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Recordo-me de estar numa aula de Projecto do segundo ano da faculdade quando a professora lançou sobre nós a sentença cruel: “Vocês não têm cultura arquitectónica”. Aquilo ribombou sobre nós como uma pena de morte, era como se não tivéssemos Q.I., era ainda pior do que ser-se virgem.
Os arquitectos queixam-se recorrentemente da ignorância do povo. O povo quer é casinhas com beiradinhos, alizarzinhos, pilares coríntios, enfim, o povo gosta é das casas dos estrunfes. Não estou a dizer que os arquitectos não têm razão: cada um tende a gostar daquilo que conhece e a generalidade das pessoas conhece muito pouca arquitectura. É assim verdade que o povo – palavra que utilizo aqui num sentido muito lato – não tem cultura arquitectónica. Mas esta postura é uma ratoeira: nós os eruditos do lado de cá da trincheira e eles do lado de lá, esses ignorantes.
A formação profissional atira-nos para dentro de um universo próprio com regras e linguagens que só nós sabemos descodificar. Isto acontece aos arquitectos, aos cientistas, aos médicos, aos juristas, enfim, a quase todos. À medida que o nosso universo de referências aumenta mais específica fica a nossa linguagem. Tomamos como pressupostos-base coisas que os que estão de fora ainda nem sequer começaram a vislumbrar, e por isso a nossa linguagem vai-se tornando nebulosa, complexa e incompreensível.
Por isso é fundamental inverter esta tendência de ficarmos todos a falar para dentro. Há, de resto, exemplos notáveis de abertura de certas áreas ao domínio do homem comum com resultados extraordinários (e em áreas poventura bem mais complexas do que a arquitectura). Então vejamos:
Carl Sagan pode não ter sido o cientista mais genial e relevante da história da ciência. Mas o que seria da ciência sem Carl Sagan. Eis um homem que criou uma nova linguagem e abriu um continente de saber aos leigos. Alguém que soube revelar numa obra riquíssima o produto do trabalho de séculos de busca de saber. E fazendo-o, ofereceu ao mundo uma visão poderosa do que somos e do que sabemos sobre o mundo em que vivemos. Mas, talvez mais importante ainda, ao fazê-lo construiu na sociedade uma forte base de apoio à defesa da ciência e ao seu desenvolvimento.
Sagan não foi certamente o único notável comunicador científico - hoje, a informação científica é todo um sector profissional - mas a sua importância para a valorização da ciência é inquestionável.
Isto mostra que a abertura do saber à sociedade é uma fonte de enorme apoio social. Veja-se o caso de alguém como o psiquiatra Júlio Machado Vaz. Para além das suas qualidades como terapêuta, o seu trabalho na área da comunicação é um excelente serviço à psiquiatria. Ao partilhar com o cidadão comum muito do seu saber e da sua sensibilidade ele está a contribuir para despertar na sociedade uma consciência madura sobre aquilo que somos e o modo como nos relacionamos. O alcance dessa mensagem está infelizmente sujeito às prioridades mediáticas, mas atrever-se-á alguém a afirmar que o seu contributo não é importante?
Voltando então aos arquitectos, era fundamental fazer este trabalho de retorno ao público do nosso saber e das nossas preocupações. E esse trabalho devia ser promovido pela própria Ordem dos Arquitectos – porque todos beneficiaríamos com isso. Na nossa e nas outras ordens profissionais, tão importante como falar para dentro será abrir-nos à sociedade e devolver ao saber público o melhor de nós todos, sem arrogâncias altivas mas com a humildade dos grandes comunicadores que tanto nos têm ensinado.
Olá.. procurando algo bom neste mundo peculiar dos blogs, achei vc..parabéns! Gostaria que me visitasse..Meu blog tem apenas alguns dias de vida..
ResponderEliminarhttp://doutroladodomar.blogspot.com
Também me parece, é fundamental e urgente.
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