A pele da cidade



Vi recentemente o badalado Crash de Paul Haggis, vencedor do Óscar para melhor filme do ano. Trata-se de uma obra muito recomendável em especial pelos méritos do argumento, igualmente premiado, rico em diálogos ácidos e situações bruscas onde as tensões e os conflitos raciais discorrem à flor da pele.
Um dos personagens mais interessantes e difíceis desta Colisão é o agente Ryan, um polícia de giro protagonizado por Matt Dillon num grande momento da sua carreira. Testemunhamos pela primeira vez o agente Ryan numa situação de abuso de autoridade de contornos particularmente repulsivos. O episódio irá marcar o seu percurso nos dois dias da narrativa. Vamos, no entanto, descobri-lo como algo mais que o homem azedo e assumidamente racista que começamos por conhecer.
A sua história é apenas uma entre as muitas que colidem neste filme suportado por actores de primeira linha. Crash é a narração dessas interacções por vezes brutais, outras vezes redentoras. Acima de tudo, e aí reside aquilo que o filme tem de inovador, é um representação irrevogável de como o contexto determina muito daquilo que somos ou em que nos tornamos, latente na pergunta que Ryan lança ao jovem e puro agente Hanson: Pensas que sabes quem és?... Nem fazes ideia. À sua maneira, Ryan carrega também a sua cruz; uma cruz que não o absolve dos seus pecados e fraquezas, mas que nos faz pensar que noutro contexto e noutro local, o mesmo Ryan poderia ter sido um bom polícia, mais humano e mais digno.
Não esperando que venha a ser uma referência maior da cinematografia americana, não deixa de ser à sua maneira um documento interessante para compreender o grande quadro humano da vida contemporânea. Retrato de uma realidade urbana particular mas cujos contornos são universais, Crash contém no seu extraordinário texto um olhar sobre o ressentimento e a violência, a incompreensão e a esperança redentora que fazem de todos nós seres frágeis à deriva num mundo por vezes tão trágico, por vezes tão frio.
_
Adenda: um outro olhar sobre Crash, do meu amigo Luís Pedro Martins (publicado originalmente no Cinema 2000).

Como impedir o mundo de colidir?

Para criar esta poderosa obra, Paul Haggis inspirou-se num episódio da sua vida.
Por volta de 1991, o realizador canadiano foi surpreendido, juntamente com a mulher, por dois homens que o assaltaram, roubando o seu carro. Dez anos depois, o advento do 11 de Setembro desencadeou uma série de inquietações no espírito de Haggis, levando-o a recuperar o assalto de que fora vítima e do qual nunca se tinha libertado (esta cena, aliás, será recriada por Sandra Bullock e Brendan Fraser).
A partir daí, e com a preciosa ajuda de Bobby Moresco (co-argumentista) Paul Haggis desenvolveu o argumento-base que viria a tranformar-se em Crash: uma electrificante fábula sobre a culpa e a redenção, a inocência e o medo, a segurança e a paranóia.
Crash coloca várias questões, tão actuais: como podemos sentir "os outros" sem, ao mesmo tempo, colidirmos? Quão fatal será a fronteira entre a inocência e o medo? Será a culpa um instrumento de ódio ou de redenção?

Numa altura em que muitos realizadores nos EUA se debruçam sobre a sua história e os seus ícones, tentando (re)encontrar nos grandes temas a estrutura moral americana (Munich e Good Night and Good Luck são disso bons exemplos) Haggis terá voltado a um tema antigo e, talvez por isso, mais arriscado: as questões raciais.
Concebido como uma espiral, numa montagem que faz lembrar "Shortcuts"/Robert Altman ou "Magnólia"/Thomas Anderson, Crash parte de um crime (ao qual voltamos sempre), desenvolvendo a partir daí toda uma série de acontecimentos em que várias personagens de diferentes raças e classes sociais, inevitavemente, chocam.

Sem querer revelar os meandros da história, correndo o risco de a expor demasiado, interessa aqui falar sobre aquilo em que Crash se diferencia de tantos outros filmes que abordam os conflitos raciais e a violência nas grandes cidades.
Ao contrário de exemplos como "Do the Right Thing"/Spike Lee (1989), "Safe"/Todd Haynes (1995) ou os mais recentes "Training Day"/Antoine Fuqua (2001) e "25th Hour/Spike Lee (2002), todos eles ensaios brilhantes de uma realidade no fio da navalha, neste filme a violência-limite encontra o seu antídoto. Mas isso não faz de Crash menos realista e amargo do que os restantes.
Não. Crash está bem longe de ser politicamente correcto. Utilizando o choque racial como parábola (em que 5 línguas coexistem), o filme coloca-nos no "olho da serpente". Durante 24 horas na cidade de Los Angeles, um realizador de TV bem sucedido, uma dona de casa burguesa, um polícia veterano, um comerciante Persa, dois assaltantes cabotinos, todos eles se vão encontrar e todos eles acabam por colidir em confrontos moralmente difusos, forçando-nos a tomar partido.
Mas o brilhantismo de Crash reside na forma como Paul Haggis monta a estrutura narrativa. Como cirurgicamente cada um destes personagens, no auge da sua espiral emotiva, acredita, desacreditando. E tem (terá?) o seu momento de redenção.
A verdade, essa, permanece crua: ninguém é inocente. E a vida, afinal, continua.
Se se quiserem redimir, já sabem.Têm aqui uma bela oportunidade.

