[férias]

Sábado



Ali estava eu sentado junto à parede do terraço a ver os telhados da cidade. Évora é mais bonita vista da parte de cima. Na minha cabeça revia a semana que passou: mil e uma cruzinhas na minha lista de coisas para fazer. Obras em casa: em curso. Mosaicos da casa de banho: sim. Janelas: sim. Carpinteiro: em stand-by. Portas e puxadores: escolhidos. A infiltração do andar de baixo: controlada. Pladures: hão-de vir. Pinturas: depois. Canalizador: sim. Sim. SIM!!!
Uf...

Suspirei.
Olhei em frente e a cidade ainda lá estava. Vi então que em redor voavam dezenas de andorinhas umas em torno das outras. Rodopiavam, circulavam, subiam e desciam ao sabor do vento. Depois reparei que batem as asas muito depressa várias vezes para, em pequenos intervalos, deixar-se planar simplesmente.
Deve ser interessante a vida de uma andorinha. E no entanto, à sua maneira, uma vida dura também. Como deve ser uma aventura inesquecível viajar dos confins de África para chegarem aqui, ao meu terraço de Évora. Gostava de as poder receber melhor, ou o melhor talvez seja afinal partilhar aquele fim de tarde com elas sentado a observar.

E ali estavam elas, e ali estava eu, quando percebi como tudo isto é passageiro. A vida não acaba aqui. Para mim como para estas andorinhas hão-de haver muitas mais viagens para fazer.

Partimos amanhã...

[umas férias em forma de road movie]

Sexta-feira

Vou de férias. Gostava de levar o blog no bolso mas é capaz de ser difícil. Continuarei a escrever sempre que possível. Isto, afinal, não é trabalho. É prazer.
Se conseguir, hei-de trazer fotografias. Não esperem nada exótico. Nem que ande à procura de arquitectura. Com sorte, talvez traga um pouco de aventura... Alguma areia nos pés e muitos livros acabados de ler. Seja como for, preciso de recarregar as baterias com energia positiva. Este blog tem andado um bocado zangadito com a vida. Está na altura de recomeçar.
I’ll be back!

[do I look any different]

Sexta-feira



Mas, afinal, quando é que isto estreia?...

[as gajas]

Quinta-feira



Tudo bem, eu admito! Eu não consigo compreender O Sexo E A Cidade (Sex And The City). Não percebo se é um character study ou um Melrose Place para as leitoras da Cosmopolitan. Acho assustador que muitas mulheres se identifiquem com estes protótipos pós-modernos super-atraentes e muito dois em um, que se encontram constantemente para um get-together na esplanada bebendo coffee com muito gossip à mistura.

A maioria das séries de televisão padecem do síndrome Beverly Hills 90210. Apresentam uma visão do mundo insuportavelmente sanitizada, o mundo em versão clean, personagens muito lindas sem rugas nem sinais, os carros acabados de sair da lavagem. Naquele planeta das séries de televisão não existe o transeunte mal-cheiroso do supermercado nem a porcaria de cão no passeio. Eis um mundo inteiro acabado de sair do cabeleireiro e a cheirar a água de colónia. Alguém gostava que a vida fosse mesmo assim?

O mau n’O Sexo E A Cidade é haver mulheres que se revêem naquelas figurinhas de porcelana com as suas carreiras fabulosas e roupas de marca a viver o caleidoscópio do ver e ser visto da executive class nova-iorquina. Será que as mulheres revêm neste purgatório neurótico que faz os dias de Carrie-Samantha-Charlotte-Miranda alguma coisa que tenha remotamente a ver com as suas vidas. Que ideais perseguem estas mulheres? Que formas de amar são estas sempre subjugadas à ordem social e ao status-quo? Será que a vida se resume àqueles probleminhas, os dilemas existenciais das amigas e a queca semanal de Samantha? Haverá mais profundidade nos monólogos de Carrie do que nos voice-off do Macgyver?

