Valor tributário e valor de mercado (2/2): qual é o valor tributário de uma moradia de 1 milhão de euros no Restelo?



Ainda que o valor patrimonial tributário possa pontualmente ser superior ao valor de mercado, em particular nas habitações de menor custo, o modelo de cálculo utilizado pela Autoridade Tributária faz com que os imóveis mais onerosos sejam avaliados com um valor muito inferior. Por este mesmo motivo, uma casa com valor tributário de 500 mil euros terá sempre um valor de mercado muito mais elevado, dificilmente ao alcance de pessoas com rendimentos equiparáveis aos da classe média. [1/2]

Para melhor ilustrar o desfasamento entre o valor patrimonial tributário e o valor real de mercado, resultante do modelo de cálculo utilizado pela Autoridade Tributária para a avaliação de imóveis, tomemos como exemplo uma moradia no Restelo com valor superior a 1 milhão de euros.

O exercício tem por base um caso real extraído do sítio web de uma popular imobiliária: uma habitação unifamiliar isolada de dois pisos com garagem para duas viaturas, com área bruta privativa de 240 metros quadrados e área bruta dependente de 45 metros quadrados, num terreno de 350 metros quadrados, à venda por um valor superior a 1.250.000 euros.

Considerou-se o coeficiente de localização mais punitivo, com o majorativo máximo de 3,5, aplicando-se ainda majorantes de qualidade e conforto relativos à tipologia (moradia), existência de garagem individual, sistema central de climatização e localização excepcional.

O valor patrimonial tributário resultante varia conforme a idade do prédio, da qual resulta o importante coeficiente de vetustez. Sendo o Bairro do Restelo da década de quarenta do século passado, consideraram-se para efeitos deste exercício três valores possíveis para a idade: (mais de) 60 anos, 20 anos (no caso de uma recuperação relativamente recente), ou apenas 1 ano (para identificar o valor de avaliação mais elevado possível). Os resultados são os seguintes:

— 60 anos: valor patrimonial tributário de 377.770,00 €;
— 20 anos: valor patrimonial tributário de 549,480,00 €;
— 1 ano: valor patrimonial tributário de 686.850,00 €.

Temos assim que os valores obtidos são, nos casos mais elevados, próximos de metade do preço de venda do imóvel. Na situação mais favorável, com o coeficiente de vetustez máximo, atingimos mesmo um valor patrimonial inferior a 400 mil euros.

Importa relembrar que o coeficiente máximo aplicado neste caso (de 3,5) só é aplicável a localizações de excepção no território nacional, em Lisboa ou no Algarve (Baixa-Chiado, Bairro do Restelo, frente do Parque das Nações, Quinta do Lago, Vale de Lobo). Os coeficientes de localização em Lisboa podem variar entre 1,6 e 3,5; no Porto entre 1,5 e 2,5 (com uma excepção de 3 para a Avenida de Montevideu); em Setúbal entre 1,4 e 1,75; em Coimbra entre 1,35 e 2,45 – para dar apenas alguns exemplos.

Este exercício permite-nos confirmar que um imóvel com valor tributário de 500 mil euros é, na verdade, um imóvel com preço de mercado próximo do dobro deste valor. De igual modo, um imóvel transacionado no mercado por valores próximos do meio milhão de euros tem um valor patrimonial bastante inferior.
Quando confrontamos a realidade destes factos e destes números com a retórica inflamada que está a ser propagada pela mídia portuguesa temos de nos interrogar sobre quem representam e que interesses defendem afinal os seus editorialistas e comentadores.

Valor tributário e valor de mercado (1/2)

A criação de um imposto progressivo sobre o património imobiliário de luxo abrangendo imóveis com valor superior a 500 mil euros tem motivado as reacções mais diversas. Entre os vários argumentos apresentados pelos críticos da proposta está a ideia de que este imposto irá atingir a classe média por incidir sobre bens imóveis de valores inflacionados pelas avaliações das finanças, sem qualquer correspondência com a realidade do mercado. Trata-se de um argumento completamente falso – tanto mais falso quanto mais elevado é o valor de mercado dos imóveis. Vejamos porquê.

O cálculo do valor patrimonial tributário tem por base a atribuição de um valor médio de construção por metro quadrado de 482,40€, considerando-se um acréscimo de 25% como correspondente ao metro quadrado do terreno de implantação. Resulta assim, pelos termos estabelecidos para 2016 (e que se mantêm inalterados desde 2010), um valor base de 603,00€.
Estamos na presença de um parâmetro de referência baixo, mais próximo da realidade dos imóveis de menor custo – um apartamento suburbano – e bastante distante do custo por metro quadrado de um imóvel no centro de uma cidade ou de uma moradia unifamiliar num bairro bem localizado.