MEUS CRÉDITOS FINAIS:

REALIZAÇÃO
Paul Haggis (n.1953, Ontario-Canadá) estreia-se em Crash, mas está longe de ser um desconhecido.Vencedor de dois Emmys, escreveu o argumento de "Million Dollar Baby" (adaptando o romance homónimo de F.X. Toole)pelo qual foi nomeado para Óscar. Antes de fazer a transição da televisão para o cinema (em 2000), deixou um legado visionário com várias séries, das quais se destaca EZ Streets (1996) aclamada pelo NY Timescomo uma das mais influentes de sempre e que muitos consideram a verdadeira precursora de Sopranos. Haggis já está a trabalhar no seu próximo filme "Honeymoon with Harry", com estreia para o Verão de 2006 e escreveu o argumento do próximo filme de Clint Eastwood "Flags of our Fathers", sobre a II Guerra Mundial. Estão previstas colaborações futuras com Steven Spielberg. Na noite dos Óscares poderá ser o grande Outsider.

ELENCO
Poderosíssimo. Um dos melhores e mais consistentes a que tenho assistido nos últimos tempos. A concepção narrativa que Paul Haggis impõe no filme, com a premissa de que "ninguém é melhor que ninguém", perpassa na perfeição para a direcção de actores. Onde nem mesmo as estrelas Sandra Bullocks, Matt Dillon ou Don Cheaddle (co-produto) produção). Grande destaque para Terrence Howard (Cameron), nomeado para óscar de melhor actor em “Hustle and Flow, de John Singleton e recentemente aclamado pela Entertainment Weekly como o novo “Indie Film King”.

MINHA CLASSIFICAÇÃO: ****
Não é uma obra prima, mas torna-se indispensável.
Luís Pedro Martins, 2006-03-04

24 comentários:

  1. Quando vi o filme eu escrevi isto. É um pouco menos laudatório, portanto para fazer um pouco de contra-balanço. É só o meu rancor do filme ter ganho o óscar para melhor filme. :-)

    São retalhos de histórias. Tristezas, solidões, violências, abusos, incompreensões q.b., e por vezes com tão pouco de verosímil ou bastas vezes tão politicamente correcto e escorridinho, que se constitui também como um ataque ao espectador. Subtileza precisa-se! O director segue o modelo de interligar as diferentes histórias introduzindo as mesmas personagens em diferentes retalhos, que tornou-se agora a moda, mas neste caso com todo o sentido e mestria. Existe a figura de estilo cinematográfica do cortejo das personagens a deambular as suas misérias estilo "Magnólia", mas sem o poder de envolvência que foi criado neste filme entre as personagens e o espectador ou uma banda sonora como a de Aimee Mann. Para completar e prover o filme com todos os pequenos acessórios de um filme "a sério" e talvez para o director mostrar um certo virtuosismo, um competentérrimo flashback. Finalizando, há cenas per se bastante boas. Não é um filme genial, mas um filme americano competente sobre um tema difícil.

    A mensagem é que somos todos boa gente, a viver vidas difíceis, ok com pré-conceitos, mas, principalmente, o racismo alimenta-se da acção da cidade opressora sobre as pessoas, pois cada um de nós mostrará o seu melhor nos momentos de crise. Ah, e a redenção existe às pazadas!