E depois, claro, há os gajos? Ah, os gajos d’O Sexo E A Cidade, esses palermas! O Mr. Big e a colecção de cromos estereotipados de homem que por ali passam: o advogado, o arquitecto, o magnata da comunicação social, o actor, o cirurgião. N’O Sexo E A Cidade a profissão dos homens não é um aspecto secundário da sua personalidade, de facto, é toda a sua essência.
O mais extraordinário no modo de estar na vida destas mulheres é, para além do egocentrismo com que encaram a sua satisfação e objectivos pessoais, o modo como formam as suas relações com os homens como um contrato cheio de obrigações a cumprir, descartando-os quando ficam aquém das expectativas - o que acontece quase sempre. As mulheres dirão: ah, mas os homens fazem exactamente o mesmo! E o pior é que estão mesmo convencidas disso. Mas a série, que pretende ser um retrato contemporâneo da mulher liberada que vive os seus desejos (sexuais) sem inibições nem sentimentos de culpa, nunca faz o salto para dentro das suas psicologias femininas para encontrar os reais motivos das suas insatisfações. Enfim, nunca mergulha nas sombras de realidade que estão por detrás daquela Nova Iorque fashionable e multi-colorida. Nunca passa para o outro lado do espelho da lente televisiva e da síndrome Beverly Hills 90210 de que padece profundamente.

[michael moore, artist and patriot]

Quinta-feira

Michael Moore, Artist and Patriot
John Berger

Fahrenheit 9/11 is astounding. Not so much as a film – although it is a cunning and moving film – but as an event. Many commentators try to dismiss the event and disparage the film. We will see why later.

Michael Moore’s film profoundly moved the artists on the Cannes Film Festival jury and it seems that they voted unanimously to award it the Palme d’Or. Since then it has touched many millions of people. During the first six weeks of its showing in the United States, the box office takings amounted to over $100 million; this sum is, astoundingly, about half of what Harry Potter and the Sorcerer’s Stone made during a comparable period.

People have never seen another film like Fahrenheit 9/11. Only the so-called opinion-makers in the press and media appear to have been put out by it.

The film, considered as a political act, may be a historical landmark. Yet to have a sense of this, a certain perspective for the future is required. Living only close-up to the latest news, as most opinion-makers do, reduces one’s perspectives: everything is a hassle, no more. The film by contrast believes it may be making a very small contribution towards the changing of world history. It is a work inspired by hope.

What makes it an event is the fact that it is an effective and independent intervention into immediate world politics. Today it is rare for an artist (Moore is one) to succeed in making such an intervention, and in interrupting the prepared, prevaricating statements of politicians. Its immediate aim is to make it less likely that President Bush will be re-elected in November. From start to finish it invites a political and social argument.

Maverick movie, political event

To denigrate this as propaganda is either naive or perverse, forgetting (deliberately?) what the last century taught us. Propaganda requires a permanent network of communication so that it can systematically stifle reflection with emotive or utopian slogans. Its pace is usually fast. Propaganda invariably serves the long-term interests of some elite.

This single maverick movie is often reflectively slow and is not afraid of silence. It appeals to people to think for themselves and make thought-out connections. And it identifies with, and pleads for, those who are normally unlistened to.

Making a strong case is not the same thing as saturating with propaganda. Fox TV does the latter, Michael Moore the former.

Ever since the Greek tragedies artists have, from time to time, asked themselves how they might influence ongoing political events. A tricky question because two very different types of power are involved. Many theories of aesthetics and ethics revolve round this question. For those living under political tyrannies art has frequently been a form of hidden resistance, and tyrants habitually look for ways to control art.

All this, however, is in general terms and over a large terrain. Fahrenheit 9/11 is something different. It has succeeded in intervening in a political programme on the programme’s own ground.

For this to happen a convergence of factors were needed. The Cannes award and the misjudged attempt to prevent the film being distributed played a significant part in creating the event.

To point this out in no way implies that the film as such doesn’t deserve the attention it is receiving. It’s simply to remind ourselves that within the realm of the mass-media a breakthrough (a smashing down of the daily wall of lies and half-truths) is bound to be rare. And it is this rarity which has made the film exemplary. It is setting an example to millions – as if they’d been waiting for it.

A People’s Tribune

The film proposes that, in the first year of the millennium, the White House and the Pentagon were taken over by a gang of thugs – plus their Born Again Frontman – so that United States power should henceforth serve, as a priority, the global interests of the Corporations. A stark scenario which is closer to the truth than most nuanced editorials.

Yet more important than the scenario is the way the movie speaks out. It demonstrates that a single independent voice – pointing out certain home truths which countless Americans are already discovering for themselves – can withstand all the manipulative power of communications experts, lying presidential speeches and vapid press conferences, and break through the conspiracy of silence, the manufactured atmosphere of fear and the solitude of feeling politically impotent.

