consolidada. Para lá disto, resta ponderar todos os custos gerados em cargas sobre as infraestruturas urbanas e demais solicitações impostas ao território da cidade, que uma gestão de curto prazo – mais centrada sobre os efeitos imediatos em acréscimo de receitas por via das taxas sobre a edificação – poderá, erradamente, desprezar.
Sendo o aumento de área de construção gerado ao abrigo do RSIOUIM, como atrás descrito de forma detalhada, um aspecto absolutamente nevrálgico à natureza desta operação imobiliária, exige-se à Câmara Municipal de Lisboa o escrutínio cuidado sobre os parâmetros invocados para a obtenção de créditos de construção – que resultam no aumento de área atrás referido da ordem dos 11.049,10 m2. Ora, muito justamente, o parecer técnico elaborado pelo Departamento de Licenciamento de Projectos Estruturantes da CML – refira-se, muito bem redigido – propõe exactamente que esses parâmetros sejam analisados pelos Serviços do Departamento de Planeamento Urbano tendo em vista a apreciação da justificação do cálculo dos créditos de construção propostos. Lamentavelmente, o despacho proferido pelo Chefe de Divisão de Projectos de Edifícios sobre este parecer não dá seguimento àquela proposta, invocando ser dispensável a consulta ao Departamento de Planeamento, uma vez que resulta claro a opção tomada e justificação apresentadas para a aferição dos créditos da construção.
Ao fazê-lo, este responsável por aquele serviço do município está a sabotar – com uma fundamentação muito débil – o dever de escrutínio que é devido à Câmara Municipal de Lisboa numa questão de tão grande relevância, em especial no contexto de um projecto de reconhecido impacto urbanístico. Diga-se, aliás, que o acesso a um tal parecer, analisando em detalhe a aplicação dos parâmetros do RSIOUIM e os seus resultados, seria de enorme benefício para o processo de discussão pública que está presentemente em curso – e que, naturalmente, a sua ausência empobrece este processo.
Importa, no entanto, ir um pouco mais longe. Mesmo que se verifique o pleno enquadramento das áreas da proposta nos termos daquele regulamento não devem deixar de ser ponderados os efeitos de tal operação sobre a estrutura urbana envolvente. Em boa verdade, o precedente que parece materializar-se no projecto do quarteirão da Portugália não será tanto o aproveitamento deste regime de incentivos; esse é um enquadramento que certamente todos os promotores que operam na cidade de Lisboa – e em especial os de maior capacidade financeira – estarão a aproveitar para exponenciar o retorno dos seus investimentos. A questão coloca-se mais quanto ao modo como se materializa e justifica a desconformidade gerada por aqueles índices de edificabilidade.
Ao invocar o respaldo na cláusula de excepção do PDM, previsto para situações de remate de quarteirão, para assim sustentar um aumento de altura da construção superior à média das alturas das fachadas da zona envolvente em duas vezes e meia, dos 25 para os 60 metros, este projecto conforma um precedente perigoso que outros promotores irão invocar para levar a cabo operações semelhantes em áreas consolidadas. Parece evidente que aquela cláusula tem por intenção viabilizar a singularidade em casos onde tal se justifique, permitindo ir além dos limites estabelecidos para o caso geral. No entanto, já não se afigura razoável invocar aquela excepção para obter um benefício de tal ordem que constitui, em boa verdade, a completa ausência da regra.
A permitir-se tal precedente, a ocorrência de desconformidades em situações de impacto relevante poderá vir a ocorrer pela cidade consolidada, de forma casuística, motivada pela capacidade dos promotores imobiliários em explorarem habilidosamente o artifício criado pelo RSIOUIM, de modo absolutamente imprevisível e alheio ao enquadramento estabelecido pelo plano director da cidade.
O argumento apresentado quanto à generosidade da criação de uma permeabilidade de acessos ao interior do quarteirão e a oferta de 3.000,00 m2 de espaço de usufruto público, conformando um benefício e uma contrapartida resultante da opção pela construção em altura, parece empalidecer perante os valores de superfície de pavimento e área bruta de construção do projecto. Esta é, indiscutivelmente, uma operação que procura potenciar ao máximo os limites de edificabilidade, de que resulta a impermeabilização total do quarteirão e uma previsível carga sobre a envolvente, tanto ao nível da malha rodoviária como das restantes infraestruturas – com os condicionalismos e as vulnerabilidades próprias de um contexto urbano consolidado.
Fica pois a interrogação quanto à necessidade de ir tão longe para viabilizar o sucesso e a rentabilidade de uma tal operação. É certo que, tantas vezes, nada fazer também é destruir. E que travar a reabilitação daquele quarteirão poderá significar a perda irremediável da antiga fábrica, hoje devoluta. Importa também considerar que está em causa a reactivação de um vazio urbano de enorme importância, de que poderá resultar um contributo de grande valia para a vivacidade social e económica daquela zona da cidade. Mas pende também sobre a arquitectura o dever de ponderar as diversas tensões em presença no espaço urbano – um dever que passa também pela necessidade de ouvir os cidadãos e acolher os seus anseios. O projecto de arquitectura é, assim mesmo, o lugar privilegiado para esse diálogo cívico que a todos diz respeito.
Este texto foi intencionalmente publicado sem quaisquer imagens da proposta. Toda a documentação relativa ao projecto do Quarteirão da Portugália está disponível para consulta no sítio web da CML, incluindo muitas imagens de previsualização e fotografias da situação existente. Pareceu sobrepor-se, no entanto, a necessidade de não deixar uma reflexão crítica contaminar-se por essa informação. Discutir urbanismo e arquitectura vai muito além daquilo que as imagens nos mostram e, por vezes, nos ocultam.
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