    ResponderEliminar
  2. a mim o crash não ofereceu nada de novo, e tudo o que me ofereceu já me tinha sido oferecido - melhor - por muitos outros. irritou-me particularmente a sensação omnipresente do politicamente correcto, a sensação de ver o filme ali a falar dos males da sociedade mas de forma demasiado contida, pouco arriscada, porque é assim que o público gosta, ou então teríamos um Happiness, e o Happiness, como se sabe, não atingiu o reconhecimento que Crash atingiu (seria impossível tal acontecer, exactamente pela natureza irreverente, ácida e verdadeiramente arriscada do Happiness), mas ao menos fez o que fez sem medos, sem recorrer academismos e simplismos ao nível da narrativa e da realização.
    Crash é guiado por meia dúzia de linhas fulminantes (aquela do Don Cheadle logo no início: "I think we miss that touch so much, that we crash into each other, just so we can feel something", ou essa que referes, da personagem do Matt Dillon, entre outras muito boas) e muitas personagens, todas elas interessantes e pertinentes, e isso agrada sempre. Mas no fim há a inevitável redenção, porque o espectador gosta sempre de uma boa redenção dos personagens no final da história, e acabamos o filme com um sentimento de vazio mas com um estranho preenchimento interior, porque no fim tudo acaba bem mesmo que nem tudo acaba bem. sentimo-nos vazios mas enternecidos. enfim, se calhar é por isto que muitos apreciaram o filme. eu prefiro filmes que, a ser política e socialmente activos, o façam de forma bruta, que me deixe abananado e a pensar na questão por dias. coisa que não aconteceu com crash.
    mas bem, até apreciei o filme, apenas achei-o insosso quando o vi - ainda não tinham havido prémios alguns - e continuo a achá-lo. insosso e simplista, pouco arriscado e académico. no entanto tem as suas qualidades, claro, especialmente o elenco e a direcção de fotografia, a lembrar os tons dos filmes de michael mann. esse sim, um ganda homem.
    (espero que não me chamem pseudo-intelectual aqui como já fizeram noutro blog no qual dei esta mesma opinião.)

    ResponderEliminar
  3. Gabriela, desculpe a maldade mas, a julgar pela última entrada no seu blogue, é um pouco mais exigente com os filmes do que com os homens. Seja como for, não consigo contestar a sua perspectiva. Discutir a “honestidade” do filme seria discutir o sexo dos anjos. Será assim tão politicamente correcto. Será essa conclusão fruto de um olhar limpo sobre este Crash, ou antes resultante de um ponto de partida já de si carregado de descrença sobre o filme. Não sei responder.
    Sei que parto para um filme preparado para o aceitar nos seus termos. Será fácil desancar em Crash quando pude ver na mesma semana O Padrinho. Crash não é certamente um monumento de cinematografia, uma “obra de arte total”, nem será uma referência como um Apocalypse Now de Coppola ou um 2001 de Kubrick. Já acho curiosas as comparações a Magnolia, que me parece completamente diferente para lá das óbvias semelhanças estruturais. Crash apoia-se num script com algumas situações particularmente poderosas, pungentes, mas não é certamente tão negro e inquietante como o brilhante filme de Paul Thomas Anderson. Magnolia é um retrato do interior profundo das personagens, enquanto Crash é um filme sobre o seu mundo exterior. Não se trata, de resto, dessa visão de “cidade opressora” mas de uma cidade feita de pessoas e das suas interacções ou colisões. Não se dirá que um psicopata serial-killer é uma vítima de uma sociedade violenta e prepotente; cada um é responsável pelas suas escolhas e pelas suas consequências, como bem vemos no exemplo que referi do agente Ryan.
    Fala-se de realismo. Os temas, as emoções de Crash são perfeitamente reconhecíveis e, nesse sentido, reais na sua interpelação do espectador. As situações que evoca são, no entanto, várias vezes marcadas por um tom de fábula, reconhecível até no registo fotográfico, nos contornos de luz e cor que marcam o filme. A história do serralheiro latino, por exemplo, é uma das mais belas do filme, e no entanto, é quase assumidamente um conto de fadas.
    Percebo perfeitamente a emoção do José em relação ao filme. É um filme à procura de fazer as pazes consigo mesmo. E compreendo a referência a Michael Mann; se este Crash fosse capaz de trazer para dentro a própria cidade como Mann faz em Collateral – à sua maneira também uma história de “colisões” – estaríamos perante um grande filme.
    Quanto a chamarem-lhe de “pseudo-intelectual”, junte-se ao clube e não se preocupe mais com isso.

    ResponderEliminar
  4. É realmente um filme extraordinário que me deixou a pensar por longos dias. Confesso até que o vi 2 vezes na mesma semana. Tenho por hábito ver e rever por diversas vezes os filmes que mais gosto mas nunca me tinha acontecido sentir necessidade de rever dois ou três dias depois. Achei engraçado também ter retido a frase entre os dois polícias (ver http://oarcodavelha.blogsome.com/2006/03/30/colisao). Não sabemos aquilo que somos, julgamos urdir o nosso destino, mas não o fazemos, são os nossos actos impulsivos nos momentos que não conseguimos prever que o fazem por nós.