It’s a movie that speaks of obstinate faraway desires in a period of disillusion. A movie that tells jokes whilst the band plays the Apocalypse. A movie in which millions of Americans recognise themselves and the precise ways in which they are being cheated. A movie about surprises, mostly bad but some good, being discussed together. Fahrenheit 9/11 reminds the spectator that when courage is shared one can fight against the odds.

In over a thousand cinemas across the country Michael Moore becomes with this film a People’s Tribune. And what do we see? Bush is visibly a political cretin, as ignorant of the world as he is indifferent to it. Whilst the Tribune, informed by popular experience, acquires political credibility, not as a politician himself, but as the voice of the anger of a multitude and its will to resist.

There is something else which is astounding. The aim of Fahrenheit 9/11 is to stop Bush fixing the next election as he fixed the last. Its focus is on the totally unjustified war in Iraq. Yet its conclusion is larger than either of these issues. It declares that a political economy which creates colossally increasing wealth surrounded by disastrously increasing poverty, needs – in order to survive – a continual war with some invented foreign enemy to maintain its own internal order and security. It requires ceaseless war.

Thus – fifteen years after the fall of Communism, decades after the declared End of History, one of the main theses of Marx’s interpretation of history, again becomes a debating point and a possible explanation of the catastrophes being lived.

It is always the poor who make the most sacrifices, Fahrenheit 9/11 announces quietly during its last minutes. For how much longer?

There is no future for any civilisation anywhere in the world today that ignores this question. And this is why the film was made and became what it became. It’s a film that deeply wants America to survive.


[John Berger: Michael Moore, Artist and Patriot, via Open Democracy]

[o sapo na panela]

Quarta-feira



Dizem que se se colocar um sapo dentro de uma panela de água a ferver ele salta de imediato para fugir ao perigo.
Mas se se colocar o sapo na panela com água fresca e confortável e, gradualmente, se aquecer a água até ao ponto de fervura, o sapo não reconhece o perigo até ser demasiado tarde.

O instinto de sobrevivência do sapo está preparado para detectar mudanças súbitas. É assim um pouco como o instinto de Jorge Sampaio. Há alguns anos atrás estas notícias de violação do segredo de justiça no seio dos principais orgãos judiciais fariam qualquer presidente saltar de pânico. Mas cozidinho no lume brando, escândalo atrás de escândalo, já ninguém dá por nada mesmo quando a tampa começa aos saltos. E o pior é que quem está no interior da panela somos todos nós. Não acham que está a começar a ficar quente aqui dentro?!

[fale para a minha maminha esquerda]

Quarta-feira



De todos os casos de atropelo das regras mais básicas do jornalismo em que o processo da “Pedofilia na Casa Pia” foi fértil, a divulgação de trechos das famosas escutas telefónicas efectuadas a Ferro Rodrigues foi, facilmente, o mais vergonhoso. Foi um caso flagrante e despudorado de violação dos direitos mais básicos de um cidadão de que há memória em Portugal. É um exemplo paradigmático em que, independentemente das escutas serem ou não legítimas, não só o público não tinha o “direito de saber”, como o cidadão escutado tinha “o direito de que não se soubesse” – neste caso o teor de escutas que, para além de consistirem em conversas privadas, deveriam ser destruídas caso não viessem a sustentar qualquer acusação ou indício de crime.
Mais escandalosa se tornou a sua revelação na altura por ser cometida não por um qualquer jornal sensacionalista mas pelo semanário Expresso que se arroga o título de verdadeira instituição do jornalismo nacional.

Neste país em que vale tudo, a recente história das cassetes “alegadamente roubadas” ao jornalista do Correio da Manhã veio tornar ainda mais transparentes as debilidades do nosso “estado de direito”. Aqui o escândalo não é de todo a existência das gravações sem consentimento das fontes nem a sua divulgação. Quem ainda se surpreender com as coisas que aparecem nos jornais não deve ter estado em Portugal no último ano. O escândalo deve-se à leviandade com que pessoas que ocupam cargos de elevada responsabilidade no sistema judicial partilham com um qualquer jornalista factos de uma investigação que se encontrava, há data, em segredo de justiça. Uma promiscuidade que se agrava quando algumas dessas figuras se manifestaram tão críticas às episódicas fugas de informação para a praça pública cujo intento acusavam ser a perturbação do processo em curso.

