Quinta-feira
O meu recente texto intitulado Não Pagamos recebeu algumas reacções, sendo as mais notáveis as dos blogues O Observador e Tempestade Cerebral, aos quais agradeço e que me motivaram este regresso ao tema.
O texto do André Amaral n’O Observador (ler Não Está Certo) é mais provocador mas menos consequente. Os cabelos brancos que começam a aparecer-me já me aconselham a não acusar o toque de recalcamentos salazaristas. As minhas ideias sobre a matéria partilho-as de resto com todos aqueles que defendem o equilíbrio entre o mercado e o estado baseado na defesa de uma ideia de justiça social e de igualdade de oportunidades. Respeito que possamos ter diferentes entendimentos do significado destes conceitos e o André tem todo o direito a catalogar-me de socialista em termos que suponho sejam pejorativos. Mas o facto de apontar o meu socialismo ou a minha forma de pensar recalcada dos tempos do estado novo (permita-me discordar) não define em si mesmo nada de concreto: nada que demonstre que essa forma de pensar seja objectivamente boa ou má.
Seja como fôr, o caso concreto do financiamento do ensino superior se revelar numa imposição feita a todos os cidadãos segundo um conceito discutível do que é a justiça social, e que isso “está” ou “não está certo” é uma consideração irrelevante. Por uma razão simples, vivemos em democracia e os cidadãos escolherão em cada momento o modelo social do governo que quiserem eleger. E se os cidadãos decidirem optar por um modelo de ausência total de financiamento do ensino superior, então seja e aplique-se, independentemente de eu poder achar que “não está certo”, sendo que terei de aceitar a sua legitimidade democrática. O que não significa que não faça campanha pela tese contrária.
Os outros aspectos abordados pelo André foram mais desenvolvidos no Tempestade Cerebral e por isso percorro-os mais à frente. Fica apenas a minha discordância com a ideia de que uma das grandes causas do insucesso escolar se deva à desresponsabilização do aluno que não tem de pagar o seu ensino. Assumir que o ensino superior gratuito é uma “grande causa” de insucesso escolar é uma suposição perfeitamente discutível e julgo existirem fortes razões estruturais no nosso sistema de ensino bem mais centrais ao problema do insucesso do que a questão da responsabilização do aluno no pagamento directo do seu curso superior.
O blog Tempestade Cerebral desenvolveu uma resposta (ler Financiamento do "Ensino" Público II) que me pareceu mais interessante pela honestidade intelectual e a clareza de argumentos que apreciei e li com atenção. Foi o seu texto de resto que me motivou a responder, porque discordo daquilo que me parece ser uma visão parcial do problema e que contém em si a génese de uma certa insensibilidade perante o que é a causa pública. Permitam-me que diga porquê.
BrainstormZ (como subscreve o texto) faz uma distinção clara entre os modelos de economia liberal e socialista. Sublinha depois o facto do modelo socialista promover uma maior estrutura estatal, que resulta numa sobrecarga fiscal sobre os contribuintes. Conclui que essa sobrecarga constitui uma perda directa de liberdade dos cidadãos, que deixam de poder aplicar directamente os seus recursos financeiros passando o estado a fazê-lo por estes. Eu reconheço este facto mas sou incapaz de ignorar (como faz BrainstormZ) que existem ganhos para o cidadão que resultam dessa aplicação estatal. Por isso me parecem demasiado simplistas as afirmações seguintes:
A sociedade baseada numa "estrutura comum" era designada por comunista e deixou de funcionar!!! "A sociedade funciona" quando cada indivíduo é livre de seguir os seus interesses. (...)
Resumindo, a sociedade funciona melhor ou pior dependendo do nível de controlo estatal - quanto mais próximo do comunismo, pior!