    ResponderEliminar
  5. Daniel Carrapa, que maldade. Mas vou ser frontal: o meu poste é sobre beleza física, sobre o que entra pelos olhos. Nao mete intelecto. Nao quero ser eu mázinha com o rapazinho em questao. Nao o conheÇo. Pode até ser que seja um António Aleixo. Mas o meu poste passa-se do pescoÇo pra baixo.

    Mas indo ao que interessa: a colagem ao Magnólia é óbvia. O tema pode ser diferente, mas o uso dos mesmos esquemas cinematográficos salta 'a vista. Acharia piada fazer um questionário 'as pessoas que viram os dois filmes perguntando-lhes se quando a cena das personangens em série com música passou, se nao se lembraram do Magnólia. Quantos fizeram a ligaÇao? Contudo neste filme, sabe mal, porque é como ver uma imitaÇao barata.

    Eu nao esperava nada do filme quando o fui ver. Foi em Agosto. Estava a chover, fui ao cinema. Portanto estou livre de preconceitos.

    As personagens sao apresentadas como sendo vítimas das circunstancias que as ofende, que as pica, que as leva ao extremo. Ryan tem que coabitar com um colega racista e nojento. O persa é roubado. O polícia racista tem um pai doente. O produtor é humilhado 'a frente da mulher. A reaccao? Desancam noutros. O amarelo agride o preto, que agride o branco, que agride o bege, que agride o amarelo. Eu nao acredito nisto.

    Mas eles sao todos bons! Só que há uma bombinha dentro deles que se pressionada os leva ao confronto. Nao é escolha deles. Eles cresceram num pote de culturas que os leva a estar sempre alerta, que os leva a disparar. O caso de Ryan é o exemplo claro. Um rapaz correcto, a gente gosta dele, mas dentro dele a bombinha leva a que o choque seja inevitável. O único sem mácula é o que cai mais fundo. O único que nao precisa de redenÇao é o que carrega a pior das acusaÇoes. Nao há hipótese. Ninguém foge 'a lei da colisao. Eu nao acredito nisto.

    ResponderEliminar
  6. Deixei um comentário, mas parece que se perdeu. Agora nao me apetece reescrever. Talvez mais tarde.

    ResponderEliminar
  7. Daniel Carrapa,

    a sua caixa de comentários tem vida própria.

    ResponderEliminar
  8. Gabriela, peço desculpa pela maldade. Estou a falar a serio, foi um impulso pateta e pouco apropriado. A G. estava a falar do filme, e é isso que interessa. Já agora, só para esclarecer, o Ryan não é o polícia jovem, é mesmo o racista nojento. Por alguma razão os maus parecem ser sempre mais interessantes.
    Quanto aos comentários, por vezes demoram a aparecer. Coisas do sistema, ou então é a caixa de comentários que é como eu: às vezes tem mau feitio.

    ResponderEliminar
  9. Oh Daniel, nao levei a mal. O pobre do Cristiano (que Deus o guarde de nao usar a net) é que poderia ficar chateado. Mas ele, um jovem, com idade para ser meu sobrinho, rodeado de inglesas (conhecidas nas estatisticas de Bruxelas como umas meninas muito dadas) deve-se estar a borrifar (que Deus o guarde para o Mundial). :-)

    Já me esqueci dos nomes. Pensei que fosse Ryan pelo seu texto.

    Sublinho que gostei do filme. Penso que se denota pelo meu texto original. Faz pensar, bate. O que chateia é a pouca subtileza. O primeiro texto eu escrevi-o na altura em que o vi, em Agosto, sem qualquer ideia que iria ser nomeado para os óscares, quanto mais vencer. O rancor liberto-o ao estar sempre a acentuar que tem defeitos quando alguém diz que gostou do filme. Nao resisto.

    ResponderEliminar
  10. vou ver se vejo este filme.

    ResponderEliminar
  11. Olha que tosca, está claro no seu texto que Ryan é o polícia racista.

    O Matt Dillon faz mesmo um papelao. Só que em vez de usar o talento... Vi uma apresentaçao no cinema em que ele entra num filme que parece uma comédia parva. Tenho um palpite que em Portugal vao traduzir para "Tres é demais".