A demissão (óbvia) de Adelino Salvado por entre alegações de que era ele agora a vítima de cabala e a minimização dos excessos que admitiu poder ter cometido naquilo que considerou serem simples “conversas entre amigos” ainda torna mais sórdido o episódio. Pior do que não se ser sério é ser-se meio-sério. Ao ex-director da Polícia Judiciária só lhe restava, em nome do mínimo de dignidade pessoal e profissional que evidentemente não possui, demitir-se sem mais comentários como de resto fez e bem a assessora de imprensa da Procuradoria Geral da República, Sara Pina.

Mas se as responsabilidades criminais de todo este episódio poderão ser difíceis de apurar, já as responsabilidades políticas devem ser cobradas em toda a sua extensão. E é, por isto, inacreditável que Sampaio dê cobertura a este procurador-geral e venha novamente com as habituais declarações mofadas de que “tudo deverá ser investigado até às últimas consequências”, que como se sabe costumam ser nenhumas.
Que país é este em que, comprovadamente, o director da PJ e a porta-voz da PGR conhecem factos de uma investigação em curso que não deviam conhecer e os partilham com jornalistas, nas barbas de um procurador que aponta as falácias do mau jornalismo e tem pessoas a violar o segredo de justiça mesmo debaixo do seu nariz, na casa de que é o principal responsável. E que país é este quando, perante isto, os mais altos interventores da nação se recusam a exercer os poderes de que são titulares e que existem exactamente para repor a integridade das instituições neste tipo de situação.

É curiosa a rapidez com que aquilo que seria em tempos inacreditável se torna perfeitamente óbvio. E o pântano, como sempre, alastra-se...

[eu não vou aos jogos olímpicos]

Sexta-feira



A esterilização de animais de rua é uma prática aceite por muitas das organizações de defesa dos animais (de todo o mundo). Essa aceitação é resultado de experiência e pragmatismo, como forma de reduzir o número crescente de crias abandonadas que resultam da não adopção desta política. Para além de que a existência de um elevado número de animais abandonados se pode tornar um problema de saúde pública é acima de tudo, para o próprio animal, a sujeição a uma vida de negligência, crueldade e sofrimento no ambiente hostil do nosso mundo construído.
Apesar deste facto, a esterilização não é uma prática comum nos animais de companhia, por ser tida por muitas pessoas como uma intervenção negativa à “natureza” dos animais. No entanto, grande parte dos donos recusam-se a assumir a responsabilidade perante as crias indesejadas dos seus animais, que são muitas vezes abandonadas ou mortas.

Na Grécia esta atitude parece ter-se tornado de tal modo usual que o envenenamento dos animais abandonados se tornou prática comum e um “facto da vida”. O veneno utilizado pode variar de veneno para ratos até pesticidas, condenando-os a uma experiência de sofrimento agonizante num longo percurso até à morte.
A realização dos Jogos Olímpicos de Atenas e o desejo de esconder este problema conduziu o governo grego e a administração local à necessidade de “erradicar” os milhares de animais abandonados da cidade. Segundo a ASPCA (American Society for the Prevention of Cruelty to Animals) estima-se que 80% dos cães de rua terão sido sujeitos a envenenamento nas últimas semanas. Este facto levou a ASPCA a condenar os “métodos arcaicos e desumanos de controle populacional alegadamente sendo implantados na cidade de Atenas, completamente inaceitáveis no ano 2004”, e a declarar o seu desapontamento com o governo grego pela sua insensibilidade a este problema.
É lamentável que um evento que supostamente simboliza os valores mais avançados da sociedade contemporânea, a igualdade, tolerância e respeito entre os povos, seja manchada pela ignorância e miséria cultural de forma tão cruel e repugnante.

Termino este tema tão triste com uma passagem de um email que recebi recentemente, em cujas palavras me revejo inteiramente:

Também eu acho que quem não trata bem um animal, um dia distratará um homem. É falta de sensibilidade para o sofrimento alheio, que geralmente, subdivido em três minorias sociais de risco:
- as crianças
- os idosos
- os animais.
Por esta ordem decrescente de importância que lhes é conferida pela sociedade e por cada indivíduo em particular. O problema é que Deus arquitectou um planeta à medida de todos, mas deste nós construímos um mundo demasiado perigoso para aqueles que não têm voz nele viverem.

