[para lá do ecrã]

Quinta-feira



Um dia os arquitectos vão poder deslocar-se ao sítio da implantação do edifício e, com a ajuda de um interface digital, serão capazes de esquiçar e projectar no local. Esse interface talvez consista num par de óculos devidamente aligeirados e anatómicos que fundirão elementos digitais com a visão do real. Depois, ajudado por um dedal informático, o projectista poderá percorrer pelos menus do programa que só ele é capaz de ver e inserir elementos: linhas, grelhas, planos, volumes e formas irregulares. No local, o utilizador poderá aceder à internet e inserir todo o tipo de elementos que quiser naquele espaço que ele está a construir dentro da máquina, sob o pano de fundo do sítio verdadeiro.
Naquele universo entre o real e o simulado, o projectista conduzirá os elementos como um maestro, linhas para aqui, volumes para ali, experienciando-os em primeira mão como se já lá estivessem.

Mas, para já, é melhor levar um bloco e a lapiseira...

BOM ANO A TODOS!

[dentro do quadro]

Quinta-feira



A propósito da forma como a tecnologia se encaminha para a capacidade de reproduzir (virtualmente) mundos completamente realistas, a ponto de se poder imaginar que um dia a percepção do virtual e do real se irão fundir, é possível fazer todo o tipo de extrapolações interessantes.

Quando olhamos para o interface actual entre o nosso mundo e o mundo da máquina, ou seja, para o computador, podemos detectar como esse interface é rudimentar. Um ecrã, um teclado e um rato são filtros pesados entre o observador e o universo virtual. Mas o tempo virá em que esse interface será mais adaptado à orgânica do corpo, deixando de ser um obstáculo mas uma extensão da nossa percepção: um upgrade.

É certo que uma tal tecnologia irá permitir a realização de todo o tipo de perversões e alienações, que de resto já existem de formas menos sofisticadas. Mas podemos também imaginar que essa tecnologia permitirá concretizar aplicações muito positivas.

Imaginemos por exemplo que um(a) jovem está a estudar a pintura de Van Gogh. Tradicionalmente obterá a informação que procura nos livros ou na internet, assim contactando com reproduções dos quadros. Um professor transmitirá os fundamentos da história, vida e referências do pintor.

Imaginemos agora uma experiência inteiramente diversa. Numa realidade virtual, o/a jovem percorre um museu onde está presente toda a obra de Van Gogh. Pára em frente a um quadro, imaginemos, a famosa Ponte de Langlois em Arles. Depois de olhar atenciosamente, clica no quadro e, subitamente, tudo se transforma à sua volta. Já não está num museu, mas dentro da própria realidade do quadro, envolvido pelas cores, os traços e, porque não, os sons imaginários de uma realidade simulada: o mundo do quadro.
Passeando um pouco pela beira do rio alguém se aproxima. O próprio Van Gogh entra dentro do quadro e fala com o/a jovem. Agora, a envolvente transforma-se novamente e estamos na beira do rio verdadeiro (simulado), junto da própria ponte em Arles, como ela era quando Van Gogh a pintou. E ali, pela voz (virtual) do próprio, ouvimo-lo contar as histórias que envolveram aquela fase da sua vida, dos seus quadros e do seu conturbado percurso artístico.

Um Van Gogh imaginado, professor digital de si próprio. Porque não?

[minimalize this]

Quinta-feira



A Barriga De Um Arquitecto transformou-se. Naquela que será (espero) a grande alteração do template para os próximos tempos decidi adoptar uma formatação mais minimal e intuitiva mas também mais livre, solta, enfim, freak. É quase certo que nem todos irão gostar.

Numa primeira reacção, o Afonso perguntava nos comentários qual a razão para alguns links aparecerem riscados. O motivo é intencional, sendo a forma de assinalar aqueles links que cada um já visitou. De certo modo, trata-se de devolver ao blog um carácter de bloco de apontamentos, com uma bagagem pessoal. Os ícones também mudaram, estão mais pequenos e a preto ou cinzento, que são também os tons escolhidos para o texto. Um novo ícone assinala igualmente a lista de blogs ao fundo da barra de links: uma malinha da Logstoff (obsessões, não perguntem).
O minimalismo é uma atracção quase inevitável para aqueles que trabalham a imagem nas suas várias formas. A certo ponto nasce a vontade quase irresistível de retirar formatações, as cores, os feitios e ver o que fica de substância. A simplicidade, deseja-se, nada tem que ver com simplismo. Retirar e reduzir são formas, afinal, de apurar, remover as costuras e ver a forma como ela é.

Existem vários blogs cuja imagem sempre me atraiu. O (sempre genial, sim) Notes From Somewhere Bizarre talvez seja o que mais me influenciou nesta última transformação. Mas sempre gostei muito do Purse Lip Square Jaw e do Space And Culture. São blogs à séria que provam que com pouco se faz muito.

Para trás ficam os tempos das tonalidades relaxantes de fundo com a imagem de capa de uma seara verde e o azul claro do céu no horizonte. Aos mais melancólicos peço-lhes que não desesperem. O minimalismo é como a schweppes, aprende-se a gostar...

[realidade roubada]

Quarta-feira



Um texto intitulado Los Angeles: Grand Theft Reality apresenta uma análise sobre a evolução visual dos jogos de computador nos últimos anos e a sua direcção a caminho da criação de mundos virtuais. Comparando o recente jogo Grand Theft Auto: San Andreas com a realidade, o artigo do City Of Sound desenvolve o culto dos jogos de video e a aproximação crescente entre o cinema e os jogos.

Ainda que os visuais dos jogos de computador estejam longe de se aproximar da realidade, começam a ser suficientemente sofisticados para beneficiar de componentes da realidade na sua experimentação (A única forma real de jogar GTA é conduzir interminavelmente, construindo o nosso próprio mapa mental da cidade. Para mim, isto é tal como na realidade). Uma das passagens mais interessantes do texto é a sua comparação entre a realidade exagerada de GTA e a verdadeira Los Angeles, apresentando excelentes imagens – o real contrastado com o virtual.

Apesar das limitações técnicas que existem, é hoje evidente que os jogos caminham rapidamente no sentido de reproduzir mundos simulados que irão concretizar interpretações (artísticas) da realidade, à semelhança daquilo que Michael Mann faz com Los Angeles no seu recente Collateral. Parece-me extremamente interessante este aspecto, de que à medida que tecnicamente nos aproximamos da reprodução virtual da realidade total, a realidade e a virtualidade se separem pela introdução de um elemento artístico, interpretativo, na criação dos mundos dos jogos.

Uma das extrapolações mais interessantes sobre esta evolução é também a dúvida de como tudo isto irá alterar a forma como nos relacionamos com a leitura da realidade objectiva. Se tivermos mecanismos de experienciar em absoluto uma representação virtual da realidade, será essa uma forma de experienciar também a informação (a guerra, por exemplo)? Irá o relato jornalístico ser suplantado pela possibilidade de experienciar em primeira pessoa (first-person) os eventos reais. Experienciar, por exemplo, a nossa imersão virtual na ocorrência de um tsunami? Construir novas memórias de eventos que nunca aconteceram, também eles interpretações simuladas de uma realidade impossível de captar?

[à espera do desastre]

Terça-feira

Enquanto se vão revelando os efeitos do terrível maremoto que assolou a Ásia volto a publicar um texto sobre a realidade portuguesa e os riscos de ocorrência de um sismo em Portugal.

À Espera Do Desastre

A primeira legislação portuguesa contemplando a resistência das construções a esforços sísmicos foi publicada em 1958. Quase meio século depois continua a construir-se em Portugal desrespeitando a lei, o bom senso e a ética, deixando grande parte dos edifícios em incumprimento dos regulamentos e vulneráveis a um desastre previsível.

Construção anti-sísmica é um termo leigo para definir a capacidade que um edifício pode ter para resistir aos esforços que resultam da ocorrência de um sismo. Nenhum edifício, por mais resistente que seja, pode resistir a todo e qualquer tremor de terra. As preocupações expressas na legislação da construção têm por objectivo conferir aos edifícios uma capacidade estrutural que garanta níveis de resistência satisfatórios perante a ocorrência provável de um sismo de intensidade razoável. De certo modo, é o mesmo que dizer que uma porta corta-fogo não é uma porta que resiste indefinidamente a um incêndio, mas sim uma porta que garante a resistência às chamas, à temperatura e à passagem de fumos durante o tempo suficiente para permitir a evacuação de pessoas em segurança.
As vibrações resultantes de um tremor de terra transmitem-se aos edifícios através das fundações. Os efeitos decorrentes propagam-se depois através dos elementos estruturais da construção, os pilares, as vigas e as lajes, afectando depois todos os restantes elementos do edifício. A intensidade desses efeitos resulta da duração do sismo e da frequência de vibração do solo, e pode resultar de pequenas fissuras até danos estruturais, culminando no possível colapso da edificação.

Apesar de não se poder prever a ocorrência de um sismo, as suas consequências podem ser minimizadas. As acções preventivas podem e devem fazer-se a vários níveis, tanto no planeamento e construção urbanística, como ao nível da protecção civil e da sensibilização da população geral. Infelizmente, verificamos que em Portugal os erros se cometem em cima dos erros, silenciosamente satisfeitas as diversas entidades uma vez que “a lei é boa”.