    ResponderEliminar
  12. Vão-me permitir que "entre" de mansinho nesta agradável e viva discussão em torno de "Crash", mas tal como escrevi antes dos Óscares (que o meu amigo Daniel, de surpresa, publicou) não me parece que estejamos perante uma obra-prima, assim como não é certamente tão vulgar quanto isso.
    Provavelmente, o que está em causa nesta discussão, e nas vossas avaliações, é o facto de "Crash"ter sido o filme mais premiado, e isso, de certo modo obsta a uma análise distanciada. Igualmente, sendo um filme"politicamente incorrecto" pode incomodar pelo facto de ter sido tão premiado, adulterando assim a sua natureza marginal (será?).
    O facto de, na actualidade, o "politicamente correcto pelo politicamente incorrecto" ser um paradigma ético/estético que agrade tanto à Meca do Cinema, à sua crescente e"clooneyzada" ala liberal, não pode (pelo menos não deverá) beliscar o objecto artístico excelente que é "Crash". (aliás, essa corrente liberal permitiu que, pela primeira vez na história dos Óscares, 4 dos 5 filmes candidatos ao principal Óscar serem filmes de pequeno/médio budget de produção - apenas MUNICH - na minha opinião o melhor produto fílmico - tinha uma mega produção).

    O que me fez escrever sobre Crash (antes dos Óscares, relembro) foi o indício do seu crescente favoritismo, quando inclusive o filme estava fora de circuito. Esse favoritismo contrariava o aliciante, oportuno e não desejado (pelos seus criadores) mediatismo de Brokeback Mountain. Mas penso que Paul Haggis não tem nada que ver com isto. "Crash", de facto não é único, embora seja uma obra poderosa. É um filme de um realizador estreante, com uma estrutura narrativa e conceptual muito chegada às séries de televisão, fonte da qual Paul Haggis desenvolveu a transição para o Cinema. O que Paul Haggis conseguiu fazer de extraordinário foi uma obra eticamente orgânica. Ou seja, o igualitarismo social da narrativa (ninguém é melhor que ninguém) passa para a nossa percepção das personagens (ninguém é o que parece) e para a concepção cinematográfica ( o igualitarismo do casting, em que as estrelas afirmadas, como Sandra Bullock, fazem papéis reduzidos, dando lugar e brilho a actores em crescendo, como Terrence Howard ou Thandie Newton, ou regenerações de mitos em queda, como Matt Dillon. De resto, não me parece, com toda a sinceridade, que possamos fazer juízos de ordem moral, perante aquilo que achamos ou deixamos de achar como "previsível" ou "verosímil" ou a "aquilo em que acredito ou deixo de acreditar". Nem sequer fazer comparações abstractizantes e fúteis com filmes cuja estrutura narrativa (exposição e natureza das personagens) e adstringência moral são completamente díspares com este filme. "Hapiness" não é de modo algum um filme social, ou pelo menos social como este, a não ser que o estejam a confundir com o CRASH de Cronenberg. "Happiness" é um filme sobre fetichismos vários, mascarados de "pessoas normais". É sobre o desespero humano, transfigurado no, e pelo, grotesco quotidiano. Talvez por isso a sua ambiguidade moral, ou a ausência completa dela. Por isso, é um filme insuportavelmente atraente tal como o CRASH de Cronenberg. Mas o "Crash" de Haggis é, sem dúvida, um filme mais moral, ou moralista, se quiserem. E depois? Se eliminássemos da análise da história do cinema mundial os filmes morais ou moralistas, provavelmente ficaríamos com uma mão cheia... de nada.
    E este "Crash", moralista ou não, pode ser mais importante para o Cinema que cinematograficamente prodigioso (pelo menos para os "pseudo-intelectuais")
    Como o conceituado crítico Roger Ebert afirma, na sua crítica sobre esta obra, "Crash" é um filme sobre o progresso. Por mais que isso doa a muito boa gente.

    ResponderEliminar
  13. Eu quando digo que nao acredito no filme, nao estou a falar de verosimilhança. Eu adorei os Kill Bill, por exemplo. Mas é claro, estou a falar de mim e como a história resulta ou nao para mim. O "Crash" resultou fora do "Crash". Resultou quando comecei a juntar momentos.O filme resulta devido aos actores, 'as suas personagens complexas.

    As cenas da Sandra Bullock, por exemplo eu nao engoli, eu nao gostei, nao gostei em termos de dialogo, em termos de personagem, em termos de choradinho (contudo quando ela abraça a empregada nós sentimos por ela). Eu gostei da actuaçao do Matt Dillon mas na cena em que ele salva a Thandie, eu estava a por as maos na cabeca do estilo, santissimo sacramento isto é ridiculo. O mesmo quando o persa vai para matar o serralheiro. Quando a Thandie confronta o marido eu estava completamente apanhada na cena. Eu adoro aquela cena.

    Há colisao entre o eu gostar e desgostar. O meu gosto em cenas dramaticamente perfeitas, mas historias perfeitamente intragaveis. Isto sem moralismos, mas com muito de mim.