[Maria Varela, jornalista e escritora]

Mundo triste este dos homens que teimam em não aprender que a vida, nas suas diversas formas, é uma dádiva e um bem precioso que deve ser protegido, e não destruído.

Referências:

[Indymedia: WAG Film Expose - Greek Animals And The Olympics]
[Planet Veggie: Give The Strays In Greece A Sporting Chance]
[Greek Animal Rescue: News Articles]
[OLYMPICS 2004: Anti-poison Campaign continues in Greece]

[gestão de lemmings]

Quinta-feira



O problema com esta máquina a que chamamos de Portugal é que é pouco inteligente. Não foi feita para pensar. É uma doença que começa na escola e avança até aos mais altos cargos da máquina do estado. Conta até três: um dois três. Agora pensa: ãan... Agora conta até três ao contrário: três dois um. Parabéns!
O sistema tem por objectivo tornar os indivíduos em zombies seguidistas formatando-os aos procedimentos e então “dura lex, sed lex”, mesmo que a lei seja estúpida também não faz mal porque é para cumprir.

A falta de reflexão e lucidez (ou de uma educação para o espírito crítico) é um dos principais entraves a uma cultura de planeamento em Portugal. O “planeamento”, na cabeça dos portugueses, parece ser aliás uma espécie de gestão de lemmings. Do alto da montanha o líder começa sempre por criar modelos doutrinariamente perfeitos decorados dos mais inatacáveis princípios (a que se chamam objectivos) e o público-alvo seguirá certamente as orientações entretanto apontadas. Na sociedade portuguesa a falta de objectividade das políticas é de tal ordem que os discursos já só vivem de chavões: a política está reduzida ao slogan. O mais grave é quando o fenómeno entra pelos programas do governo adentro a ponto da sua leitura se tornar digna do Seinfeld. Vejamos então com que nos brinda o mais recente programa da nação na área do Ambiente e Ordenamento do Território.

Começamos pelo polvilhado habitual: sustentabilidade, transversalidade, integração, equidade e participação. Na primeira frase já ascendemos ao olimpo civilizacional. Depois entramos no desenvolvimento propriamente dito: promoção, reordenação, valorização, dinamização, desenvolvimento, conservação e por aí fora. Vejamos este exemplo a respeito da desertificação das áreas rurais: dinamização e criação de pólos de desenvolvimento local e regional, privilegiando as áreas do interior mais desfavorecidas, de modo a impedir e a inverter as tendências para a desertificação e empobrecimento e a sazonalidade recorrente nessas áreas. É tudo assim, grandes objectivos maravilhosos mas nenhuma proposta concreta, nenhuma medida minimamente visível e monitorizável. Dinamização e criação de pólos de desenvolvimento local e regional? Sim senhor, e como? Que pólos são esses? Em que sectores económicos assentam? Com que parcerias? Com que meios? Com que resultados propostos e que previsões temporais? São perguntas que se podem fazer em quase todos os pontos deste nebuloso programa.
Voltemos ao princípio.

O que é planear?

Planear é desenvolver uma estratégia com vista a alcançar um determinado objectivo num determinado prazo de tempo.
Para falarmos de planeamento temos que ter, por um lado, objectivos concretos que queremos atingir, e por outro uma meta de tempo em que queremos atingi-los. O planeamento deve depois assentar numa estratégia, uma organização de trabalho, contemplando as acções que teremos de realizar para chegarmos aos resultados desejados no fim do percurso.
Mas o trabalho de realizar essas acções é um caminho que por vezes depende de factores externos ao próprio plano. Nesses casos, é necessário contemplar a possibilidade de que esses factores se comportem de maneira diversa. Por isto, temos de monitorizar o percurso do nosso plano, assinalando pontos intermédios em que vamos observar se estamos a caminhar bem em direcção aos resultados (se estamos adiantados ou atrasados em relação aos objectivos). No último caso podemos mesmo ter de introduzir novas acções a essa estratégia, adaptando-a às necessidades entretanto observadas.

Em Portugal, infelizmente, os planos não são programas de trabalho inteligentes mas meras doutrinas (que de ideológicas, de resto, também já têm muito pouco). No planeamento urbanístico por exemplo, que é uma área que me interessa, os planos tornaram-se meros instrumentos formais com valor legal (para aplicar), e já pouco têm de objectos de trabalho e reflexão sobre os problemas de uma determinada região. Essa reflexão genuína é de resto uma ausência que faz parte do modo de ser português. Passámos do tempo da “imaginação ao poder” ao da “falta de inteligência ao poder”.