A gravidade da situação começa ao nível do licenciamento dos edifícios. Apesar da existência de legislação específica, muitas Câmaras Municipais não dispõem de capacidade técnica para averiguar se os projectos de estabilidade dos edifícios garantem os níveis de resistência sísmica previstos em regulamento. Este facto talvez não se verifique nos municípios das principais zonas urbanas, mas em grande parte do restante território nacional as Câmaras não dispõem ou de técnicos qualificados para a apreciação dos projectos a este nível técnico, ou da sensibilidade dos seus responsáveis políticos à necessidade de atender ao problema (ou ambos). Daqui resulta, em termos mais simples, que em Portugal é possível licenciar um projecto que não cumpra com o Regulamento de Segurança e Acções Para Estruturas de Edifícios e Pontes.
De seguida, é na fase de construção propriamente dita que se cometem os maiores atropelos. Qualquer profissional minimamente experiente está condenado a encontrar atitudes irresponsáveis de construtores não qualificados, habituados que estão a economizar no aço e no betão. A falta de moralidade no sector é de tal ordem que por vezes se manifesta mais como um hábito do construtor em não cumprir com o projecto, do que como um efeito real de poupança financeira. A verdade é que o acréscimo de custo resultante da aplicação das normas anti-sismo equivale a pouco mais de 2 ou 3% do custo total da construção.
É fundamental que se comece a prevenir e fiscalizar o sector da construção, forçando o cumprimento das regras de segurança e punindo severamente os infractores. Não podem existir meios termos: é a vida de pessoas que está em causa. Para o comprador, para quem a aquisição de casa é provavelmente o maior investimento que realiza em toda a sua vida, é o direito a habitar numa construção que lhe garanta a possibilidade de sobreviver a um sismo grave que está em causa.

No silêncio o tempo continua a passar e o risco da ocorrência de um terramoto real aumenta, sem que o problema seja discutido e tomadas as medidas necessárias para que se instalem as boas práticas na nossa actividade. Estaremos condenados a aguardar pela calamidade inevitável, venha quando vier? Será que também perante este problema nos iremos sentir satisfeitos com a demissão de um ministro, porque “a culpa não pode morrer solteira”, ou que nos venham dizer que mais uma vez o país aprendeu uma grande lição?

[sei lá]

Terça-feira



O portfolio fotográfico de Veronika Faustman;

O novo projecto da AllesWirdGut;

The Cubes, o lego pós-moderno para a geração Dilbert. A brincar a brincar, para colecionar;

Los Angeles: Grand Theft Reality no City Of Sound;

Fazer imagens gigantes no Rasterbator;

As malas da Logstoff;

Um passeio na Rua De Baixo;

Sei lá.

[fabricante de imagens]

Segunda-feira



Ilustrações por Arthur Mount

[outro agradecimento]

Segunda-feira

Ao Nuno Guerreiro pela generosa distinção na lista dos melhores blogs de 2004. Para ele um desejo especial de Bom Ano na sua Rua Da Judiaria.

[arquitectos portugueses na net - actualizado]

Terça-feira

[actualização: obrigado ao haiti, ao Afonso Henriques e ao Vitor Marques pela colaboração]

Esta é a minha listagem de arquitectos portugueses na internet. Todos eles estão acessíveis na barra de links.
Tenho a lamentar o facto de serem quase todos sites de “homens” arquitectos. Onde estão as arquitectas portuguesas? Para mais, não é facil encontrar directórios. Por isso deixo o apelo a qualquer colaboração que me possam dar para acrescentar outras páginas que conheçam. Um abraço e bons links.

A+G Arquitectura
Jovens arquitectos. Poucos trabalhos expostos mas algum conteúdo de qualidade. Muitas imagens.

Alexandre Burmester
Autor do emblemático edifício da Telecel/Vodafone no Parque das Nações. Interface acessível mas pouco claro. Conteúdo extenso mas pouco detalhado e ausência de textos. Visita recomendada.

Álvaro Siza Vieira
Página com contacto de email. Ausência de conteúdo.

Angelo De Castro
Bom interface mas uma imagem demasiado “empresarial”. Conteúdo não muito extenso mas com qualidade. Excelentes ilustrações.

Arqwork Arquitectura
Bom interface. Conteúdo breve, essencialmente orientado para divulgação da empresa.

ARX Portugal
Firma dos arquitectos José Paulo Mateus e Nuno Miguel Mateus. Interface algo desactualizado. Poucos projectos expostos mas os que estão têm excelentes conteúdos de texto e imagem.

AT.93
Bom interface e conteúdo com algum interesse. Muitos projectos apresentados mas pouco detalhados.

Atelier Cidade Aberta
Firma do arquitecto Vasco Massapina. Página em aparente construção. Algum conteúdo disponível mas pouco detalhado; formato de divulgação de empresa.

Bernardo Rodrigues
Clareza e simplicidade; design muito profissional. Conteúdo sucinto mas bem apresentado; bons projectos com acompanhamento de texto e informações diversas. Visita recomendada.

Bruno Parente
Jovem arquitecto. Bom design e interface intuitivo. Conteúdo de imagem interessante.

CLCS Arquitectos
Interface pesado mas com excelente design. Projectos de óptima qualidade; bom conteúdo de imagem; ausência de conteúdo escrito. Visita recomendada.

Contemporânea
Firma dos arquitectos Manuel Graça Dias e Egas José Vieira. O site encontra-se inactivo há muitos meses.

Daniel Pereira Mateus
Jovem arquitecto. Página intuitiva e com bom design. Apresentação de trabalhos da faculdade; bom conteúdo escrito.

EMITFLESTI
Firma de jovens arquitectos. Conteúdo de qualidade; ausência de textos. Visita recomendada.

FFCB Arquitectos Associados
Interface desactualizado mas algum conteúdo com interesse; textos disponíveis.

Filipe Oliveira Dias
Página muito profissional com óptimos conteúdos escritos e de imagem. Visita imprescindível.

Fragmentos de Arquitectura
Página de divulgação com bom design e conteúdo acessível. Muitos projectos apresentados; pouco conteúdo de texto mas muitas imagens. Visita recomendada.

Frederico Valsassina
Interface desactualizado. Muitos projectos apresentados e bom conteúdo de imagem. Ausência de textos. Visita recomendada.

Hugo Igrejas
Jovem arquitecto. Interface pouco amadurecido. Algum conteúdo interessante de imagem renderizada.

Inês Lobo
Excelente qualidade gráfica e de conteúdos. Muitos projectos disponíveis, bem apresentados e com desenvolvimento escrito. Visita imprescindível.

J. M. Carvalho Araújo
Página em formato de currículo digital. Boa qualidade de apresentação; conteúdo muito sumário.

João Luís Carrilho da Graça
Página com contacto de email. Ausência de conteúdo.

João Patrício
Interface “empresarial” de visualização carregada. Alguns projectos interessantes. Conteúdo orientado para divulgação comercial.

João Paulo Ferreira
Página com design sóbrio. Alguns projectos interessantes mas pouco detalhados. Bons links. A precisar de actualização.

José Soalheiro e Teresa Castro
Excelente design e interface. Muita informação disponível; projectos de elevada qualidade e boa apresentação de conteúdos. Visita imprescindível.

MVA Arquitectos
Interface simples. Alguns projectos de qualidade; muitas imagens.

Miguel Rocha & Saraiva
Excelente interface. Conteúdo extenso e diversificado. Óptimos projectos. Visita recomendada.

Neuparth Atelier
Interface acessível e de qualidade. Projectos interessantes; conteúdo sucinto e ausência de textos.

Nuno Antunes e Gonçalo Silva
Bom desenho geral. Conteúdo muito diversificado e de boa qualidade. Visita recomendada.

Paulo Corceiro
Design acessível com excelente apresentação. Conteúdo pouco extenso. Vale pela composição gráfica.

Pedro Andrade de Sousa
Jovem arquitecto. Pouco conteúdo mas boa qualidade. Interface simples mas pouco amadurecido.

Pedro George
Interface “empresarial”. Conteúdo orientado para divulgação comercial; só imagens. Apresentação desactualizada.

Pedro Mendes
Design minimal muito acessível. Projectos interessantes e bem apresentados. Pouco conteúdo escrito mas boas imagens. Visita recomendada.

PEX Studio
Equipa jovem. Pouco conteúdo mas portfolio com imagem muito interessante.

Promontório Arquitectos
Design simples mas eficaz. Excelente conteúdo escrito e de imagem. A precisar de actualização. Visita imprescindível.

S’A arquitectos
Pagina em formato blogue. Excelente apresentação e conteúdos de texto e imagem. Visita imprescindível.

Sua Kay
Design pouco apelativo. Portfolio extenso mas sem detalhe. Página essencialmente orientada para divulgação comercial.

Tiago Matos & Ricardo Pereira
Jovens arquitectos. Design intuitivo e eficaz. Portfolio visualmente pesado. Bons conteúdos de texto e imagem. Visita recomendada.

[editorial]

Segunda-feira

Existem várias razões para se publicar um blogue e são quase todas más. Estou a exagerar, mas um blogue é um passatempo que facilmente se transforma numa obsessão. Penso que foi o Lourenço quem um dia escreveu que um blogue é uma ilusão, a ilusão de ser lido (estou a citar de memória). Não me esqueci mais dessas palavras porque correspondem exactamente ao que sinto.

Na blogosfera os erros são fáceis de detectar: blogues que falam de blogues que falam de blogues; frases parvas por tudo e por nada; opiniões sem substância e reflexão; aqueles testes que não interessam a mais ninguém (que personagem do Sexo E A Cidade é você?); excesso de cartoons; insultar alguém ou discutir sobre os resultados da última jornada de futebol; entre outros.

Exprimir opiniões, divulgar informação, defender uma causa, escrever sobre si próprio(a), publicar poemas ou fotografias, todos os motivos podem ser bons para escrever. Não existe uma razão única para um blogue ter sucesso mas talvez todos os que o tenham partilhem uma razão comum: serem genuínos.
O que mede o valor de um blogue afinal não é a sua visibilidade mediática, a quantidade de visitantes ou a periodicidade dos textos, antes sim a qualidade do que lá se publica.