    ResponderEliminar
  14. Não acho, de todo, despropositada a comparação a Happiness. Não o considero um filme sobre fetichismos mas acima de tudo um comentário social tal como Crash o é, isto em termos abstractos, porque aprofundando a visão de cada um é fácil constatar que ambos têm preocupações (sociais) distintas. Não deixa, no entanto, de lidar com problemas sociais, tal como Crash lida, interligando dramas pessoais com o seu impacto na sociedade envolvente.
    Devo reforçar também que a minha 'avaliação' do filme foi feita muito antes de este ter ganho prémios. Vi-o em Dezembro, se bem me lembro, quando saiu no mercado em DVD. Ainda não tinham havido prémios alguns. E a minha opinião manteve-se, desde esse dia até aqui, até porque não são prémios que me fazem mudar de opinião, era o que faltava. Se se quiser falar de prémios falaremos de prémios (que Crash nem foi de forma alguma o filme mais premiado do ano.), mas quando me refiro ao Crash falo sobre o filme que, repito (para deixar a coisa clara :) ), foi visto muito antes das entregas de prémios, tendo tido na altura a ideia sobre ele que ainda mantenho, até porque ainda não o revi.
    Não o acho um filme politicamente incorrecto. Poderia sê-lo mas está construído de forma a não o ser, e, logo, não o considero um filme marginal. É marginal, talvez, no contexto dos oscares, porque num contexto global não o é de forma alguma. Quanto a mim é um filme feito a pensar em público, assumidamente 'pequeno', é óbvio, mas a pensar no público. É um filme 'gostável'.
    Isso não é necessariamente mau, é claro, mas quanto a mim prejudicou-o, pela razão que afirmei. Quando quero ver um filme que carregue em feridas quero ver um filme que carregue efectivamente nas feridas e as faça sangrar e não um que carregue na ferida levemente só para lembrar que ela está lá. É uma questão meramente pessoal, como, aliás, qualquer questão referente a qualquer filme.
    O problema do "moralismo" não é o moralismo por si próprio mas o tipo de moralismo que se impoe (ou sugere). Quanto a mim, da forma como vi o filme, o moralismo de Crash é um moralismo baratucho e superficial. Fala de tudo muito bem, é muito competente no texto e tudo mais mas não tem rasgos de génio ou grande inteligência. É demasiado brando, é um conceito, um conceito que por si só é bastante perspicaz mas que não chegou para me fazer gostar a valer do filme. E repito, eu não desgostei, apenas não gostei propriamente. Na altura devo ter dito qualquer coisa como "ah é mazomenos..." a quem me perguntasse a opinião. Até hoje ainda não tive vontade de o rever. Talvez um dia.
    É curioso o parágrafo que opõe o Crash ao cinema prodigioso, porque é exactamente isso que eu acho de Crash. Um filme prodigioso, um primeiro filme muito polido, bonitinho, bem escrito, sobre um tema forte, com óptimas representações, óptima montagem, óptimo tudo. Como um projecto final de um (bom) estudante de cinema, mas, claro, com muitos mais meios que o estudante de cinema seria.
    Para mim, que talvez seja um pseudo-intelectual (sinceramente importo-me pouco com isso), o cinema não é isto. Quer dizer, o cinema é ilimitado, simplesmente este não é o cinema que me interessa ver, e contra isto nada posso fazer.

    É bom de relembrar, sempre, que todas estas questões são relativas. Um filme - seja ele qual for - não existe por si só mas passa a existir apenas aquando do contacto com uma pessoa. Por isso é fácil de ver que o Crash que eu vi não é o mesmo Crash que o Luís viu, ou o Daniel. Pelo que aqui se escreveu parece-me que o Crash que vi assemelha-se mais ao que a Gabriela viu, mas mesmo assim, certamente, aprofundando as nossas visões, elas distanciar-se-iam em certos pontos com certeza. Basta mencionar a personagem de Sandra Bullock, que considerei ser das mais importantes, das mais bem pensadas, e da qual a Gabriela não gostou.
    E, de facto, essa cena com a Thandie e o Matt também me deixou embasbacado. E se bem que eu sou fervorosamente contra a obrigação de credibilidade nos filmes, essa é uma cena que retrata uma situação que me deixou realmente incrédulo, pôs em causa a credibilidade do resto do enredo até então. É fácil deixar de acreditar num filme quando ele faz conosco o que Crash faz nessa cena. É descabida e descarada, parece retirada de uma qualquer novela das nove, mas sim, funciona muito bem naquele contexto - que é o que me irrita - emocional e de redenção que o filme, no final, opta por tomar. E não a devo criticar, devo apenas dizer que comigo não funcionou. Não funcionou mesmo.
    E da mesma forma poderia referir cenas que funcionaram muito bem. E outras que também funcionaram mal, como em qualquer filme. No final o balanço não se revelou muito positivo. Vi-o e esqueci-o. Nem nunca o recomendei sequer a ninguém, nem antes nem depois dos oscares. Mas parece que fiz mal, porque o filme anda a fazer sucesso.

