Muito mais do que matar pixéis



De que falamos quando falamos de violência nos videojogos? Dos actos explícitos que podemos testemunhar ou praticar na realidade do mundo virtual ou do que está para lá da superfície pixelizada do ecrã? Falamos, afinal, daquilo que vemos ou daquilo que sentimos?

Invariavelmente quando se discute violência nos jogos de vídeo encontramos um debate centrado na dimensão explícita da violência – chamemos-lhe, para efeitos desta reflexão, de violência descritiva. Trata-se de um tipo de violência que é recorrentemente minimizada pela comunidade de jogadores. Importa no entanto interrogarmo-nos sobre a relevância do acto de agredir ou matar NPC’s – non-player characters – num universo de pura fantasia. Afinal, é apenas um jogo. Ou será?

Dizer que a violência nos jogos de vídeo se resume a uma questão de píxeis é o mesmo que dizer que um filme é apenas uma projecção de luz num ecrã ou que um livro não passa de tinta sobre uma folha de papel. Um videojogo, tal como um filme ou um livro, é um artefacto cultural. Estabelecemos inevitavelmente relações cognitivas e afectivas com os seus universos ficcionais. Eles ajudam-nos a questionar o nosso entendimento do mundo e a experimentar possibilidades que transcendem o plano corrente da vida. Por isso a violência tem uma dimensão cultural que não podemos ignorar.



Devemos também ter presente que os jogos de vídeo não se reduzem a entretenimento infantil. Eles compreendem obras de uma enorme diversidade temática, dirigidos às mais variadas faixas etárias e sujeitos a regras convencionadas de catalogação de conteúdos. Se um pai não compraria filmes como Fight Club, A Laranja Mecânica ou O Exorcista para o seu filho pré-adolescente, por que motivo acharemos aceitável que o faça com títulos como GTA, Gears of War ou Mortal Combat, todos eles classificados como destinando-se a um público com mais de 18 anos?

Como refere Nelson Zagalo, professor de media interactiva na Universidade do Minho, num recente artigo publicado na IGN Portugal, diversos jogos vêm explorando a violência descritiva como forma de potenciar o seu alcance mediático e o seu sucesso comercial. Veja-se o caso recente de Hatred, na senda de títulos como Postal, Carmageddon ou Gamehunt. São títulos que se reduzem tantas vezes a epifenómenos dirigidos a uma faixa etária susceptível de ser seduzida por aquilo que lhe é proibido. Assim, tal como sucede em relação aos filmes e aos livros, também nos videojogos é fundamental que os pais estejam informados sobre os produtos que os seus filhos consomem. Mais do que proibir importa conhecer, acompanhar e dialogar acerca das experiências que os rodeiam.

A proibição dos jogos violentos é uma questão sempre controversa, pelo balanço inevitável entre a legitimidade da censura e o respeito pela liberdade de expressão. Mas não devemos deixar de ter em conta que a liberdade de expressão não é um valor absoluto; por exemplo no que toca ao incitamento ao ódio e à violência contra grupos de pessoas, sejam mulheres, homossexuais, imigrantes, cidadãos de outras etnias ou diferentes credos religiosos.



O caso torna-se mais complexo quando a violência ocorre no espaço de liberdade de decisão do jogador. Tomemos como exemplo o polémico Grand Theft Auto V, um jogo que nos apresenta um mundo aberto para explorar e experimentar de inúmeras formas. Nele o jogador é livre para conduzir automóveis, participar em corridas, subir montanhas, percorrer trilhos de bicicleta, descobrir objectos escondidos, ir ao cinema, assistir a espectáculos ocasionais de stand-up comedy, comprar roupas e casas para as suas personagens virtuais, entre tantas outras actividades.

Importa ter presente que GTA V (tal como os anteriores títulos desta série) é um jogo com uma história carregada de crítica e comentário social. No entanto, focando-se nas desventuras de três personagens cuja vida tem lugar no submundo do crime, a violência é um tema que lhe está sempre presente. Oferecendo total liberdade ao jogador este é livre para roubar carros, destruir edifícios, agredir e matar, de forma gratuita, NPC’s, sejam eles polícias ou habitantes anónimos daquela cidade virtual.

Diga-se em abono de GTA que nada na mecânica do jogo incita objectivamente aos actos de violência urbana caótica contra NPC’s que tantas vezes encontramos no YouTube e que servem de crítica nos media generalistas contra os videojogos. Nada na história do jogo motiva violência – virtual, entenda-se – contra civis inocentes. Pelo contrário, a mecânica do jogo contraria esse tipo de actuação, atribuindo ao jogador níveis crescentes de criminalidade que têm como retorno a perseguição por forças policiais cada vez mais agressivas e, por fim, o próprio exército, ditando a morte do jogador em poucos minutos. Game over.



Ainda assim é indiscutível que a violência explícita faz parte do tecido do jogo e da sua repercussão promocional, bem como a sua permissividade no campo sexual. Em GTA, o jogador é livre para visitar bares nocturnos, assistir a shows eróticos e até contratar prostitutas de rua.
A propósito do lançamento da nova versão remasterizada do jogo o site Polygon deu a conhecer um vídeo extraído da internet em que um jogador praticava sexo – uma breve animação não explícita, mas bastante implícita – com uma prostituta. No final o jogador saiu do carro, pegou numa arma e matou a personagem virtual. E um comentador deixou uma curiosa mensagem: “à boa maneira de GTA ele mata a prostituta no fim”.