Uma vez escrevi aqui que este espaço não é especificamente sobre arquitectura mas também não é sobre generalidades. Nos últimos tempos tenho sentido necessidade de voltar ao espírito inicial d’A Barriga De Um Arquitecto. Este blogue nasceu sem imposições de periodicidade ou actualidade; importava-me apenas escrever sobre coisas que eram importantes para mim, reflexões que ia fazendo e que por vezes eram de difícil discussão com outras pessoas por falta de interlocutor. Assim, comecei a registá-las aqui, pelo único motivo de serem consequentes para mim.
Por esta razão sinto que poderei inevitavelmente vir a desiludir aqueles que me pedem para escrever mais vezes. Eu, pelo contrário, tenho sentido exactamente o oposto, que devia publicar menos e apenas quando as minhas reflexões estão devidamente amadurecidas, o que nem sempre acontece quando escrevemos na correria.

Entretanto tentarei compensar com alguma divulgação. Gostaria de dar a conhecer mais sites interessantes, especialmente portugueses. Também tenho alguns projectos em mente como partilhar histórias de antigas viagens (tantas fotos para scanear), publicar desenhos e comprar aquela máquina digital de vez.
A Barriga De Um Arquitecto vai continuar com a serenidade de um segundo fôlego, pelo gosto de escrever e partilhar. Pelo caminho é bom ir conhecendo tanta gente interessante por aqui e continuar a aprender coisas novas, as outras formas de ver e sentir de quem anda por esta blogosfera.

[agradecimento]

Segunda-feira

Um grande agradecimento a todos os que assinalaram o aniversário d’A Barriga De Um Arquitecto:

Ao Complexidade e Contradição, ao Ma-Schamba, ao Quase Em Português, ao Aviz, ao Portugalidades, ao O Mundo À Minha Procura, ao Os (In)separáveis e ainda à Tounalua, ao Daniel Rodrigues, ao Cavalo De Tróia, à Cris, ao Seven e à Carla de Elsinore.

Ainda ao André, ao Afonso Henriques, ao CBS, à Margarida, ao Tiago Matos, ao Adamastor e à Bárbara.

A todos e a cada um, o meu Muito Obrigado.

[ver]




Podemos saber o nome de um pássaro em todas as línguas do mundo, mas no fim, não sabermos nada sobre esse pássaro... Por isso, vamos olhar para o pássaro e ver o que ele está a fazer – é isso que interessa. Eu aprendi bem cedo a diferença entre saber o nome de algo e saber algo.
Richard Feynman

A Barriga De Um Arquitecto completa amanhã um ano de existência. Mais de 20.000 visitantes (indivíduos/dia) e 30.000 visualizações de página passadas, publico esta réplica do primeiro post.
Volto a reter as palavras de Feynman. Este blogue é dedicado a todos os que despidos de preconceitos continuam a desejar olhar e ver o que se passa lá fora, no mundo para lá do nosso saber. Aos que aqui passaram e continuam a visitar-me retribuo com um sincero agradecimento a todos.

[fraudes intelectuais e outras formas de se planear em portugal]

Quarta-feira



Sidónio Pardal viu o seu Estudo sobre o Novo Diploma para a RAN, REN e Disciplina da Construção fora dos Perímetros Urbanos ser “chumbado” pelo Ministério do Ambiente. O facto passou quase despercebido por entre a enxurrada mediática deste final de legislatura. Fazendo o brilharete, o ministro Luís Nobre Guedes conseguiu adiar uma questão polémica e colher os aplausos das associações ambientalistas.

Apresentando as suas discordâncias profundas ao estudo do arquitecto paisagista, o ministro determinou habilidosamente que se faça um novo estudo, de forma a que venha a ser preparada uma proposta legislativa de grande consenso, num contexto de processo participado. Acrescentou que este novo estudo, ao contrário daquele apresentado por Sidónio Pardal, deverá ser compatível com o quadro jurídico existente e deve apostar na valorização daquelas áreas, considerando, por um lado, a natureza de restrição de utilidade pública e a coerência e a lógica dos objectivos nacionais que neste domínio incumbem ao Estado, por força da Constituição, e, por outro, a necessária agilização e a fixação de usos compatíveis com tais restrições de utilidade pública.

Evidentemente, a constituição da equipa encarregue de produzir este novo documento e os prazos para a sua execução não foram divulgados. Com eleições legislativas em Fevereiro também não consta que venham a sê-lo. Assim se faz política em Portugal.

Triste país em que um trabalho desta importância não chega sequer a ser discutido e apreciado. Quem se dê ao trabalho de mergulhar nas 177 páginas do documento descobrirá que se trata de uma análise profunda e fundamentada, com conteúdo histórico e técnico, sobre as disfunções que existem na mecânica dos instrumentos de planeamento no nosso país. Sendo evidente que as conclusões de Sidónio Pardal levantam alguma perplexidade e merecem por isso ser debatidas e possivelmente modificadas, não é no entanto aceitável que um trabalho desta rara qualidade seja pura e simplesmente atirado para a gaveta de um ministério só porque a questão é incómoda.
O ministro Luís Nobre Guedes tomou a decisão mais fácil sem necessidade de qualquer sustentação científica, justificando-se na procura de um amplo consenso de circunstância que se sabe impossível e ainda consegue sair aplaudido de tudo isto.

Quais foram então os principais pecados de Sidónio Pardal. Extraio de recentes artigos de imprensa os seguintes:

O estudo pressupõe que as reservas ecológica (REN) e agrícola (RAN) foram responsáveis pelo desordenamento que grassa em Portugal.
O documento desmistifica com clareza as diferenças entre os preâmbulos das duas leis e os reais efeitos dos seus conteúdos. Na prática, é posta em causa a execução territorial da RAN e da REN, uma vez que a prossecução das suas premissas é aplicada sem uma clara sustentação técnica e científica.
Não é dito que a RAN e a REN sejam “responsáveis pelo desordenamento que grassa em Portugal” mas sim apresentado o modo como estes instrumentos (nomeadamente a REN) têm contribuído para fomentar a degradação do território. Isto é difícil de explicar quando a REN é proclamada como um instrumento-travão ao crescimento urbanístico descontrolado. O problema é que na prática a ela foi concebida através de critérios genéricos, sem identificação de valores naturais concretos ou ecossistemas a proteger.
A REN assume-se assim como um instrumento cristalizador daquilo que existe, interditando qualquer alteração. Este estatuto proibicionista não está sujeito a qualquer planeamento subsequente que concretize sobre ela acções de salvaguarda ou usos compatíveis. Ora, porque as realidades do território são múltiplas e complexas, acabam por gerar-se situações perversas e contrárias aos objectivos de ordenamento que se pretendem proteger. O estudo de Sidónio Pardal oferece vários exemplos concretos.

O estudo defende que a RAN e a REN deviam ficar sob a alçada dos municípios, perdendo-se assim o seu âmbito nacional.
A afirmação “ficar sob a alçada dos municípios” é uma simplificação intencional daquilo que está no documento. O estudo defende a exclusividade dos Planos Directores Municipais na afectação dos usos do solo, neles se introduzindo a delimitação dos instrumentos das reservas ecológica e agrícola que dariam lugar a uma Carta de Valores específica.
No caso da REN, os usos e intervenções compatíveis com esses espaços estariam dependentes da aprovação de um Regulamento municipal de reserva ecológica, sujeito ao parecer prévio da Direcção-Geral dos Recursos Florestais, do Instituto da Conservação da Natureza e do Instituto da Água.
Ao contrário do que alguns afirmam, a RAN e a REN não têm uma real contextualização de nível nacional. A sua elaboração tem por base parâmetros genéricos que amalgamam uma mancha de realidades territoriais estruturalmente diferenciadas. Sucede que promovem a ambiguidade de se apresentarem simultaneamente como condicionantes e como afectações de solos ao uso agrícola (RAN) e a um suposto “uso natural” (REN) em que o solo é entregue a uma regeneração selvagem, num estatuto de quase intocabilidade.
A RAN e a REN sobrepõem-se a tudo sem se verificarem ou avaliarem os valores, interesses e necessidades em presença.

O estudo defende que dentro do perímetro urbano não possam existir espaços naturais, espaços agrícolas, RAN e REN. O estudo não é compatível com o quadro jurídico existente.
Junto estas duas questões porque estão indirectamente associadas. O documento de Sidónio Pardal assenta numa nova lógica de funcionamento dos instrumentos de planeamento do território. A fusão de diversos níveis de competência dentro do âmbito dos PDM e a clara separação do planeamento do solo urbano, assentam nessa procura de tornar mais claras e eficazes as suas directivas e a interacção destas. Evidentemente, é posto em causa o “quadro jurídico existente”. Ora eram as deficiências desse quadro jurídico que se deveriam estar a discutir.

O estudo considera que as restrições e servidões por utilidade pública tais como a REN reduzem o conteúdo do direito de propriedade do solo de forma tão grave e intensa que podem ser consideradas como tendo um carácter expropriativo, devendo por isso estar sujeitas a indemnização.
A ausência de regulamentação da REN e a impossibilidade incondicional de sobre ela actuar tem perpetuado uma real situação de expropriação dos direitos de propriedade do solo, tornando-a num real “pretexto para proibir”. Isto é tão mais grave quando não estão associadas à REN quaisquer responsabilidades de gestão ou preservação dessas áreas.

Para concluir, resta dizer que não é a validade do estudo que está em causa mas a forma como ele não chegará sequer a ser discutido e apreciado com abrangência e honestidade intelectual. Catalogado de atentado ao ambiente e devidamente chumbado, o país continuará a persistir na teia kafkiana de sobreposição de planos, servidões e competências que tornam a gestão territorial numa tarefa incompreensível. Mas o pior de tudo é não querer sequer ver, é não aceitar sequer a reflexão sobre as disfunções deste quadro legal. É certamente mais fácil apelar a “aproveitamentos emocionais e ideológicos do problema” como fazem as associações ambientalistas com o beneplácito temor dos políticos, nada contribuindo para a correcção das suas incoerências e dos erros que elas produzem.