    ResponderEliminar
  15. Como diria Pier Pier Paolo Pasolini, o cinema é o "discorso libero indiretto". É a visão pessoal e livre do realizador perante a realidade que, no entanto, o condiciona.
    Neste sentido, gosto de acreditar que também, nós, espectadores, temos a capacidade de ver o nosso próprio filme, condicionados ou não pela visão do realizador e da realidade que retrata. Por isso, ainda bem que eu,o Daniel, a Gabriela e o José conseguimos "sentir 4 filmes. E isso...é cinema!

    Um abraço a todos.

    ResponderEliminar
  16. É verdade. E é por isso - e por outras coisas também, claro, que eu gosto dele (do cinema), pelas suas infinitas possibilidades. É sempre curioso e proveitoso até discutir estes pontos de vista, quando as pessoas sabem fazê-lo, claro.
    Abraço.

    ResponderEliminar
  17. A extrema e negra densidade do ser humano, num mundo cada vez mais complexo, onde as dificuldades de uns se interligam com as peculiaridades de outros. Este fim reproduz igualmente como a urbanidade condicona a convivência e molda a separação, onde afinal todos vivemos com medos interiores tão semelhantes mas no qual a ignorância é uma das causas/consequências dos nossos dias. É um filme poderoso.

    ResponderEliminar
  18. Não curti muito esse filme. Ele só apresenta os fatos não aprofunda em nada!

    ResponderEliminar
  19. não poderia estar em maior desacordo. o filme não tem grande mérito. isto porque está muito mal feito. o rick já apontou para a grande lacuna do filme: não aprofunda. não só aprofunda como não sabe fazê-lo ( este é o maior problema). os temas são muito mal articulados (o clássico truque dos filme comerciais e mediocres: elevar o volume da música de fundo, para - não sei - fazer chegar aos olhos lágrimas de plástico e em intervalos de tempo demasiado previsíveis e repetidos) e desenvolvidos (falta de conteúdo - as personagens são muito vazias, parece que se limitam a cuspir a alma de uns tipos sociais em vez de a fazer escorrer).
    perdoa-se a grande falta de cultura que o filme tem, também (não basta meter uns tipos de raças diferentes colados ao acaso) não compreendo é como obteve o óscar de melhor filme.

    ResponderEliminar
  20. O lmls nao deve ver os óscares. :-) A maior parte dos óscares para melhor filme sao uma piada. Eu só prestei atençao este ano por causa de ser uma ano extraordinário, no sentido de haverem tantos filmes de baixo orçamento e estar em prova o Brokeback Mountain.

    ResponderEliminar
  21. Acrescento algumas considerações em jeito de conclusão. Uma das qualidades de Crash é promover debate sobre questões de sociedade urbana, na dimensão muito americana em que o choque de culturas está particularmente dramatizado. Dito isto, trata-se de uma construção narrativa que assume contornos fabulatórios – as linhas de diálogo iniciais de Graham (Don Cheadle) mostram isso mesmo. Agora, ter contornos de fábula não me parece o mesmo que ser novelesco; as soluções narrativas de Crash podem não se inscrever num ultra-realismo (Paul Auster, por ex.) mas isso não significa que o filme seja despido de verosimilhança: é, antes, uma realidade interpretada. Parece-me que Crash se assume como um ensaio sobre pessoas muito diversas. O que importa é observá-las para lá do toque superficial da vivência urbana; descobri-las e ver as consequências que, ao fazê-lo, imprimem umas sobre as outras; e o filme vai fazendo isto com as várias personagens que lança na narrativa.
    Colocar sobre isto, e no registo particular em que Crash o faz, a urgência de um realismo absoluto nas suas soluções, parece-me igualmente um preconceito. Um ponto de partida subjectivo, exterior ao filme.
    O que descobrimos em Crash é que só parcialmente conhecemos aquelas pessoas, sobre as quais somos convidados a fazer juízos desde o primeiro momento. O caso do agente Ryan é um bom exemplo – mas não é o único. Vemos Ryan pela primeira vez e julgamo-lo – como a Gabriela fez – como um “racista nojento”. Ele próprio se assume como tal, sem orgulho mas auto-justificado nos seus ressentimentos pessoais. No contexto da sua vida, em que aqueles ressentimentos estão continuamente presentes e que ele carrega como uma cruz, ele actua de certas formas e essas acções têm consequências que o prejudicam a si e aos que lhe estão próximos. E no entanto, vamos descobrir que há algo mais para além da sua aparente bidimensionalidade. Em condições totalmente opostas, o mesmo homem se transcende num heroísmo sem reservas de carácter.
    O interessante neste ensaio narrativo não é o efeito de redenção. Não importa esse efeito (novelesco) de que afinal, um homem aparentemente mau também pode ser bom - isso é o menos relevante. O tema do filme é a compreensão das várias dimensões que existem numa mesma pessoa; e onde o contexto envolvente, particularmente aceso da realidade urbana, faz trazer algumas dessas dimensões e ocultar outras, porventura mais humanas.
    Em conclusão, parece-me que o filme ilustra uma máxima que gosto de repetir: a realidade é complexa. Ou, de outra forma, as pessoas são complexas e o parcialismo com que as tendemos a julgar nega essa complexidade.