Suponho que BrainstormZ conclua a seguinte ideia: sendo o modelo comunista que exerce maior controlo estatal o “pior”, o modelo liberal que exerce o menor controlo estatal será então o “melhor”. Nas suas palavras, um estado socialista retira, via impostos, liberdade de escolha aos seus cidadãos. Mas BrainstormZ só identifica as perdas, não reconhecendo (no seu texto) quaisquer ganhos da estrutura social estatal. Penso que isto resulta de uma ideia liberal que mitifica as virtudes do mercado livre mas é incapaz de reconhecer as suas limitações, nomeadamente ao nível social. Vejamos o que escreve BrainstormZ:
Tiro o telemóvel do bolso e uso uma rede paga pelos clientes da operadora móvel. Ligo a televisão e vejo um programa pago pelos anunciantes desse canal. Entro no carro e chego ao Porto em 3 horas porque uso uma auto-estrada paga com o dinheiro das portagens. Publico um texto no blogosfera e uso uma infra-estrutura paga pelos clientes da ISP (Internet Service Provider). Etc, etc, etc...
(...)
Se o Daniel conseguiu compreender o que neste post escrevi, facilmente perceberá que a "existência de uma sociedade colectiva" não depende do Estado mas, sim, do que Adam Smith afirmou ser a "mão invisível" de uma economia de mercado: ao defendermos os nossos interesses estamos a contribuir para o bem-estar de outros. Não fui eu o produtor da casa onde vivo, das roupas que visto ou do computador onde escrevo este post. Mas, porque existiam empresários interessados em seguir os seus próprios interesses, hoje o meu bem-estar é exponencialmente superior. Não vivemos em cavernas porque as nossas necessidades são melhor servidas quando existe um mercado para adquirir, por mútuo acordo, os bens que as satisfazem. Uma sociedade colectiva é resultado da acção humana.
Esta argumentação é verdadeira mas escapa-lhe uma parte do problema. Como sempre a realidade é complexa. O que escreveu BrainstormZ só faz sentido do ponto de vista do cidadão de Lisboa ou dos grandes centros urbanos. Mas o habitante de Freixo de Espada à Cinta ou de Cuba do Alentejo tem o mesmo direito dos cidadãos de Almada ou do Cacém em ter uma estrada que o leve até ao hospital mais próximo, ter um transporte colectivo que leve os seus filhos para a escola, ter electricidade em casa e água tratada a saír das torneiras. E a questão coloca-se então nos próprios termos de BrainstormZ: “as nossas necessidades são melhor servidas quando existe um mercado para adquirir, por mútuo acordo, os bens que as satisfazem”. Mas o que fazer quando o mercado não encontra qualquer vantagem em satisfazer as nossas necessidades, especialmente quando estas se referem a direitos fundamentais dos cidadãos (daqueles que estão consagrados na Constituição da República Portuguesa)?
Alguns textos que vou pontualmente escrevendo a defender o estado ou a importância da causa pública não pretendem ser um ataque à economia de mercado. Se me sinto motivado a escrever sobre o estado é por sentir que a actual evolução da sociedade portuguesa (e europeia) se desenvolve no sentido das tendências económicas mais liberais que favorecem a desconstrução do estado naquilo que ele tem de mais essencial. E por isso me preocupa a constante degradação dos serviços públicos sob a batuta de um discurso miserabilista, descompondo o estado a caminho de uma realidade que não se sabe bem o que é nem qual será a sua sustentabilidade futura. Essa realidade que alguns proclamam endeusando as virtudes do mercado livre dessa nova “liberal democracia” cujo motor é simplesmente económico e não motivado por reais valores de cidadania (
a pessoa humana como primado da acção política).