Certo é que nada neste problema é visível nos grandes centros urbanos do litoral onde se produz a legislação que nos governa e a cultura mediática que nos dirige. Lá, onde já todos os atropelos se fizeram, ditam-se as regras do bem-fazer que os outros hão-de cumprir.
Assim ditam os preâmbulos das suas leis. Mesmo as que não funcionam.

[redescobrir a internet]

Terça-feira

Segundo a página de estatísticas do Sitemeter uma média de 80% de visitantes deste blog utiliza o browser Internet Explorer da Microsoft. Mas felizmente tenho assistido a um aumento gradual de utilizadores do Firefox da Mozilla, actualmente rondando os 15%. Nunca é demais promover este excelente browser alternativo que garante melhor velocidade e muito mais segurança, especialmente no controlo de tracking cookies e outras delicadezas incómodas da world wide web. Quem gosta de segurança não pode deixar de experimentar o Firefox 1.0. Para redescobrir a internet.

[wandering moleskine project]

Sexta-feira



Um caderno de viagens passa de mão em mão entre gente de todo o mundo. Cada um escreve uma página e envia o pequeno moleskine por avião para o amigo seguinte. Chama-se Wandering Moleskine Project e anda a viajar por aí.

[via]

[esta terra mal amada - 3]

Sexta-feira



Todos temos a ilusão de importância, de que o que dizemos conta e o que fazemos faz diferença. Mesmo sentindo tantas vezes o contrário, no fundo acreditamos que somos relevantes “no esquema das coisas”. Desejamos exprimir essa relevância, participar na discussão geral e resolver os problemas do mundo. O que se passa na blogosfera é disso exemplo. Lamentavelmente, o registo não é construtivo nem regido pela boa vontade. Reina a sede de protagonismo e a masturbação de egos dos encoleirados fiéis de ideologias político-partidárias.
As ideologias morreram ou foram trituradas na máquina de embutir dos public relations. Ninguém quer o desamparo da verdade, da complexidade. Queremos o bom e o barato, queremos o mundo fácil que dá milhões. Os próprios jornalistas, enredados no carrossel que eles próprios criam, embarcam na lógica dos absolutos simplismos. Que país confrangedor em que o povo é visto e analisado como uma cambada a correr atrás das migalhas eleitorais, como se 2% aqui ou uma descida dos impostos ali pudessem ser trunfos determinantes da orientação do voto popular.

É difícil, para os que questionam o seu papel no meio que os envolve, não cair na inquietação. Se não queremos acreditar apenas no que satisfaz os nossos medos e inseguranças, se quisermos a verdade, então à nossa frente estende-se o caminho de consecutivas dúvidas. Mas entre a segurança da mentira e o desamparo da verdade, o que escolhemos nós afinal?

Que tal escolhermos a verdade por uma vez. Que tal começarmos por olhar para essa pobreza estrutural do país, uma pobreza que não é financeira mas está entranhada na nossa cultura. Pacheco Pereira fala da mediocridade de um país falhado após milhões e milhões de contos de apoios comunitários. E agora, eis-nos de novo a ver esfumar os fumos da Índia. Como há seculos, voltámos a ser um país vivendo na ilusão das riquezas alheias, da prosperidade ilusória e conjuntural que esbarra finalmente com a sua pobreza definitiva. Estruturalmente na mesma. E a pergunta, tantas vezes repetida que se tornou ridícula: para onde foi o dinheiro afinal?

Por isso não pode ser mais paradoxal o wishful thinking de Pacheco Pereira com o seu desejo de um regresso de Cavaco Silva à governação. Talvez esteja afinal a ironizar, chamando Cavaco a um jogo que ele não está disposto a jogar. Mas este argumento messiânico colhe, este complexo sebastianista, de alguém que venha das brumas para nos salvar a todos. Já o nome de Cavaco se ouve e se repete por entre o nevoeiro da crise.
Quer se queira quer não, mesmo Cavaco com o seu capital de credibilidade e rigor, foi incapaz de mudar o rumo dos fumos comunitários. Foram esses milhões e milhões que alimentaram o ciclo de prosperidade e permitiram aos governos cavaquistas navegar a onda do oásis. O país acreditou na ilusão dos fundos comunitários transformados em BMWs, mas enquanto outros se desenvolviam, nós ficámos a assobiar para o ar como quem espera que a factura nunca venha. Mas eis que chegou.

Chegou a hora de dizer adeus ao desejado Dom Sebastião. O Messias não virá afinal. Estamos entregues a nós próprios e talvez seja melhor assim. E agora não há que dramatizar, porque das duas uma: ou o país se mobiliza com seriedade e trabalho para vencer aceitando as inquietações de quem prefere a verdade, ou o país persiste no fogo de artifício de quem não está disposto a fazer sacrifícios até que a crise seja irreversível. Não haja ilusões: o barco range e ao longe ouvem-se trovões mas a tempestade ainda está para vir.

Seja como for, e com todos os defeitos do sistema, isto ainda é uma democracia. Somos nós que escolhemos. E é assim que deve ser.

Mais:
[Esta Terra Mal Amada, 2004-01-13]
[Esta Terra Mal Amada - 2, 2004-07-30]

[a minha veneza é uma tasca]

Segunda-feira



Fins de Agosto de 1991.
Ficámos no segundo andar de um prédio meio desabitado com uma tasca no rés-de-chão. Algures nas ruas de San Polo, em pleno coração da cidade e fora do percurso dos turistas. Ali conhecemos a Veneza dos venezianos.
Juntavam-se ao fim de tarde na tasca para beber tintos e comer queijo enquanto jogavam jogos de taberna e cantavam trechos de ópera. Parecia o cenário de um filme, mas assim era e aquela cantoria ecoava pelas ruas estreitas e o fino canal, entrando pelas janelas abertas dos vizinhos.
O cheiro! Ah, o cheiro a humidade intensa e o calor quase insuportável de Verão. Mas era fantástico, era estar mesmo ali no meio do suor e da vida real. Os reflexos no tecto, os sons da calçada, uma senhora que regressa das compras, uma conversa incompreensível na mercearia, um rádio no terceiro andar, o gaiato que grita à janela...
Veneza é a cidade cosmopolita parada no tempo, do inevitável Palazzo Grassi e do Museu Guggenheim à beira rio, do mercado de legumes do Rialto e da Praia do Lido com relvado frente ao bungalô.

Regressei a Veneza passados dois anos e fiquei alojado com amigos no Albergue de Juventude da ilha de Giudecca. Com horário para entrar e para sair e cheiro a pés de inter-railers já não me pareceu a cidade do Corto Maltese.

Um dia hei-de voltar em busca da minha Veneza.

[imagem via]

[em cima do muro]

Quinta-feira



A história de uma mulher a viver o tempo emprestado de um coração doente. A história de um jovem que inventa um mundo de utopia para a sua mãe frágil. Adeus Lenine! é uma história de amor, dos laços de uma família que alimentam uma vida impossível, onde tudo pode acontecer.

Outubro de 1989. Em Berlim Oriental, nos dias que antecedem a queda do Muro, Christiane vê o seu filho Alex ser preso pela polícia durante uma manifestação de protesto. Aquela imagem vai despoletar o colapso do seu fraco coração, entrando num coma que durará vários meses.
Quando ela regressa milagrosamente à vida, Alex está determinado em trazer para casa a sua mãe mantendo-lhe a ilusão de que a Alemanha não se reunificou e que o regime comunista se mantém como dantes. Os meses que se seguem contam o tempo suspenso da luta de Alex, impelido a ocultar cada vez mais a realidade de um mundo em mudança lá fora.

O filme surpreende pelo tom agridoce de um drama com tons de comédia. Mas acima de tudo existe aqui uma afirmação política, fazendo uma curiosa análise da falência de um regime, ao mesmo tempo que a vaga da transformação capitalista traz consigo um individualismo indiferente a tudo o que se perde no caminho, toda uma cultura, todo um modo de ser. Adeus Lenine! percorre assim nessa mesma transição, suspenso no muro de uma vida efémera, da História que cai pesadamente sobre pessoas comuns. Sem ênfases panfletárias, o filme retrata essa complexidade da vida, inquietante da dúvida perante o futuro que chega.

Belíssima é a luta de Alex, criador da utopia da sua mãe, perseguindo os pequenos restos de uma cultura em rápido desaparecimento. Esses bens preciosos, o saco de café, o frasco de picles, os sinais do tempo que passou com os quais recria a doce mentira que rodeia o quarto da mãe. Mas a realidade é sempre mais forte que os sonhos e também o sonho Christiane vai ser posto à prova. Eis então que perante a inevitável queda do Muro, Alex vai reescrever a História numa passagem de delicioso burlesco, não o que foi, mas aquilo que poderia ter sido (e que o respeito pelos que não viram o filme me impede de revelar aqui).

A mentira de Alex acabará por cair como todas as mentiras, mas doce surpresa, é Christiane que agora esconde a verdade aceitando o sonho do filho como o seu. Alex nunca saberá o que a sua mãe descobriu, e que o amor silenciou. Para ele, a sua mãe terá para sempre vivido num mundo de sonho e utopia, que só o seu amor foi capaz de inventar.

O país que a minha mãe deixou para trás era um país em que ela acreditava; um país que nós mantivemos vivo até ao seu último suspiro; um país que nunca existiu naquela forma; um país que, na minha memória, sempre irei associar à minha mãe.

[preconceitos urbanos]

Sexta-feira

O texto que aqui publiquei na íntegra (ler A Bolha Imobiliária: Causa Ou Efeito?) da autoria do Arquitecto Nuno Portas levanta o véu a alguns dos preconceitos que enfermam as políticas de ordenamento do território em Portugal. A tese de Portas reflecte sobre a percepção generalizada (mas simplista) de que os problemas urbanísticos e ambientais do país se devem ao excesso de oferta imobiliária fomentado pela inconsciência dos municípios, que pelo sobredimensionamento das áreas urbanas dos planos que aprovam e pela permissividade do licenciamento procuram encher os cofres camarários. Mas o seu texto vai muito para além disto, aflorando alguns dos principais problemas do planeamento para os quais essa percepção pública e política não está sequer desperta. É sobre eles que gostava de contribuir com uma reflexão.