É sobre o produto daquele valor com a área da habitação que vão incidir os restantes parâmetros de cálculo tais como os coeficientes de localização, de qualidade e conforto ou de vetustez. Mas antes temos de considerar o efeito do denominado “coeficiente de ajustamento de áreas”, dado que faz reduzir gradualmente o valor base à medida que a área de uma habitação vai aumentando, até atingir apenas 80% daquele valor para as áreas superiores a 220 metros quadrados – ou seja, apenas 482,40€.
Significa isto que quanto maior é a área de uma habitação menor é o valor base aplicado no seu cálculo – dado que favorece as casas com maiores dimensões e penaliza as casas mais pequenas.



Dos diversos coeficientes que incidem para o cálculo do valor patrimonial tributário, o coeficiente de localização é aquele que tem por função reajustar o valor base às realidades do mercado, estabelecendo a diferenciação entre o custo de um imóvel num subúrbio ou num centro urbano, numa zona de menor qualidade urbanística, num bairro histórico ou num condomínio de luxo. Sucede que este coeficiente tem um valor majorativo máximo de 3,5, resultando, nos casos com maior penalização, um valor base de 2.110,50€ – com efeito por inteiro apenas até aos 100 metros quadrados, reduzindo progressivamente por acção do referido coeficiente de ajustamento de áreas anteriormente descrito (ver imagem acima).

Estamos a falar de um factor (3,5) só aplicável a localizações de excepção, em Lisboa ou no Algarve, tais como a Baixa-Chiado, o Bairro do Restelo, a frente do Parque das Nações, a Quinta do Lago ou Vale de Lobo. Locais onde o custo de mercado de uma habitação atinge facilmente valores da ordem dos 3.500,00€ ou 4.000,00€ por metro quadrado, podendo mesmo ser superior.

Muito dificilmente a acção conjugada do coeficiente de qualidade e conforto com o coeficiente de vetustez irá aproximar os parâmetros de cálculo para valores daquela ordem de grandeza. Em alguns casos, tais como o Bairro do Restelo e outros bairros históricos, o efeito da antiguidade ditará mesmo a redução daquele parâmetro para menos de metade, tornando o valor patrimonial tributário muito distante do preço real dos imóveis – situação que tenderá a ser semelhante ao caso das heranças onde o factor de vetustez terá tendência para ser também mais favorável.

Ainda que o valor patrimonial tributário possa pontualmente ser superior ao valor de mercado, em particular nas habitações de menor custo, o efeito conjugado dos diversos parâmetros de cálculo faz com que os imóveis mais caros sejam avaliados pelas finanças com um valor muito inferior. Por este mesmo motivo, uma casa com valor tributário de 500 mil euros terá sempre um valor de mercado muito mais elevado, dificilmente ao alcance de pessoas com rendimentos equiparáveis aos da classe média.

Tendo em conta que estamos perante a proposta de criação de um imposto progressivo, cuja incidência abrangerá um universo reduzido de cidadãos com património de grande valor, a histeria que vem sendo levantada em torno desta possível medida parece assim reflectir não uma preocupação com os cidadãos mas um desfasamento entre comentadores e editores de órgãos de comunicação, preocupados que estão em proteger as circunstâncias de uma pequena minoria, da realidade social em que vive a maioria dos portugueses.

Exposição Habitar Portugal em Évora



Depois de ter passado pelo Porto, Coimbra, Viseu e Tomar, chega agora a Évora a exposição Habitar Portugal 12-14. É a quinta de um conjunto de mostras que tem percorrido o território nacional, dando a conhecer uma selecção de 80 obras de arquitectura construídas no triénio 2012-2014.

O período a que esta edição corresponde é coincidente com o programa de resgate financeiro a que Portugal esteve sujeito. Quis-se, por isso, analisar e compreender o impacto que inevitavelmente este facto teve na prática dos arquitectos portugueses. A observação destas obras não torna evidente uma preocupação específica com os programas ou as actuações que, de uma forma ou de outra, incorporaram a actual situação social, política e económica como um seu motivo. Procura, antes, perceber qual o impacto desse estado que ainda não sabemos quanto de transitório terá, de que formas se manifesta e que consequências deixa.

A exposição tem inauguração marcada para o próximo Sábado, 24 de Setembro, às 17h30, no Fórum Eugénio de Almeida, onde estará patente até ao dia 30 de Outubro. Mais informações disponíveis na página da Ordem dos Arquitectos.

