A balada de Arthur Morgan; ou o apocalipse do Velho Oeste



Este texto contém spoilers sobre o videojogo Red Dead Redemption 2.

Numa breve conversa, registada em 2010, Salman Rushdie reflectia sobre a importância dos videojogos para o futuro da expressão narrativa. Questionava, afinal, o modo como esta jovem mídia se constituía como veículo para contar histórias de maneiras muito particulares, tão diversas daquelas que se estabeleceram ao longo de séculos por outras formas de expressão humana tais como a literatura, o teatro ou o cinema.

Apontando como exemplo o popular Red Dead Redemption, lançado nesse mesmo ano, Rushdie sublinhava a natureza aberta da narrativa, ou o modo como as narrativas habitavam aquele mundo aberto e se constituíam como parte da sua textura, permitindo, no entanto, uma infinitude de incursões e excursões divergentes para lá das estórias que o compunham.

Esta dimensão orgânica, experiencial, do tempo e do espaço, que os videojogos são capazes de abarcar é, por certo, uma das suas características mais distintas e marcantes. O extenso território do original Red Dead Redemption constituía a apoteose do género “open-world” (mundo aberto), inspirando-se na iconografia do Velho Oeste Americano para dar corpo a um genuíno sentido de paisagem, com as suas povoações habitadas e uma vasta região envolvente, hostil e selvagem.

Muito por efeito da rápida evolução da tecnologia, os jogos de mundo aberto tornaram-se bastante populares na última década. Com essa popularidade veio também uma crescente formatação do género, dando lugar a convenções e fórmulas repetitivas que se parecem substituir, tantas vezes, a concepções mais originais e inovadoras. Um exemplo bem conhecido desta conformação é ilustrado pela “regra dos 40 segundos”, um conceito introduzido pelos criadores do jogo The Witcher 3 que traduz a forma como o mundo do jogo é densificado com vista a proporcionar a descoberta de novos desafios e actividades com frequência – idealmente de 40 em 40 segundos – e assim manter um ritmo de entretenimento eficaz para captar a atenção e a motivação do jogador.



Talvez o primeiro traço da radicalidade de Red Dead Redemption 2 seja o seu aparente desprezo pelas regras do género, em particular no que respeita aos títulos de categoria blockbuster dirigidos ao grande público tais como os recentes Assassin’s Creed Odyssey, Far Cry 5, Spider-Man ou Horizon Zero Dawn, entre tantos outros. Se não é verdadeiramente revolucionário, o recente título da Rockstar Games parece ir buscar inspiração a produções independentes como, por exemplo, os RPG clássicos ou jogos de simulação de sobrevivência; títulos que desafiam o jogador a “existir” num lugar, sujeitos às suas regras e aos seus tempos.

Em boa verdade, Red Dead Redemption 2 não parece ter urgência em conduzir o jogador pela mão ou levá-lo para onde está a acção. Após as primeiras missões introdutórias, em que são dadas a conhecer as mecânicas que lhe servem de base, o jogador é entregue à vastidão do horizonte e, acima de tudo, à lentidão do tempo e do espaço que ele encerra. É essa dimensão existencial que constitui o pano de fundo para a narrativa; um lugar onde o jogador é livre para se perder em busca da infindável flora e fauna, procurar tesouros perdidos, comer uma refeição ou embriagar-se no saloon local, tomar banho e dormir no hotel da cidade ou pernoitar num acampamento sob as estrelas. Subtilmente, é também durante esses aparentes interlúdios, os tempos que distam entre cada “missão” que faz avançar a narrativa, que muitas das estórias que a compõem nos são apresentadas.



Sobre tudo isto está a história de Arthur Morgan, um fora-da-lei, membro do gangue Van der Linde, liderado pelo carismático Dutch, nos idos de 1899. Sendo um retrato apocalíptico do fim do Velho Oeste perante a marcha imparável da civilização no dealbar do século XX, Red Dead Redemption 2 não se entrega a idealizações melancólicas quanto ao passado, implícito em toda a sua brutalidade sobre as muitas personagens que intersectam a vida do nosso anti-herói: nos nativos americanos, nos escravos, nas mulheres, nos vulneráveis. E, no entanto, se o passado é um lugar brutal, o futuro meramente parece erguer uma fachada de modernidade sobre a verdadeira natureza do Homem.

É neste contexto que a figura de Dutch van der Linde nos é revelada em todo o seu fascínio. Pois que, em boa verdade, este não é um mero gangue de foras-da-lei, mas antes um bando de proscritos. Dutch pode ser um líder implacável, mas é também alguém que exprime genuína compaixão pelos excluídos da sociedade. Muitos dos seus membros são almas perdidas, órfãos analfabetos, mulheres brutalizadas, a quem este ofereceu acolhimento e protecção. E, no entanto, Dutch parece colher um inusitado júbilo na dívida de gratidão daqueles que o rodeiam, cedendo à cólera quando questionado quanto à lucidez dos seus propósitos.

Inevitavelmente, o progressivo declínio mental de Dutch irá ditar o destino de Arthur Morgan, o seu braço direito. Arthur, um homem sem ambições de liderança, até então conformado na posição de número dois do gangue, acaba por ver-se confrontado com a urgência de assumir a iniciativa na salvação do grupo em tempos de desespero. O destino, por fim, ditará a necessidade de repensar as suas escolhas, num percurso em que, magistralmente, se conjuga a narrativa com a disrupção das convenções da própria jogabilidade – pois que as circunstâncias da sua vida irão impor a perda de faculdades, expressa na regressão das aptidões do jogador. E eis que um videojogo se torna veículo para contar, de forma experiencial, a frustração da nossa vulnerabilidade e, afinal, a fragilidade da condição humana.



Red Dead Redemption 2 ficará como uma das grandes histórias contadas sobre o formato de videojogo e Arthur Morgan ascenderá por certo ao panteão das grandes personagens com que este meio de expressão artística nos presenteou, inscrevendo-se também entre as grandes figuras do Velho Oeste, lado a lado com William Munny, com quem poderemos traçar maior paralelismo, ou nomes míticos tais como Shane, o Homem Sem Nome ou o xerife Will Kane.

Um conto universal sobre a vida, a morte e os laços que nos unem, num mundo onde a injustiça por vezes se abate sem qualquer sentido, mas onde, em singulares, silenciosos momentos, a felicidade com que sonhamos passa pelas nossas mãos, num tempo que não mais voltará.

The day is done, the time has come
You battled hard, the war is won
You did your worst
You tried your best
Now it's time to rest
Now it’s time to rest…