Os planos de ordenamento do território, nomeadamente os de nível local, têm por obrigação estabelecer um correcto equilíbrio entre as pressões promotoras do crescimento urbano e o respeito pelos valores ambientais e culturais do território. Não se pode nem deve escamotear as responsabilidades dos municípios nos erros de gestão urbanística que se vão cometendo por todo o país, que continuam a gerar massas urbanas amorfas que destroem qualquer resquício de qualidade de vida que aí se possa estabelecer. O problema é realmente grave é gera esse grau 0 de arquitectura onde residem as maiores densidades populacionais a quem é negada a possibilidade de usufruir de equipamentos essenciais, de espaços públicos, de lazer ou de desporto, enfim, todos aqueles que deveriam ser normais e acessíveis numa sociedade desenvolvida.

A pouco e pouco, os portugueses têm vindo a descobrir as insuficiências e deficiências da realidade urbana onde vivem. À medida que as necessidades básicas dos cidadãos vão sendo satisfeitas, vai igualmente nascendo uma consciencialização da comunidade urbana para com um nível mais elevado de preocupações: a qualidade do ar que se respira, a poluição sonora, o arranjo dos espaços exteriores, a ocupação dos tempos livres, a cultura erudita e o valor estético do ambiente urbano. Como escreveu Leonardo Benevolo, estas novas exigências contemporâneas exigem que se combine numa verdadeira síntese um sentido de responsabilidade social, ou seja, um empenhamento colectivo na produção de cidade, ao mesmo tempo que se salvaguarda o respeito pela privacidade e individualidade dos cidadãos.

Qualquer modelo de planeamento urbano passa por estabelecer, como diz Nuno Portas, regulamentos administrativos limitativos de direitos. A justificação para tal reside nessa exigência colectiva do fazer cidade. À luz da experiência e da doutrina do urbanismo europeu, não consigo sequer conceber outro modelo, ou aquilo a que o Lourenço chama de liberalismo no planeamento urbano . Será esse liberalismo a que se deu o nome de AUGI, Áreas Urbanas de Génese Ilegal, vulgo bairros clandestinos. Aqueles que se caracterizam por ruas com passeios de 50 centímetros quando os têm, ausência de equipamentos e zonas públicas, elevadas concentrações de construção habitacional e ausência de princípios urbanísticos ou de arquitectura? Também me parece que não.

Mas voltando ao texto original, essa afectação de regulamentos ao território não pode ser fixada ad eternum, seja pela vontade autoritária dos municípios ou pela incapacidade de alterar em tempo útil os planos quando estes estão desactualizados ou contrariam empreendimentos necessários com pressupostos que entretanto deixam de fazer sentido.
E porque estas realidades são diversas no âmbito do território, os termos e os princípios de regulação urbanística não podem ser idênticos para todo o país. Portas alerta para as diversas variáveis do problema, resumidas a uma frase lapidar: que nenhum plano pode ser concebido como um fato por medida, tendo que oferecer várias frentes de desenvolvimento e capacidade para responder pela incerteza relativa ao aparecimento de novas necessidades no tecido urbano.
É por esse grau de incerteza que os mitos que alguns professam em relação ao crescimento urbano (mesmo quando fundados em boas intenções) acabam por ter efeitos perniciosos e contrários aos inicialmente pretendidos. O controle e restrição cega do aumento do perímetro das áreas urbanas é um exemplo desses mitos.

A acção municipal ao nível da oferta de solo urbano pressupõe a gestão equilibrada da extensão da área construída, por diversos factores. Poderia sublinhar vários como a racionalização das necessárias infra-estruturas e a viabilidade da sua gestão, a necessidade de integração e respeito ambiental ou ainda factores de interesse colectivo bastante diversos. Mas por outro lado, o planeamento municipal interfere directamente com o mercado privado do solo, da urbanização e da construção. Sendo o sector privado o actor principal das realizações urbanísticas, e actuando numa realidade concorrencial, torna-se necessário garantir uma folga de actuação, ou seja, um sobre-dimensionamento das áreas urbanizáveis que garanta prevenir situações de monopólio ou oligopólio.
E porque muitas vezes não existe sensibilidade nas autarquias para este facto, nem capacidade técnica para o abordar ao nível dos planos, acaba pela sua acção por desestabilizar a capacidade de auto-regulação do mercado e criar perversões de todo o sistema.
Não se podem assim criar mitos e diabolizar determinados fenómenos, construíndo uma doutrina legislativa à luz dos problemas dos grandes centros urbanos do país que são, ao mesmo tempo, os centros de decisão jurídico-política, pensando que o problema é idêntico ao nível das cidades médias ou do interior.

A inconsciência desta realidade dá azo a desvios entre a oferta de espaço urbanizável e o mercado real, ora promovendo um crescimento caótico (quando em excesso), ora provocando o aperto e a especulação do mercado (quando em falta). Estas distorções tornam difícil assegurar a defesa do interesse público tanto quando é necessário assegurar usos públicos ou regular os custos da oferta. De passagem, Nuno Portas refere que este problema tem de ser combatido através do reforço técnico e participativo das autarquias. Mas infelizmente, em Portugal, assistimos exactamente ao fenómeno inverso, ou seja, a uma desregulamentação da prática do planeamento urbanístico. Ora o exercício de atribuições e competências delegadas ao nível municipal exige cada vez mais a sua dotação em meios adequados, meios que no âmbito do planeamento urbanístico são essencialmente técnicos e humanos. Infelizmente não só não vemos aprofundar a competência técnica dos orgãos estatais como vemos esboroar qualquer sentido e entendimento do que é o serviço público e a causa pública neste sector.

No nosso país, a falta de capacidade técnica e conhecimento especializado é mais uma das carências do sistema estatal, acentuando a falta de compreensão do significado da missão pública e da responsabilidade que lhe está associada. Sem desenvolver processos contínuos de avaliação da realidade e mediação dos interesses activos na área do urbanismo, os decisores políticos parecem julgar que resolvem as carências existentes com doutrinas fundadas em percepções superficiais e parciais do problema. Este simplismo é e será o caminho para a insustentabilidade.

[a bolha imobiliária: causa ou efeito?]

Quinta-feira

Transcrevo na íntegra o excepcional texto do Arquitecto Nuno Portas publicado no Público sobre os mitos em torno do planeamento e crescimento das áreas urbanas. A tese é exemplar e um raro exemplo de análise das causas reais do problema, questionando os pressupostos e preconceitos vigentes na área do planeamento urbanístico sobre os quais poucos parecem querer reflectir.
O texto dá pano para mangas e merece uma séria reflexão. Escreverei algo mais sobre isto nos próximos dias. Para já fica o texto original. Os sublinhados são, evidentemente, da minha responsabilidade.

A Bolha Imobiliária: Causa Ou Efeito?

Desde há algum tempo que se vêm repetindo os artigos de opinião e as declarações políticas que convergem numa tese urbanística que parece politicamente correcta e a ponto de justificar alterações legislativas ou fiscais que estariam a ser preparadas. A tese é bem simples: os problemas urbanísticos e ambientais do país devem-se à chamada "bolha", ao excesso de oferta imobiliária, sendo que esse desperdício de solos, infra-estruturas e energia seria fomentado pela inconsciência dos municípios, através do sobredimensionamento dos planos que aprovam e da permissividade do licenciamento com que enchem os cofres camarários (e, quem sabe, as bolsas dos licenciadores).

Mas a tese é simplista: uma coisa é constatar a existência da "bolha"; outra é afirmar que a solução começa por retirar aos municípios as receitas fiscais associadas ao licenciamento, como castigo pela sua voracidade.

Em primeiro lugar, temos que nos pôr de acordo sobre o conceito de "imobiliário" (sobretudo de "construção de nova urbanização") que num dado momento possa ser considerado como desnecessário ou excessivo pela administração central ou local, de forma objectiva, transparente e não discricionária - isto é, que possa ser objecto de um regulamento administrativo limitativo de direitos. A nossa experiência diz-nos que, à luz dos conhecimentos presentes, neste e noutros países europeus, tal limite quantitativo não pode ser fixado de uma vez para sempre ("sempre" é a vigência do regulamento, seja plano, quotas ou outra forma). Podem prever-se metas; podem fazer-se discriminações positivas ou negativas que favoreçam ou refreiem determinadas tendências em relação a outras se localmente legitimadas, já que esta regulação quantitativa nunca poderá ser idêntica para todos os municípios ou regiões, quando se sabe que não se trata apenas de refrear a residência mas os serviços, as indústrias, os vários tipos de suporte do turismo, etc., com consequências óbvias para a modernização, o emprego, as mobilidades.

A tese "maltusiana" parte do pressuposto de que pode ser tecnicamente inquestionável a previsão quantitativa do crescimento numa dada região ou município com base na evolução demográfica de cada localidade, que, no último meio século, vem desafiando todos os cálculos de tipo mecanicista (por exemplo, população/famílias/casas) por uma razão principal que não posso aqui desenvolver: o crescimento ou transformação das cidades e vilas, cada vez menos separadas entre si, depende muito mais de factores de sociedade (modos e estilos de vida), das tendências de desenvolvimento económico (PIB, bacias de emprego, mobilidade dos agentes económicos, e peso do sector da construção, preferências do aforro e endividamento das famílias...) e da alteração das acessibilidades territoriais (contínuos espaciotemporais, enclaves, generalização do transporte individual...) do que dos saldos fisiológicos agregados.