A queda de Sirius



O Nerdwriter tem vindo a estabelecer-se como um dos melhores canais de cinema no YouTube. Um dos seus mais recentes vídeos – What The Truman Show Teaches Us About Politics – apresenta uma análise do filme The Truman Show, estreado em Portugal com o título “A Vida em Directo” no ano de 1998. Em causa está muito mais do que destacar os contornos visionários da obra de Peter Weir, seja pelo advento da vigilância de massas ou da omnipresença da reality tv. Trata-se antes de olhar para a perturbadora correlação entre o cenário simulado de Seahaven e a sociedade em que vivemos.



Evan Puschak, autor do Nerdwriter, faz notar que a sobrevivência do mundo fictício que rodeia Truman Burbank carece de muito mais do que um exército de actores ou uma parafernália de tecnologia oculta. Para lá de tudo isto, a existência de Seahaven depende de um factor muito mais simples: que o próprio Truman acredite que aquele mundo é verdadeiro.
Do mesmo modo, Evan propõe que também o mundo em que vivemos precisa que acreditemos nas suas regras. Que, acima de tudo, a sustentação de uma ideia de realidade depende de nos mantermos imóveis na perspectiva da verdade que ele nos apresenta.

Assim, tal como a queda de uma estrela artificial ou os vislumbres por detrás do cenário vão servindo de perturbador alerta na vida de Truman, também os sinais alarmantes do presente nos vão revelando as fragilidades de uma realidade que outrora julgávamos tão robusta e perene. E, no entanto, tal como Truman, também nós temos dificuldade em enfrentar a inquietação do que esses sinais nos revelam, preferindo o conforto daquilo que sempre tomámos como certo e nos é familiar a, em alternativa, despertar para o desconhecido.



Curiosamente, é um pouco sobre isto que nos fala um recente vídeo de Derek Muller no Veritasium. The Illusion of Truth aborda o conceito de conforto cognitivo , definição do campo das neurociências para a tendência humana em acreditar naquilo que nos é mais familiar. Dito de forma simples, as coisas a que somos expostos constantemente parecem-nos mais verdadeiras.

Ainda que se trate de um mecanismo essencial no reconhecimento intuitivo de factos sobre o mundo que nos rodeia, o conforto cognitivo pode ser estimulado artificialmente de modo a tornar-nos mais susceptíveis a aceitar determinadas ideias – facto bem conhecido no campo da publicidade ou do marketing político. O conforto cognitivo é fácil e não requer grande esforço da mente humana. Ideias que desafiam as nossas convenções ou preconceitos, por outro lado, requerem esforço. O pensamento crítico contraria a nossa intuição e afasta-nos do estado de segurança mental para que tendemos a mover-nos por defeito.

Talvez seja por tudo isto que, tal como Truman, nos sintamos mais confortáveis não questionando aquilo em que acreditámos durante toda a vida, mesmo perante as evidências crescentes de falsidade que vão rompendo o cenário em nossa volta. Num tempo em que a tecnologia tornou instantânea a partilha e a disseminação de entendimentos da realidade, nunca foi tão fácil estimular o nosso conforto cognitivo e promover convicções familiares com que nos sentimos bem. Mas talvez devêssemos também ter presente que os mecanismos da nossa inteligência são falíveis e que se queremos distinguir entre os factos e a fantasia poderemos ter de pagar o preço de viver no desconforto da dúvida, da incerteza e do desconhecido, tão próprios de quem carrega o seu pensamento crítico pelo mundo.

Dos mega-eventos como modelo de investimento


Imagem: Tércio Teixeira.

A abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro no início de Agosto ficou marcada por várias acções de protesto na cidade, chegando a registar-se situações de confronto entre manifestantes e polícia militar. A tensão que antecedeu o evento foi o corolário de um processo de contestação que se estendeu durante vários anos. Em causa estava o desagrado perante os gastos elevados envolvidos na preparação e promoção de mega-eventos desportivos num contexto de fortes contrastes e profundas carências sociais e económicas.

Estima-se que mais de 60 mil pessoas tenham sido expropriadas de suas casas na cidade do Rio no decurso do processo de preparação da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Grupos de residentes promoveram campanhas nas redes sociais para salvar as suas comunidades, denunciando os métodos intimidatórios utilizados pelas autoridades brasileiras. A repercussão internacional destas acções de protesto chegou mesmo a justificar o envolvimento da Amnistia Internacional, lançando uma vasta petição pelo fim das “remoções compulsórias”.