O problema de tudo isto é que as pessoas, ao contrário dos lemmings, são casmurras que nem um boi e nunca fazem aquilo que a gente quer. É um pouco como a diferença entre conduzir um jipe e andar a cavalo. Se quisermos passar um riacho por cima de uns toros de madeira podemos manobrar agilmente o volante e colocar a roda da viatura bem alinhada com os toros e conduzi-la até ao outro lado. Mas o cavalo, que lamentavelmente ainda não vem equipado com volante, tem que acreditar que consegue lá chegar. E podem crer que se ele achar que não consegue mais depressa vos atira lá para baixo do que acata as vossas ordens.

Referências:

[Programa do XVI Governo Constitucional]

[blog guru]

Quarta-feira

A ler o meu texto anterior cheguei à conclusão que cada vez mais as minhas redacções se parecem com as coisas que a Laurinda Alves escreve na Xis. Bem, garanto que não estou a tentar começar uma seita nem a querer vender nada a ninguém. A verdade é que, por vezes, quase preferia que vocês não andassem por aqui a ler isto...

[o direito à felicidade]

Terça-feira



Quando oiço alguém reclamar pelo direito à felicidade recordo-me do meu antigo avô paterno. Aos oito anos de idade levantava-se bem cedo na madrugada e ia passear as cabras pelos montes daquelas berças perdidas para lá de Castelo Branco. Percorria as veredas descalço mesmo quando chovia e no bolso talvez levasse um pedaço de pão e uma cebola, os dias passando e com eles uma infância que nunca chegou a ser.
Naquela época as mulheres e os homens não reclamavam pelo direito à felicidade. Ali, nos dias gelados do Inverno, as pessoas já se davam por satisfeitas se não sofressem as agruras da fome.

Menos de cem anos passados sobre aquele tempo e tornámo-nos num povo com outras expectativas. Todos reclamamos direitos, andamos todos à procura de alguma coisa. Está triste: veja uma comédia. Está aborrecido: passeie no shopping. Está estagnado: compre um carro maior. É pobre: recorra ao crédito. É infeliz: foque-se em felicidade e alegria, seja budista ou fale com os anjos... e pelo caminho, passeie no shopping e recorra ao crédito.

O problema da felicidade é que é uma coisa difícil de definir. Ao contrário da qualidade de vida, que é quantificável, a felicidade tem mais que ver com o modo como individualmente nos relacionamos connosco próprios e com o mundo. Por isso encontramos pessoas cheias de tudo e perfeitamente vazias de espírito, miseráveis à procura de andar à procura. E outras vezes damos de caras com alguém que passou a vida a passear cabras pelas veredas de um monte e por aqueles caminhos encontrou a felicidade.

Uma coisa que me aborrece é a sedução sazonal que a nossa sociedade ocidental tem pelo budismo ou outras formas de “espiritualidade”. De tempos a tempos todos se descobrem budistas (light), lêem livros, inscrevem-se no ioga, fazem meditação. Ora quem já tenha contactado com o mundo de onde é originária aquela doutrina compreenderá facilmente que o budismo é incompatível com o emprego das nove às cinco, com a experiência do transporte pendular dos subúrbios, com a poluição (sonora, ambiental, visual) das nossas cidades, com a fast-food e acima de tudo, com o nosso entendimento de satisfação pessoal.
É que lá nos sopés do Anapurna, onde o silêncio é total e o vento nos enche a cara, todos nos tornamos budistas sem esforço. Todos compreendemos que naquele vazio só o presente faz sentido. Ali, onde nada mais se deseja e nada se ambiciona, nada se sofre.
Ao contrário disto nós os ocidentais não suportamos o tédio. A rotina é o inimigo a abater, todos queremos fazer coisas novas, conhecer outras pessoas, comprar mais sapatos ou ir à praia. Mas na praia não nos basta a sensação da areia nos pés e o balançar do mar. Tudo nos aborrece se não jogarmos soft-ball ou comprarmos um gelado, beber um drink na esplanada e depois mergulhar à bruta. A felicidade está ali, presa de pára-quedas empurrado num barco a motor, a emoção, a aventura, o entretenimento. O destino é sempre algo que temos que fazer, que comprar ou que ser. O destino nunca é este momento, aqui mesmo, agora.

