Anti-paisagem


Eu preocupo-me com o urbanismo. Bom, eu preocupo-me com tudo, mas principalmente com o urbanismo e o papel que nele tem a arquitectura.
Olhando para o pobre produto da nossa acção urbana, para os subúrbios massificados e anónimos que continuamos a construir, para a desatenção com que se olham os problemas da mobilidade (transportes, energia, saúde), o desperdício, a negligência e a falta de conteúdo com que se produz cidade, estamos a olhar para a nossa cultura. Um dos traços definidores da cultura de um povo é a forma como este se apropria do território e o molda à imagem dos seus interesses. As nossas cidades não são excepção: elas denunciam bem a sociedade que somos e reproduzimos.

Quando a nossa legislação diz que uma via pode ter 6.5 metros, o passeio 2.25 metros, os edifícios podem ter corpos balançados com 80 centímetros sobre a rua, e se alia a estes parâmetros um índice de construção, daqui resulta uma tipologia urbana específica. E a questão que se põe é: que conteúdo doutrinário corresponde a esta visão do que é uma rua, do que é um bairro? Que ideia ela nos diz sobre o que deve ser a sua vivência, do que deve ser o espaço da comunidade, do que queremos da nossa cidade? A este rigor paramétrico não se aliam esses outros conteúdos, tão mais importantes, para a qualidade da nossa vida.
A cidade faz-se assim com base em indicadores quantitativos, mas sem nenhumas orientações morfológicas sobre o que antes deveria ser; as suas redes e sub-redes, as suas centralidades, referências, enquadramento, elementos dominantes, transições, hierarquias, envolvência, contexto. É um urbanismo feito com a legislação numa mão e a máquina de calcular na outra.

Preocupa-me a forma como o urbanismo é um produto directo de legislação. Essa legislação resulta igualmente de prioridades que são culturais. Se dramatizássemos as questões comunitárias, a vivência urbana, a segurança ou a mobilidade, esses temas encontrariam espaço na legislação do urbanismo. Mas, como devem saber todos os que trabalham nesta área, o urbanismo tem esta particularidade: é demasiado jurídico para ser apenas desenho, mas também é demasiado desenho para ser apenas jurídico. Na verdade, o urbanismo é demasiadamente muitas coisas: gestão, desenho, arquitectura, paisagismo, engenharia, ambiente, regulamento, sociedade, história e por aí fora.
Ou devia ser.

Suponho que os modernos tenham tido uma vida mais fácil. Os problemas que tinham pela frente eram mais concretos e imediatos: habitação, infra-estruturas, equipamentos; planear a resposta a carências reais. Le Corbusier foi dos primeiros a compreender os problemas do século XX. Prospectivou o problema do automóvel no seu início. Teria destruído Paris com o seu visionarismo apaixonado – mas fico a pensar como seriam interessantes hoje as suas reflexões perante os novos problemas que se nos colocam. Bem mais interessantes, decerto, que as dos percursores do pós-modernismo.
Recordo Charles Jencks numa palestra ao lado de um inchado Tomás Taveira, falando desse novo mundo que estava a chegar. Com um optimismo new age suportado em slides de fractais e uma verborreia cheia da teoria do caos, Jencks dissertava sobre a condição pós-moderna, a guerra contra a totalidade e outras novas tendências da moda. Num panorama universitário a cheirar a mofo, com professores a perguntar se “és racionalista ou organicista”, não surpreende que aquele pós-modernismo tenha parecido uma lufada de ar fresco.
Outro mundo é este contemporâneo. A globalização e as formas avançadas de comunicação são as forças dominantes e estão a reconfigurar o social, o económico, o político. É nesse mundo que proliferam os novos doutrinadores, com Rem Koolhaas à cabeça.
Gostemos ou não, ele tem inteira razão quando diz que a arquitectura é subserviente ao mercado e aos seus termoso mercado suplantou a ideologia. É por isso tão preocupante a sua afirmação seguinte, de alguém que vem definindo o lugar da arquitectura no espaço do urbanismo, da sociedade e da cidade. A arquitectura tornou-se um espectáculo. Tem de se embrulhar e já não tem qualquer significado para além de uma marca visual [landmark].
Estará a arquitectura condenada a embrulhar-se em conteúdo teórico como superfície do seu próprio espectáculo: contaminação, hibridização, mutação, processos tecnológicos, megaestruturas. O arquitecto reduzido a estrela market-driven, oportunista e incoerente, navegando ao sabor dos media que se deliciam com os feitos da arquitectura, essa nova forma de entertenimento?
Cada vez mais espectacular, cada vez mais fútil e incapaz de chegar onde verdadeiramente interessa.
Cada vez mais longe da cidade e das pessoas que a habitam.

6 comentários:

  1. Parabéns. Excelente artigo, muito lúcido e actual. Subscrevo inteiramente.

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  2. Bravo!

    Falando de embrulhos... Só é pena que o Christo tenha embrulhado edíficios conhecidos, com história e preocupações vivenciais, em vez daqueles que hoje tanto contestamos...

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  3. Começaste por referir, bem, que o urbanismo, e a arquitectura já agora, é um reflexo da sociedade que o constrói.
    Nada mais exacto para perceber o porquê desta crise de valores.
    O mercantilismo, a cedência perante a imagem, perante os media, o mainstream na arquitectura é o mesmo que afecta o resto da sociedade.
    Passámos da era Humanista, das grandes narrativas, directamente para o capitalismo selvagem – ou seja para um ideal vazio, amoral, destrutivo…agora já pareço um reviralho de esquerda a falar...mas a realidade é que confiamos demasiado num sistema que é uma simples regra de operatividade e portanto, não tem objectivos, apenas princípios.
    É a derradeira forma de totalitarismo, desta vez das massas, ou melhor, daquilo que o capital pensa que as massas consomem. E é desta forma que, acríticos, vamos sendo anestesiados com algo que acreditamos ser o sonho médio, tornado possível.
    É na realidade o produto de uma máquina dotada de uma imagem poderosa e autoconsciente preparada para atrair o consumidor. Não pretende nunca formar ou espevitar o consumidor, mas apenas e simplesmente convencê-lo que está a viver o seu sonho, consumindo.

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  4. Estará a arquitectura condenada a embrulhar-se em conteúdo teórico como superfície do seu próprio espectáculo: contaminação, hibridização, mutação, processos tecnológicos, megaestruturas. O arquitecto reduzido a estrela market-driven, oportunista e incoerente, navegando ao sabor dos media que se deliciam com os feitos da arquitectura, essa nova forma de entertenimento?

    - sim, se o arquitecto continuar a ter o reconhecimento entre pares e a publicidade nos meios que consome como objectivos principais. essa é também uma questão de cultura - a questão dos nossos arquitectos em particular.

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  5. Também tu Brutus!
    Absolutamente...

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  6. Excelente texto.
    Infelizmente serão precisas muitas mais pessoas a pensar assim para, em Portugal, a situação actual se modificar.

    Parabéns.

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