Ainda que a retórica institucional invoque a melhoria de condições de vida para os realojados, alguns investigadores denunciam o que se tornou numa estratégia de planeamento urbano assente na deslocalização das populações mais pobres para zonas periféricas, deixando os territórios desocupados livres para receber novas infraestruturas – quase sempre através de modelos de parceria público-privada – e bairros residenciais de luxo. Em causa está um processo de sanitização social que motivou a crítica aos Jogos Olímpicos como tratando-se dos “jogos da exclusão”.


Imagem: Mario Tama.

Pese embora o enquadramento de desigualdade social vivido no Brasil, a vaga de contestação popular que ali teve lugar não é, de forma alguma, um caso único. Das críticas ao despesismo dos Jogos Olímpicos de Atenas em 2004 aos confrontos violentos que assolaram a cidade de Milão no dia de abertura da Exposição Universal de 2015, não esquecendo o escândalo de corrupção que envolve a organização do Mundial do Qatar em 2022, incluindo o drama das condições desumanas a que estão sujeitos os trabalhadores da construção civil naquele país (com registo de mais de mil mortes nos últimos quatro anos), são cada vez mais recorrentes as vozes que se erguem em oposição à organização de mega-eventos um pouco por todo o mundo. Falamos afinal de iniciativas que envolvem avultados investimentos públicos que se acabam por traduzir, tantas e tantas vezes, em casos notáveis de tráfico de influências e más práticas de gestão.

As patologias que envolvem estes processos são bem conhecidas: da sub-orçamentação de custos às expectativas de retorno inverosímeis, os mega-investimentos são o exemplo paradigmático do benefício dos agentes privados – primeiramente actores no lobbying político em favor da sua realização e, posteriormente, intermediários na ocultação do endividamento público – participando, sem risco, sob o manto das garantias contratualmente assumidas pelos promotores estatais.

O risco público, no entanto, é imenso, sendo certo que os mega-eventos não podem falhar. Os intermediários sabem que os projectos têm de ser concluídos a qualquer preço e que, aconteça o que acontecer, os contribuintes serão chamados a pagar a conta, qualquer que seja o custo final.
Estamos assim na presença de um modelo de investimento de difícil controlo, levado a cabo em contextos de enorme pressão temporal e, consequentemente, de uma grosseira simplificação de procedimentos, centralização do processo de decisão e reduzido escrutínio público. Os resultados são evidentes na pouca transparência que os envolve e no favorecimento de fenómenos de corrupção.

Perante o desencanto generalizado que despertam nas populações, os mega-eventos parecem agora repercutir apenas os desejos autocráticos dos seus promotores, beneficiando da complacência política crescente das organizações que os tutelam para com países onde estão ainda ausentes mecanismos de monitorização independente. Deixam, no entanto, atrás de si, em tantas cidades e sobre aqueles que as habitam, um rasto de infraestruturas abandonadas e um acumulado de dívidas que pode levar muitas décadas a saldar.

Referências:
1. CityLab: Mega-Events Are a Disease – Seven reasons they’re so terrible for cities; Eric Jaffe;
2. Jacobin: A Better Olympics Is Possible – We can turn the Olympics from a corporate wonderland into a place of mass celebration and popular competition; Mark Perryman;
3. Politize!: Copa do Mundo e Jogos Olímpicos, Valeu a pena?; Bruno André Blume;
4. Olympic Favela – an ongoing photography and video project that visualizes the effects of forced removal of residents in 14 of Rio de Janeiro’s favelas, implemented by the city government in preparation for the 2016 Olympic Games; Marc Ohrem-Leclef;
5. Co.Design: Photographing A Different Side Of The Olympics: The People They Evicted – The games are over, but their impact on Rio will last for generations, for better or worse; Meg Miller;
6. CityLab: The Families Displaced by the Rio Olympics – The photographer Marc Ohrem-Leclef documents the effects of forced evictions in the favelas; Eillie Anzilotti;
7. Mail Online: Living in the shadow of the Olympics – Inside Brazil’s ‘favelas’ just yards from stadium where hundreds of millions of dollars have been spent ahead of the Rio Games; Gareth Davies;
8. Vice: Por dentro das manifestações contra os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro; Angela Almeida, John Surico;
9. Dezeen: Anti-Expo protests turn violent in Milan;
10. The Guardian: Expo 2015, What does Milan gain by hosting this bloated global extravaganza?; Milan’s Expo is one of the most controversial world’s fairs ever staged in Europe. Oliver Wainwright inspects the pavilions of the 140 participating countries and assesses what the Italian city has to show for its seven-year struggle; Oliver Wainwright.