Para além desta dificuldade, a tradução destas previsões em planos de usos do solo ainda é mais problemática: é que, ao contrário do que muitos pensam, não basta multiplicar metros quadrados ou número de fogos por um índice de ocupação, para estimar o solo urbanizável a prever num PDM. É sabido que a área edificada é apenas uma fracção do seu total, que inclui outras actividades, vias, espaços livres ou intersticiais, etc. Não tem, portanto, sentido dizer-se que os PDM do país, todos somados, dariam para dezenas de milhões de portugueses!

O que estes cálculos simplistas não têm em conta é que o que mais cresce (sobretudo com o PIB) é o espaço médio por habitante, porque aumentam as suas necessidades, as novas instalações das actividades e equipamentos, os espaços livres urbanos, as vias de comunicação e os estacionamentos, etc. E, para além disto tudo, nenhum plano pode ser concebido como um fato por medida: é essencial para a sua própria viabilidade que ofereça para o médio prazo várias frentes de desenvolvimento, para além de outras razões relacionadas com a incerteza das preferências, com a redução dos riscos de entesouramento ou oligopólio por parte dos proprietários ou promotores beneficiados pelo "aperto" do zonamento.

Chegamos assim à parte crucial da tese: a da responsabilidade da gestão municipal no suposto excesso de urbanização. Parece-me, no mínimo, surpreendente que alguém conhecedor do terreno - economistas, urbanistas, juristas - possa pensar e afirmar que os municípios são os principais responsáveis pela "bolha imobiliária" para auferirem mais receitas, donde a necessidade de lhas retirar quanto antes.

É que se esse raciocínio estivesse certo, quereria dizer que os promotores imobiliários deste país construíam casas só para aquecer e encher os cofres das câmaras! Ora, se há milhares de fogos novos construídos todos os anos que estão por usar, é porque alguém os compra (em prazo aceitável pelo promotor da oferta) por outras razões que não a de ir para lá viver de imediato. E é este o fenómeno que importa perceber, para que se saiba onde e como pode ser atenuado com eficácia. Para isso, é necessário avaliar os projectos de futuro das famílias e as alternativas das aplicações das poupanças que se lhes oferecem - isto é, o lado da procura -, sem o que se não podem avaliar as tendências da oferta, hoje essencialmente privada, não só nas grandes aglomerações, mas também nas cidades de menor dimensão.

Acontece também que, para além do "imposto autárquico", as taxas que as autarquias cobram, proporcionais às superfícies construídas, seja nos centros infra-estruturados, seja nas periferias com maior défice delas, não lhes podem ser retiradas, mesmo que se prometa compensá-las no bolo dos impostos retidos ou transferidos para as autarquias, sabe-se lá com que garantias.

Por razões simples: para que a nova construção contribua, proporcionalmente às necessidades, para recuperar a infra-estrutura velha e completar a nova - o que exige uma recuperação parcial da mais-valia gerada no conjunto do município. Aliás, já há muito que se devia ter consignado a arrecadação dessas taxas para um fundo de urbanização, para que os agentes económicos e os utilizadores possam avaliar o seu destino. Além do mais, os valores em causa não são sequer de monta a levar os municípios a não aprovar o que já está previsto em plano (a questão seria outra nos casos de ilegalidade). E como é sabido, retirar essa taxa prevista e praticada desde a Lei das Finanças Locais, não contribuirá sequer para baixar os valores de venda dos imóveis novos ou recuperados.

Quanto a saber se é bem ou mal aplicada, é algo que se aplica igualmente a qualquer governo central e cuja apreciação pertence, em última análise, aos respectivos eleitores.

Mas o que nos parece claro é que castigar financeiramente os municípios não terá influência na quantidade do que se urbaniza ou reurbaniza e retarda a boa gestão pró-activa e, portanto, irremediavelmente negocial (quer se goste ou não) do urbanismo municipal.

Nas entrelinhas ou expressamente, quem tem levantado este problema convoca outros fantasmas urbanísticos que tem procurado exorcizar: o do ataque à urbanização periférica (estaria aí o pior da tal "bolha imobiliária") para defender o objectivo nobre do "retorno à cidade ou ao centro", como se a periferia não fosse cidade e não pudesse ter centralidade(s). Esta ilusão é dispensável. Revitalizar os "centros" e melhorar as condições de vida nas "periferias" são acções interligadas e quem não perceber qual é a nova unidade territorial em que vivemos perde as duas. Mas esta é outra questão que passa pelo reforço técnico e participativo das autarquias, e por governos metropolitanos com legitimidade própria, que tratem (só) o que cada uma, isolada, não pode fazer. E não é substituível por medidas mágicas de engenharia fiscal, que parecem diabolizar as consequências sem querer conhecer as verdadeiras causas e, se necessário, actuar sobre elas.


[Nuno Portas, Arquitecto]

[uma ordem para quê ou para quem]

Quarta-feira



Em plena eleição dos Orgãos Nacionais da Ordem dos Arquitectos veio a actual presidente e candidata à re-eleição, Arqta. Helena Roseta, produzir um artigo intitulado Uma Ordem Para Quê?. O texto publicado no Jornal Público não chega a ser uma declaração de princípios mas tão só uma exposição de aparência idealista e bem intencionada que não responde, infelizmente, ao título do próprio texto.

Uma ordem para quê, afinal?

Talvez os arquitectos se sentissem motivados a participar mais activamente nas discussões internas da ordem se esta deixasse de ser a coutada de uns quantos notáveis e do seu apparatchik de leais subordinados – e já que estamos a falar de coutadas, basta olhar para o que é a Faculdade de Arquitectura de Lisboa para servir de exemplo daquilo que é o sinal dos tempos no Portugal contemporâneo. O fenómeno não é, de resto e como todos sabem, único ou exclusivo desta profissão. É, isso sim, reflexo da postura vigente e uma visão corporativista da acção política, determinada pela influência de grupos cuja prioridade reside na salvaguarda dos seus interesses e direitos adquiridos, sobre todos os outros.
Talvez a ordem pudesse começar por estabelecer com a sociedade civil um diálogo aberto, devolvendo ao saber público o melhor do nosso saber e das nossas preocupações. Em vez de clamar pela enésima vez pela demissão generalizada e insustentável dos poderes públicos em relação à arquitectura, seria mais útil criar canais de comunicação com o público e as estruturas de influência política, promovendo a cultura arquitectónica e sensibilizando para o poder que reside na arquitectura enquanto instrumento de transformação da realidade, do valor e da qualidade de vida que resulta do ambiente construído em que vivemos. Quem, mais que a Ordem, terá capacidade para o fazer?

A Ordem dos Arquitectos dirá que tem feito isso mesmo, sendo aliás uma das suas grandes prioridades e motivo de iniciativas. O debate em torno do Direito À Arquitectura, e nomeadamente a promoção do Projecto de Lei de Revogação (Parcial) do Decreto 73/73, será talvez o maior exemplo. (Nota para os leigos: o Decreto-Lei 73/73 trata-se de um decreto de 1973 que veio permitir que pessoas não qualificadas na área da arquitectura possam assinar e assumir o papel de responsável técnico em projectos de arquitectura).
Infelizmente, depressa esta discussão tem caído para dentro do umbigo dos arquitectos, ficando como sempre a falar para dentro. Expressões panfletárias como É tempo de dar o seu a seu dono são o exemplo claro de como não se está a fazer passar a mensagem a quem interessa. Evidentemente, existe um problema de percepção pública relativamente à importância do trabalho dos arquitectos. Se a maioria das pessoas acharia inaceitável ser alvo de uma análise médica por um não-médico, ou receber aconselhamento jurídico por um não-advogado, já muitos acham normal que quem lhes desenha a casa não seja arquitecto. Por isso mesmo, o que está em causa não pode depender da assunção de discursos panfletários do interesse próprio dos arquitectos, mas a criação de uma base social de apoio à arquitectura generalizada na sociedade, o que só acontecerá se nós próprios, enquanto classe, formos capazes de promover essa sensibilidade sem as habituais arrogâncias altivas que nos caracterizam.

A questão reside, efectivamente, no lema promovido por Helena Roseta: a promoção do reconhecimento do valor do trabalho da arquitectura junto dos poderes públicos e dos cidadãos (sob o lema Arquitectura Para Todos). Mas esse trabalho tem de depender de uma agenda específica, de um plano de acções concretas cuja dimensão e linguagem obtenham o desejado impacto junto da sociedade civil. E isso não depende de declarações de intenções mais ou menos líricas, dos sonhos e das utopias seja de quem for.

É nesta incapacidade de comunicar para fora dos seus interesses próprios que a ordem tem perdido a batalha, dentro e fora do seu grupo de associados. E por não me rever neste tipo de diálogo, voltarei a não votar na eleição dos Orgãos Nacionais da Ordem. Porque, independentemente da simpatia que me inspira este ou aquele candidato, não sinto que estas eleições tenham alguma coisa a ver com a minha vida e a daqueles que me rodeiam.

[big in japan]

Segunda-feira

Boa tarde, ou bom dia dependendo da localização geográfica!
Já há algum tempo que leio o seu blog e é de longe um dos meus preferidos principalmente pela inteligência e maturidade dos posts, para além da excelente escolha de temas. Parabéns!
O seu blog foi um dos motivos porque comecei o meu mas infelizmente não consigo escrever diariamente nele... Nem diária nem nunca diga-se de passagem!
Sou ainda uma estudante de arquitectura, neste momento a viver no Japão ao abrigo dum programa de intercâmbio UE-Japao. Este país é fascinante e gostava de ter a disciplina para escrever no blog para arrumar e partilhar ideias...
Adiante, só queria mandar mesmo dar-lhe os parabéns! Há alguém do outro lado!
Aqui tão longe sabe bem ler em português!