Eu não sei o que é a felicidade. Penso que será um equilíbrio que resulta da aceitação da impermanência das coisas. Os budistas encontraram conforto na aceitação do ciclo do renascimento, que tudo é assim para voltar a ser assim e que nada voltará a ser o mesmo. Mas nós temos outro caminho a percorrer, é aqui na voragem absurda das luzes e dos outdoors que temos de encontrar o sentido de tudo isto, no ruído do trânsito e nos pequenos silêncios que vamos descobrindo. É aqui que temos de encontrar a nossa vereda dos montes e buscar lá longe uma clareza no olhar. Algures num lugar profundo, dentro de nós próprios.

[dez mil]

Segunda-feira


O país celebra as 10.000 visitas do blog A Barriga De Um Arquitecto.

Dez mil visitantes e mais de dezasseis mil visualizações de página são o saldo de oito meses de blogging n’A Barriga De Um Arquitecto. A todos os que por aqui têm passado deixo o meu muito obrigado!

[democratizar o design]

Quinta-feira



Uma banheira por oito mil euros. Uma cozinha por cinquenta mil. Tudo é possível no mundo do design de primeira qualidade.

Certa vez andava à procura de peças para casa de banho e a vendedora começa a apresentar-me um pequeno armário de apoio, para aí com 65 centímetros de altura e 40 de largo. Era claramente o Rolls-Royce dos armários de casa de banho, porta em vidro fôsco numa moldura em aço escovado encastrada numa peça de laminado de madeira de altíssima densidade, inalterável, impermeável e provavelmente sujeito a testes de impacto pela Nasa. Tudo, pela módica quantia de dois mil euros. E eu olhei para aquilo e pensei para mim: “caraças, mas isto é um armariozeco de casa de banho”. Claro que a peça era de uma limpeza irrepreensível, o design limpo e minimal, os materiais o melhor que o dinheiro pode comprar. Mas quatrocentos contos por um armário minusculo?

Felizmente, na área da decoração e do consumo em geral o aparecimento das grandes superfícies veio tornar acessível aquilo que em tempos se destinava apenas a alguns. Claro que há concessões a fazer: o design mais orientado para a produção em série, as madeiras e os laminados mais fracos, os aços de menor qualidade quando não mesmo substituídos por latão e alumínios, mas por outro lado são peças a preço apropriado ao seu tempo de vida. Sim, eu não quero um armário de casa de banho que dure até aos meus oitenta anos e passe para os meus netos. Eu só querro arrumar a pasta de dentes.

Nota adicional: CUIDADO, os blogs podem conter publicidade encapotada!

[smile project]

Quinta-feira

Referência para o site do projecto SMILE – Sustainable Mobility Initiatives for Local Environment, um excelente índice de projectos e iniciativas consideradas como boas práticas de promoção de transportes sustentáveis, mais eficientes (económica e ecologicamente), com vista a melhorar a interacção entre as diversas formas de mobilidade urbana: transportes públicos, pedonais, ciclistas, automóveis. Uma página que dá a conhecer o que de melhor se tem feito na Europa e ajuda a melhorar a percepção dos cidadãos relativamente aos efeitos da sua escolha de transporte na qualidade do ambiente urbano.

Nota: através do índice, ir a "Local Experiences" seguido de "Local Experiences Database", para aceder ao motor de busca de projectos.


SMILE - Sustainable Mobility Initiatives for Local Environment.

[too much coffee man]

Quinta-feira


Too Much Coffee Man, clique na imagem para aceder ao site.

[who’s your daddy]

Segunda-feira


Fahrenheit 9/11: a América segundo Michael Moore.

Por detrás do ecrã negro que acompanha os sons do 11 de Setembro apresentados no início de Fahrenheit 9/11 está o trauma de um país que acordou para uma dura realidade e se contaminou pelo medo e a incerteza. O documentário de Michael Moore nasce dos ecos desse trauma e é, quer se queira quer não, um documento fundamental para conhecer uma certa visão da América que tenta compreender o seu papel no mundo e as suas próprias contradições internas.