Ignorando as perversões que resultam do livre-arbítrio do mercado, os liberais parecem querer esquecer que o mercado é selectivo em relação aos seus interesses: a prioridade do mercado é satisfazer os seus interesses e não necessariamente os dos outros. Mais: mesmo nos seus mecanismos de auto-regulação, o mercado ignora os custos humanos decorrentes. O caso do ensino superior (que originou esta reflexão) é um bom exemplo disto. Podemos dizer que o estado não tem de definir quais os cursos que devem ou não devem existir. Se existir procura para determinados cursos, o mercado produzirá oferta. E se esses cursos não tiverem saída profissional, a procura por eles diminuirá e esses cursos acabarão por desaparecer. Mas no caminho desses processos existem cidadãos a hipotecar o seu futuro na expectativa de adquirir um grau superior, mesmo que ele acabe por não servir a ninguém: nem ao estudante nem ao país (e servindo assim apenas o mercado). E tudo isto porque o estado não desenvolve nenhuma visão estratégica daquilo que pretende para o ensino superior em moldes que sejam de alguma utilidade para o futuro do país.
Para concluir, resta-me dizer que não reconheço ter uma visão exclusivamente financeira da questão do ensino superior. Qualquer raciocínio é selectivo e por isso passível de caír na simplificação. A realidade é sempre mais complexa e ficaria aqui a escrever um tratado para abordar todos os aspectos do problema. Mas não posso deixar de dizer que no que diz respeito ao estado não sou a favor de fugas para a frente nem de ilusionismos que não olhem para essa complexa realidade. E preocupa-me por isso que o motor das transformações que vamos vivendo seja um partido que têm na sua génese Sá Carneirista um posicionamento
entre o centro esquerda e centro direita, numa procura de equilíbrio entre as pulsões liberais e os fundamentos da social-democracia (essa que o PSD parece ter colocado também há muito na gaveta). Esse abandono pode muito bem acabar por conduzir-nos da falência do Estado-Providência para o que pode bem vir a ser a falência de um Estado-Neoliberal. A que preço? Ninguém sabe. E espero nunca chegarmos a saber.
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Por agora, porque já é tarde (risos), deixo apenas um comentário à seguinte afirmação (como deve calcular posiciono-me a anos luz do blogger que a proferiu):
ResponderEliminar"A sociedade funciona quando cada indivíduo é livre de seguir os seus interesses"
Esta máxima, que deu origem ao mais violento e agressivo individuialismo das sociedades modernas é partilhada por todos os que não compreendem "que o MEU interesse é o interesse da comunidade"; não há, não pode haver sob pena de nos auto-destruirmos a muito breve trecho, qualquer equívoco.
Como seres gregários que somos a nossa sobrevivência depende do bem-estar do grupo. O interesse do grupo é o meu interesse e vice-versa. A sobrevivência do grupo depende do equilibrio de todo o eco-sistema, e assim sucessivamente.
A incompreensão desta relação fundamental leva-nos a cometer crimes que, por exemplo, contribuirão para que dentro de 30 anos os recursos hídricos do planeta se encontrem esgotados. Nessa altura compreenderemos onde está "o nosso interesse individual". Se sobrevivermos até lá.
Esta seria uma longa e sem dúvida interessante discussão. Fica apenas a observação. Como comentei lá na "minha casa2, na "ditadura do Homo Economicus" sou absolutamente avessa a este discurso "belicista" que esgrima a arma da liberdade económica como chave da felicidade humana. É de quem se recusa a ver a imagem que o mundo nos devolve todos os dias.
abraço
Não poderia concordar mais contigo.
ResponderEliminarMas creio que ainda é pior. O mercado nunca vai seleccionar os cursos em relação à procura que os profissionais terão (se haverá muita ou pouca trabalho para engenheiros de saneamento), mas em relação à procura dos próprios cursos (se há muita ou pouca gente interessada em ser engenheiro de saneamento).
As razões da existência dos cursos têm pouco a ver com a procura de uma certa profissão, mas mais com o marketing que dela fazem as instituições de ensino interessadas na sua própria auto-sobrevivência.
No caso dos cursos de arquitectura, "poder-se-ia inocentemente pensar que esta multiplicação dos cursos fora uma resposta à famosa regra capitalista da oferta seguindo a procura" mas de facto foram fruto de uma intervenção estatal e da necessidade de se manterem no negócio.
A partir daí gerou-se uma "trend" em que se há tantos cursos é o porque há muita saída... e é aquilo que se vê.