Obrigado, Sayonara,

Sara Godinho, uma leitora atenta

[via email]

Eu é que agradeço as palavras de incentivo. É sempre bom receber feedback, ainda para mais quando chega do outro lado do mundo. Deixo o meu blog aberto às suas aventuras inter-continentais se alguma vez resolver deixá-las por escrito. Mande um postal, mande uma fotografia, mande um yen, mas diga qualquer coisa...
Um abraço e a melhor sorte com o curso.

[desenhos de bengal]

Sexta-feira



[Bengal via Notes From Somewhere Bizarre]

[onde acaba um país]

Quinta-feira



Uma escola deserta é um templo de vidas antigas. São as vidas de um interior que morre esquecido, lá aonde o país acaba.
Onde o estado não existe e os políticos já não prometem, onde economistas não teorizam e sociólogos também não chegam, fora dos modelos e dos planos de papel, existem terras onde já não há país. Onde o calor de um corpo solitário não chega para aquecer o frio de Inverno que entra pelas frestas do mundo lá fora.
Na escola de um menino só, uma voz não chega para calar o som da chuva que cai. Esta é uma vida feita do silêncio da serra e da dureza das pedras. O Tiago não sabe ainda mas talvez venha a descobrir que nasceu numa terra onde não existe país. Ele não conta nas contas da democracia. Ele é o interior esquecido e inútil de um corpo sem futuro e sem sentido.
Talvez o país não sirva para acolher aos sonhos deste menino, sonhos demasiados grandes para um país de gente tão pequena. Talvez o menino da aldeia sonhe com pouco mais que um amigo para brincar nas horas mortas do recreio. Talvez o procure nessas horas passadas ao computador dentro dos mundos do sonho e dos jogos, monitorizado, abandonado, para sempre esquecido.

Porque abandona o país a sua própria terra. O que procura nas montanhas de cimento e nos rios de asfalto, na cidade em movimento erguida contra o silêncio do vento e das serras. Este é um país que foge do seu próprio silêncio e da verdade de si próprio.
Talvez tenhamos deixado de ser país há muito. Talvez tenham passado demasiados séculos da última vez em que nos erguemos num desígnio comum. E também aí, o destino era a partida e não a chegada. Um país de gente em busca de um sol que se põe no mar, lá, onde o país não chega.

Talvez o Tiago sonhe com o regresso dessa gente que partiu. De repente, ei-los todos ao longe voltando a casa, de regresso às aldeias, aos ribeiros e à eira. Ei-los de volta, novos e velhos enchendo a casa do povo, a escola e a taberna. Eis que todas as aldeias se enchem em festa, que cantam e dançam e a vida volta às ruas e às praças do sonho de um menino que sonha, lá onde o país não chega.

[turning torso]

Terça-feira



Inspirado numa escultura de Santiago Calatrava, o Turning Torso é um projecto onde não se distingue quando acaba a arquitectura e começa a engenharia. O edifício maioritariamente habitacional encontra-se em plena construção na cidade de Malmo, na Suécia, estando prevista a sua conclusão para o Verão de 2005. A obra pode ser acompanhada a par e passo no site oficial.

[my brain hurts]

Terça-feira



O André e o BrainstormZ voltaram a contrariar a minha tese da defesa do papel social do estado e a insistir em não reconhecer a superioridade intelectual dos meus argumentos. Como se não bastasse, no blogue No Mundo, o CMF junta-se à festa e comenta o meu desagrado em ter sido rotulado de socialista pelo André, o que se tratou de um mal-entendido.
Perante isto, e uma vez que já não resolvemos isto com conversa, proponho-me a reunir uma quadrilha de tipos de esquerda para resolver isto à moda antiga e fazermos uma espera a estes liberais. VAMOS A ELES CAMARADAS!!!

A seguir, eis uma foto da inolvidável Daisy Duke dos Dukes Of Hazzard.

[fim de semana]

Sexta-feira



You got a fast car
I want a ticket to anywhere
Maybe we make a deal
Maybe together we can get somewhere

Any place is better
Starting from zero got nothing to lose
Maybe we'll make something
Me, myself, I got nothing to prove

You got a fast car
I got a plan to get us out of here
Been working at the convenience store
Managed to save just a little bit of money
Won't have to drive too far
Just 'cross the border and into the city
You and I can both get jobs
And finally see what it means to be living

You see my old man's got a problem
He live with the bottle, that's the way it is
He says his body's too old for working
His body's too young to look like his
My mama went off and left him
She wanted more from life than he could give
I said "somebody's got to take care of him"
So I quit school and that's what I did

You got a fast car
Is it fast enough so we can fly away?
We gotta make a decision
Leave tonight or live and die this way

I remember we were driving, driving in your car
Speed so fast I felt like I was drunk
City lights lay out before us
And your arm felt nice wrapped 'round my shoulder
And I had a feeling that I belonged
And I had a feeling I could be someone, be someone, be someone

You got a fast car
We go cruising to entertain ourselves
Still ain't got a job
And I work in a market as a checkout girl
I know things will get better
You'll find work and I'll get promoted
We'll move out of the shelter
Buy a bigger house and live in the suburbs

'Cause I remember we were driving, driving in your car
Speed so fast I felt like I was drunk
City lights lay out before us
And your arm felt nice wrapped 'round my shoulder
And I had a feeling that I belonged
I had a feeling I could be someone, be someone, be someone

You got a fast car
And I got a job that pays all our bills
You stay out drinking late at the bar
See more of your friends than you do of your kids
I'd always hoped for better
Thought maybe together you and me would find it
We got no plans and ain't going nowhere
So take your fast car and keep on driving

'Cause I remember when we were driving, driving in your car
Speed so fast I felt like I was drunk
City lights lay out before us
And your arm felt nice wrapped 'round my shoulder
And I had a feeling that I belonged
I had a feeling I could be someone, be someone, be someone

You got a fast car
Is it fast enough so you can fly away?
You gotta make a decision
Leave tonight or live and die this way


[Tracy Chapman, Fast Car]

[ground zero]

Quinta-feira



[um]
Ground Zero. Este é o nome dado ao lugar vazio deixado no centro da cidade de Nova Iorque onde as torres gémeas do World Trade Center colapsaram depois do ataque terrorista de 11 de Setembro de 2001.
A humanidade encontrou nesse dia o seu símbolo e o seu nome. Zero, ou perto de zero é o conhecimento humano das forças que motivam o comportamento humano individual, as dinâmicas sociais e a capacidade de as controlar. São essas as forças que motivaram os indivíduos por detrás dos eventos de 11 de Setembro. Desconhecidos e incontrolados, eles continuam a determinar o comportamento dos principais intervenientes dos nossos tempos.
Talvez o rumo determinante da América que hoje conhecemos tenha sido traçado pelo pós-segunda guerra mundial. Envolvida numa guerra fria e um processo crescente de militarização, lançou-se numa demanda expansionista de influência mundial contra o(s) comunismo(s). O processo de décadas transformou a economia militar e o armamento num pilar pesado do equilíbrio económico da América e da sustentação do modo de vida dos americanos.
Eis uma nação refém da sua própria estrutura de poder. Por isto dizia-me um amigo numa conversa ao serão que “ganhe Bush ou Kerry, quem ganha é a América”. Certamente, com Kerry a América não deixaria de ser uma superpotência dominadora e economicamente pressionante sobre o resto do mundo e muito particularmente sobre a Europa (ao nível financeiro, militar, científico, político, etc). O investimento militar e financeiro já colocado na invasão do Iraque tornaria impossível também a Kerry qualquer recuo da presença americana naquele país. Mas Kerry significaria o fim da influência política directa dos grupos económicos que têm determinado as decisões da administração Bush, indiferentes aos pesados custos que a sua política externa têm feito incidir sobre a sua própria população e o mundo.



[dois]
Esta fotografia foi tirada há exactamente uma semana numa manifestação popular de apoio à campanha de John Kerry no Wisconsin. A imagem tornou-se aos olhos de muitos um extraordinário sinal de esperança na mudança, entretanto perdida.
Apesar do desalento que se abate sobre todos os que alimentaram a ilusão de uma derrota de George Bush, é importante sermos capazes de olhar para além dos sentimentos e ver com maturidade e consciência aquilo que aconteceu. E o que aconteceu não se pode expressar em leituras simples.
Convém começar por olhar para os números: entre quase 115 milhões de eleitores votantes, mais de 55 milhões votaram na mudança – 3.7 milhões a menos dos que votaram em Bush. Tão importante como analisar as razões da sua vitória e as causas que mobilizaram o seu eleitorado é olhar também para estes 55 milhões de americanos que perderam, expondo a real fractura sociológica e política das “duas Américas”.
A América é um país extraordinário e cheio de contradições. As raízes fundadoras da cultura americana, tão bem expressas por Thomas Jefferson, estabeleceram em lei os princípios da democracia nos termos em que a conhecemos na sociedade contemporânea. Isto correspondeu a uma ruptura com todas as formas de governo até então conhecidas e impulsionou o difícil progresso em muitos temas sociais e humanos: da abolição da escravatura aos direitos das mulheres, do fim da perseguição religiosa à liberdade de expressão, da liberdade económica a tantas outras áreas da nossa vida.
Mas a grande construção americana é feita de contradições denunciadas por sintomas sociais que nos chocam e revoltam. Lutas de ódio racial, preconceito sexual, fanatismo religioso, posse de armas, pena de morte, eis alguns dos problemas ainda hoje latentes naquela sociedade.
Num país em crise económica, com mais desemprego, entregue a uma guerra com fim incerto, assolada pelo medo do terrorismo, venceu um candidato que tinha como principal ponto forte de campanha os “valores morais” (moral values). Apesar do discurso moderado de Kerry apelando à união dos americanos, é difícil acreditar que ela possa acontecer. Os 48% de eleitores que votaram no democrata não votaram apenas a favor de uma alternativa, votaram também contra a outra. Entregues à perplexidade de compreender o que aconteceu, dificilmente serão capazes de esbater o fosso que se tornou mais largo e visível nos últimos quatro anos e particularmente durante a campanha.
O medo ganhou o dia. O medo do terrorismo. O medo dos estrangeiros. O medo dos liberais. O medo dos gays.
O medo deles próprios.