Fahrenheit 9/11 é um filme sobre George Bush e o seu aparelho de poder. O discurso do filme é profundamente activista e manipulador, juntando depoimentos, co-relações e associações de factos com vista a construir a visão subjectiva e interpretativa de Moore a respeito da América. O filme transcende assim o simples papel documental para se assumir como uma clara afirmação política. É no entanto o carácter subjectivo do filme que lhe confere a sua maior força. De certo modo, o que Moore faz não é muito diferente daquilo que acontece um pouco no domínio de opinião de muitos outros media (incluindo a Blogosfera), as diferenças nascem principalmente pela manipulação dos códigos televisivos, pervertendo-os enquanto “registos da verdade” que não necessitam de reflexão do espectador. Esta questão central levantada por João Lopes é uma chave para compreender o alcance deste filme. Fahrenheit 9/11 é um filme com um ponto de vista, mas significará isto que se trata de um filme perigoso? A resposta é simples: tão perigoso como assistir a qualquer outro media sem sentido crítico, sem tentar compreender o que está por detrás das imagens ou dos “factos” que estamos a ver.

Se o filme de Michael Moore se resumisse à teoria da conspiração que por vezes sustenta relativamente à legitimidade presidencial de Bush ou às suas relações mais ou menos próximas com a família Bin Laden (por via de ligações a poderosos grupos económicos), os ataques “ponto a ponto” de que o seu filme tem sido alvo ganhariam a maior relevância. É certo que em alguns casos a tese de Moore assenta numa espécie de demonstração de que “onde há fumo há fogo”, o que não sendo totalmente consequente não deve por isso deixar de ser motivo de reflexão. No entanto, a verdade é que a maioria das asserções do filme fazem parte do domínio publico e não constituem, por si só, uma novidade. Para lá disto, o inquestionável alcance do filme deve-se à demonstração clara de duas questões fundamentais: em primeiro lugar a promiscuidade entre fortes grupos económicos e a a orientação política (militarista) da actual presidência americana; em segundo lugar a forma despudorada como se conduziu um país (e o mundo) para uma guerra que prossegue um conjunto de fins explicitamente económicos e é mantida por todos os meios necessários e para lá de toda e qualquer sustentabilidade.

É no fundo esse retrato da América que é o principal ponto de interesse de Fahrenheit 9/11 e o essencial da sua mensagem, tornando-o num documento pejado de motivos de reflexão. Se o filme divaga aqui e ali em pontos menos consequentes, não pode deixar de inquietar pela crueza de alguns dados que fornece: a percepção americana em relação à sua segurança interna, as tácticas de recrutamento militar, a imaturidade e inconsciência de alguns soldados relativamente aos objectivos da sua missão, a exploração assumida da guerra como fonte de enorme potencial económico e, principalmente, a ausência de substância dos principais intervenientes políticos, com particular focagem sobre o presidente Bush, incapaz de exprimir a dimensão dos sacrifícios que tem exigido à América em nome da “guerra ao terror”.
Não deixa de ser curioso que este filme sirva para explicar (involuntariamente) a questão dos abusos ocorridos na prisão de Abu Ghraib: numa das sequências apresentadas, soldados americanos parodiam prisioneiros iraquianos encapuçados em humilhações que parecem preceder aquilo que viria a ocorrer na referida prisão. Aquilo que inicialmente nos fez questionar de “como foi possível” parece afinal uma inevitabilidade resultante do contexto sociológico em que tudo aquilo acontece. Uma contradição que acaba por resultar na paradoxal inquietação manifestada por alguns soldados em relação ao ódio anti-americano dos civis iraquianos.

O filme de Michael Moore resume-se, afinal, a uma exposição de como fortes grupos económicos com enorme influência política têm determinado as principais decisões da nação, indiferentes aos efeitos que estas decisões têm sobre a sua população e o mundo em geral. Por este motivo, a ironia contida no filme é incapaz de esconder uma crua realidade: que este documentário não é uma comédia mas um filme de terror.


George Bush: "What an impressive crowd: the haves, and the have-mores. Some people call you the elite, I call you my base."

Referências:

[Fahrenheit 9/11, site oficial]
[Michael Moore, site oficial]
[Pedro Ribeiro: Factos & Sugestões, Jornal Público, Suplemento Y]
[Roger Ebert '9/11': Just the facts?]
[Roger Ebert, Chicago Sun-Times]
[Unfairenheit 9/11: The lies of Michael Moore by Christopher Hitchens]
[Fifty-nine Deceits in Fahrenheit 9/11 by Dave Kopel]
[More Distortions From Michael Moore]
[MooreWatch]
[Moore Lies]
[Bowling For Truth]

Mais:

[A Barriga De Um Arquitecto: Máquinas De Inquietação, 2004-01-30]