    Finalmente, quando teço elogios a Crash, não o faço em termos comparativos a Happiness (que vi, já agora) ou outro filme qualquer, nem faço juízos de valor sobre os prémios que ganhou ou pretendo desmerecer os que os não ganharam. Falo, afinal, do filme pelo filme. Tenho (tive) a consciência dos riscos de escrever “bem” sobre um filme como Crash. Defender os méritos de uma obra cujo registo é assumidamente “mainstream” é pôr a cabeça no cepo, à disposição de ataques de certo tipo de intelectualismos. Gabriela, José, não estou a falar do que vocês escreveram. Em certa medida posso concordar com o que afirmam. Ser-me-ia também fácil demolir o filme. Mas penso, falando agora genericamente, que fazer um exercício de intelectualismo, aparentemente vanguardista, é procurar um lugar de pensamento confortável, seguro; é, contraditoriamente, um conservadorismo. É muito mais fácil defender as qualidades de Happiness. É um filme subversivo, em choque completo ao “mainstream”. É um filme que confronta o nosso juízo moral sobre personagens que o código social rejeitaria. Crash é um filme inscrito nesse código social. Nesse sentido talvez seja moralista, mas é um moralismo honesto, um moralismo de reflexão sobre as fronteiras desses códigos sociais. Não é um filme panfletarista, não tem uma “moral” linear para oferecer ao espectador. Abre, antes, o campo à reflexão. Inscreve-se, afinal, numa tradição clássica de Hollywood activista, liberal – no sentido americano do termo. Pode não interessar a todos mas não deixa de ser um documento pertinente sobre essa realidade contemporânea.

    ResponderEliminar
  22. Eu fui ver este filme, por recomendação de um amigo que tinha gostado, mas sem a expectativa de ver uma obra-prima. O filme tocou-me profundamente. Fez-me pensar que julgamos muito mais as pessoas do que deviamos. Para mim, esta foi a grande lição deste filme. Eu tenho alguma tendência a julgar as pessoas e a criar juízos precipitados. O momento em que o tal polícia salva a ex-abusada de dentro do carro comoveu-me até às lágrimas, ajudado pela belíssima banda-sonora. A cena em que o turco "mata" a filha do colocador de fechaduras deixou-me num estado emocional que é raro atingir no cinema. Achei o filme lindo, muitíssimo bem feito, com personagens (obviamente exageradas mas) credíveis e diálogos extraordinários. Também me fez lembrar o Magnolia, sobretudo pela estrutura narrativa e pela redenção final.
    Há algum tempo vi um filme aclamado pela crítica, cheio de referências a Douglas Sirk, e Fassbinder, chamado Odete - um filme português. Eu, que sou um grande fan do cinema português (achei por exemplo excelente o Coisa Ruim) encolhi-me diversas vezes na cadeira constrangido com a inverosimilhança daquela história e daquelas personagens. Achei que o filme valia uma bola preta porque não se pode dar menos. No entanto os criticos que li nos jornais (Expresso por exemplo) davam-lhe 4 e 5 estrelas.
    Definitivamente, em cinema, não me interessam as referências dos críticos.
    Quanto ao Crash, considero-o uma obra-prima. Provavelmente um dos 10 melhores filmes de toda a vida.
    São opiniões...
    ZM

    ResponderEliminar
  23. zm, concordo inteiramente consigo em relação ao "Crash", tinha escrito um comentário sobre o filme para o colocar aqui mas depois desisti quando comecei a ver a "discussão" que se instalou. Achei que não me iam entender pois foi tão pessoal e intenso o que senti quando vi o filme, que me pareceu completamente disparatado o que se estava a pôr em causa. Em relação ao "Coisa Ruim" ainda não o vi mas estou com muita vontade de o ir ver, obrigado pela dica.

    ResponderEliminar