[três]
Encruzilhada. Um homem promete atravessar o trilho da tempestade e dos perigos. Outro homem aponta a direcção de tempos melhores e um caminho de esperança. Os americanos decidiram seguir o primeiro homem, só porque garante ter o guarda-chuva maior.
Deus os abençoe.

[causa pública]

Quinta-feira



O meu recente texto intitulado Não Pagamos recebeu algumas reacções, sendo as mais notáveis as dos blogues O Observador e Tempestade Cerebral, aos quais agradeço e que me motivaram este regresso ao tema.

O texto do André Amaral n’O Observador (ler Não Está Certo) é mais provocador mas menos consequente. Os cabelos brancos que começam a aparecer-me já me aconselham a não acusar o toque de recalcamentos salazaristas. As minhas ideias sobre a matéria partilho-as de resto com todos aqueles que defendem o equilíbrio entre o mercado e o estado baseado na defesa de uma ideia de justiça social e de igualdade de oportunidades. Respeito que possamos ter diferentes entendimentos do significado destes conceitos e o André tem todo o direito a catalogar-me de socialista em termos que suponho sejam pejorativos. Mas o facto de apontar o meu socialismo ou a minha forma de pensar recalcada dos tempos do estado novo (permita-me discordar) não define em si mesmo nada de concreto: nada que demonstre que essa forma de pensar seja objectivamente boa ou má.

Seja como fôr, o caso concreto do financiamento do ensino superior se revelar numa imposição feita a todos os cidadãos segundo um conceito discutível do que é a justiça social, e que isso “está” ou “não está certo” é uma consideração irrelevante. Por uma razão simples, vivemos em democracia e os cidadãos escolherão em cada momento o modelo social do governo que quiserem eleger. E se os cidadãos decidirem optar por um modelo de ausência total de financiamento do ensino superior, então seja e aplique-se, independentemente de eu poder achar que “não está certo”, sendo que terei de aceitar a sua legitimidade democrática. O que não significa que não faça campanha pela tese contrária.
Os outros aspectos abordados pelo André foram mais desenvolvidos no Tempestade Cerebral e por isso percorro-os mais à frente. Fica apenas a minha discordância com a ideia de que uma das grandes causas do insucesso escolar se deva à desresponsabilização do aluno que não tem de pagar o seu ensino. Assumir que o ensino superior gratuito é uma “grande causa” de insucesso escolar é uma suposição perfeitamente discutível e julgo existirem fortes razões estruturais no nosso sistema de ensino bem mais centrais ao problema do insucesso do que a questão da responsabilização do aluno no pagamento directo do seu curso superior.

O blog Tempestade Cerebral desenvolveu uma resposta (ler Financiamento do "Ensino" Público II) que me pareceu mais interessante pela honestidade intelectual e a clareza de argumentos que apreciei e li com atenção. Foi o seu texto de resto que me motivou a responder, porque discordo daquilo que me parece ser uma visão parcial do problema e que contém em si a génese de uma certa insensibilidade perante o que é a causa pública. Permitam-me que diga porquê.
BrainstormZ (como subscreve o texto) faz uma distinção clara entre os modelos de economia liberal e socialista. Sublinha depois o facto do modelo socialista promover uma maior estrutura estatal, que resulta numa sobrecarga fiscal sobre os contribuintes. Conclui que essa sobrecarga constitui uma perda directa de liberdade dos cidadãos, que deixam de poder aplicar directamente os seus recursos financeiros passando o estado a fazê-lo por estes. Eu reconheço este facto mas sou incapaz de ignorar (como faz BrainstormZ) que existem ganhos para o cidadão que resultam dessa aplicação estatal. Por isso me parecem demasiado simplistas as afirmações seguintes:

A sociedade baseada numa "estrutura comum" era designada por comunista e deixou de funcionar!!! "A sociedade funciona" quando cada indivíduo é livre de seguir os seus interesses. (...)
Resumindo, a sociedade funciona melhor ou pior dependendo do nível de controlo estatal - quanto mais próximo do comunismo, pior!


Suponho que BrainstormZ conclua a seguinte ideia: sendo o modelo comunista que exerce maior controlo estatal o “pior”, o modelo liberal que exerce o menor controlo estatal será então o “melhor”. Nas suas palavras, um estado socialista retira, via impostos, liberdade de escolha aos seus cidadãos. Mas BrainstormZ só identifica as perdas, não reconhecendo (no seu texto) quaisquer ganhos da estrutura social estatal. Penso que isto resulta de uma ideia liberal que mitifica as virtudes do mercado livre mas é incapaz de reconhecer as suas limitações, nomeadamente ao nível social. Vejamos o que escreve BrainstormZ:

Tiro o telemóvel do bolso e uso uma rede paga pelos clientes da operadora móvel. Ligo a televisão e vejo um programa pago pelos anunciantes desse canal. Entro no carro e chego ao Porto em 3 horas porque uso uma auto-estrada paga com o dinheiro das portagens. Publico um texto no blogosfera e uso uma infra-estrutura paga pelos clientes da ISP (Internet Service Provider). Etc, etc, etc...
(...)
Se o Daniel conseguiu compreender o que neste post escrevi, facilmente perceberá que a "existência de uma sociedade colectiva" não depende do Estado mas, sim, do que Adam Smith afirmou ser a "mão invisível" de uma economia de mercado: ao defendermos os nossos interesses estamos a contribuir para o bem-estar de outros. Não fui eu o produtor da casa onde vivo, das roupas que visto ou do computador onde escrevo este post. Mas, porque existiam empresários interessados em seguir os seus próprios interesses, hoje o meu bem-estar é exponencialmente superior. Não vivemos em cavernas porque as nossas necessidades são melhor servidas quando existe um mercado para adquirir, por mútuo acordo, os bens que as satisfazem. Uma sociedade colectiva é resultado da acção humana.


Esta argumentação é verdadeira mas escapa-lhe uma parte do problema. Como sempre a realidade é complexa. O que escreveu BrainstormZ só faz sentido do ponto de vista do cidadão de Lisboa ou dos grandes centros urbanos. Mas o habitante de Freixo de Espada à Cinta ou de Cuba do Alentejo tem o mesmo direito dos cidadãos de Almada ou do Cacém em ter uma estrada que o leve até ao hospital mais próximo, ter um transporte colectivo que leve os seus filhos para a escola, ter electricidade em casa e água tratada a saír das torneiras. E a questão coloca-se então nos próprios termos de BrainstormZ: “as nossas necessidades são melhor servidas quando existe um mercado para adquirir, por mútuo acordo, os bens que as satisfazem”. Mas o que fazer quando o mercado não encontra qualquer vantagem em satisfazer as nossas necessidades, especialmente quando estas se referem a direitos fundamentais dos cidadãos (daqueles que estão consagrados na Constituição da República Portuguesa)?

Alguns textos que vou pontualmente escrevendo a defender o estado ou a importância da causa pública não pretendem ser um ataque à economia de mercado. Se me sinto motivado a escrever sobre o estado é por sentir que a actual evolução da sociedade portuguesa (e europeia) se desenvolve no sentido das tendências económicas mais liberais que favorecem a desconstrução do estado naquilo que ele tem de mais essencial. E por isso me preocupa a constante degradação dos serviços públicos sob a batuta de um discurso miserabilista, descompondo o estado a caminho de uma realidade que não se sabe bem o que é nem qual será a sua sustentabilidade futura. Essa realidade que alguns proclamam endeusando as virtudes do mercado livre dessa nova “liberal democracia” cujo motor é simplesmente económico e não motivado por reais valores de cidadania (
a pessoa humana como primado da acção política).
Ignorando as perversões que resultam do livre-arbítrio do mercado, os liberais parecem querer esquecer que o mercado é selectivo em relação aos seus interesses: a prioridade do mercado é satisfazer os seus interesses e não necessariamente os dos outros. Mais: mesmo nos seus mecanismos de auto-regulação, o mercado ignora os custos humanos decorrentes. O caso do ensino superior (que originou esta reflexão) é um bom exemplo disto. Podemos dizer que o estado não tem de definir quais os cursos que devem ou não devem existir. Se existir procura para determinados cursos, o mercado produzirá oferta. E se esses cursos não tiverem saída profissional, a procura por eles diminuirá e esses cursos acabarão por desaparecer. Mas no caminho desses processos existem cidadãos a hipotecar o seu futuro na expectativa de adquirir um grau superior, mesmo que ele acabe por não servir a ninguém: nem ao estudante nem ao país (e servindo assim apenas o mercado). E tudo isto porque o estado não desenvolve nenhuma visão estratégica daquilo que pretende para o ensino superior em moldes que sejam de alguma utilidade para o futuro do país.

Para concluir, resta-me dizer que não reconheço ter uma visão exclusivamente financeira da questão do ensino superior. Qualquer raciocínio é selectivo e por isso passível de caír na simplificação. A realidade é sempre mais complexa e ficaria aqui a escrever um tratado para abordar todos os aspectos do problema. Mas não posso deixar de dizer que no que diz respeito ao estado não sou a favor de fugas para a frente nem de ilusionismos que não olhem para essa complexa realidade. E preocupa-me por isso que o motor das transformações que vamos vivendo seja um partido que têm na sua génese Sá Carneirista um posicionamento
entre o centro esquerda e centro direita, numa procura de equilíbrio entre as pulsões liberais e os fundamentos da social-democracia (essa que o PSD parece ter colocado também há muito na gaveta). Esse abandono pode muito bem acabar por conduzir-nos da falência do Estado-Providência para o que pode bem vir a ser a falência de um Estado-Neoliberal. A que preço? Ninguém sabe. E espero nunca chegarmos a saber.