Em boa verdade não há nada em GTA V que nos diga que o jogador deve contratar prostitutas. Não há nenhum prémio em fazê-lo. E não existe, na mecânica do próprio jogo, nenhum incentivo a matar prostitutas virtuais. No entanto isso parece ter-se tornado numa espécie de subcultura para alguns jogadores, em número suficiente para ter expressão “cultural” - o que se traduz naquele comentário na Polygon e em inúmeros vídeos que podemos encontrar no YouTube.

Ora se o jogo não promove esses actos de violência porque é que eles acontecem e são tão expressivos na internet e nos media? Como será fácil de presumir a questão não é inocente. A presença daqueles conteúdos no mundo do jogo é uma decisão premeditada da sua produtora – ela própria os subtraiu, afinal, de títulos como LA Noire e Red Dead Redemption. A verdade é que eles definem a conformação das personagens principais, pelos jogadores, no seu espaço de acção. Eles estão lá para serem testados e jogados, tornando-se parte da textura experiencial daquele universo, da sua expressão cultural e, inevitavelmente, da sua repercussão mediática.



Importa igualmente aprofundar a dimensão subjectiva da violência nos videojogos. Considerada no plano meramente descritivo GTA será um dos jogos mais violentos que existem. Mas tendo presente o segundo plano, muito mais ignorado, outros títulos parecem ganhar maior relevância. A hiperviolência de GTA ocorre num território de natureza fortemente caricatural. Comparativamente o mundo claustrofóbico e psicologicamente opressivo de BioShock afigura-se-nos como dotado de uma experiência muito mais impactante. O mesmo poderá dizer-se de inúmeros first-person shooters, jogos de guerra e de acção, tantas vezes dominados pela componente online de natureza potencialmente aditiva.

A dimensão psicológica da violência, ao contrário da sua vertente meramente explícita, é um factor que tende a ser esquecido mas que detém enorme alcance na experiência vivida pelo jogador. A este propósito, Danny O'Dwyer, editor da Gamespot, elaborou uma interessante reflexão a respeito da introdução da perspectiva na primeira pessoa na versão remasterizada de GTA V – ver GTA Violence: A Matter of Perspective. Também aqui a presença da componente subjectiva introduz uma dimensão visceral em que a violência parece alcançar todo um outro sentido dramático.



À medida que os videojogos vão assumindo um crescente híper-realismo o debate sobre a violência não poderá deixar de compreender a dimensão ética da sua experiência, aos seus múltiplos níveis. Eminentemente gratuita ou intrinsecamente embebida no tecido da ficção a violência nos meios de expressão narrativa encerra uma dimensão cultural que não pode nunca ser ignorada. Não se trata por isso de matar pixéis mas de ter presente que os gestos que praticamos, no plano do real ou em mundos simulados, reflectem sempre, e inevitavelmente, aquilo que somos e aquilo que nos fazemos ser.

Um grande actor é isto



Lou Bloom é um pequeno vigarista que descobre, por mero acaso, o negócio promissor que existe em torno da venda de imagens gravadas de acidentes ou crimes, em primeira-mão, junto das estações televisivas. Decide então embarcar nessa actividade como freelancer, dotado apenas de uma câmara portátil e um rádio capaz de captar as frequências de polícia. Assim se inicia a sua aventura ao estranho submundo do jornalismo sensacionalista que preenche grande parte do espaço mediático contemporâneo.

Bloom é um homem sem formação mas dotado de uma inteligência invulgar. A sua completa ausência de escrúpulos, a raiar os limites da psicopatia, torna-se um ingrediente importante na ascensão ao sucesso. E eis que, a pouco e pouco, parece esbater-se a fronteira entre o seu papel de observador e participante dos eventos que persegue, noite após noite.

Escrito e realizado por Dan Gilroy, Nightcrawler é um filme perturbador que confronta o papel da imagem no contexto do jornalismo televisivo – a imagem reduzida a uma voragem de violência e morte, para lá de qualquer contexto, matéria prima de uma guerra concorrencial pelo espectador onde tudo vale. É nesse ambiente social de aparente sofisticação mas dominado por um profundo cinismo que a progressão de Lou Bloom se revela inquietantemente reveladora.

Um estudioso autodidacta, Bloom torna-se um depositário de ideias feitas sobre empreendedorismo e gestão de carreira, com um discurso carregado de lugares comuns e noções frívolas de sucesso. Que uma frase banal sobre amizade, uma citação de Robert Louis Stevenson repetida à exaustão em mil e um postais ilustrados – um amigo é uma prenda que dás a ti próprio – se revele a expressão mais bizarra e ameaçadora que sai da boca da personagem, eis um testemunho do trabalho extraordinário de Jake Gyllenhaal. A sua representação, inesquecível e plena de complexidade, tem lugar garantido na corrida ao Óscar de melhor actor, contando ainda com a presença memorável dos veteranos Bill Paxton e Rene Russo.

Uma obra que parece estar a passar ao largo do radar da maioria das listas de melhor filme do ano, Nightcrawler é um autêntico Taxi Driver contemporâneo e um dos grandes títulos de 2014.

Uma história de sobreaquecimento da economia

Image credits: André Pais.

O endividamento dos particulares – cidadãos e famílias portuguesas – ascende a 166 mil milhões de Euros, equivalente à totalidade do produto interno bruto nacional – dados de final de 2012. A dívida resultante do recurso ao crédito para compra de habitação compreende 70% desse valor, no total de 116 mil milhões de Euros.

Este fenómeno de endividamento teve na sua origem uma conjugação de diferentes factores, destacando-se um conjunto de alterações estruturais ocorridas no sistema bancário com o aumento das condições de emissão de crédito, o abaixamento progressivo das taxas de juro e os efeitos da convergência ao quadro da adesão ao Euro.

Tendo presente que no actual sistema monetário os bancos emitem crédito sobre a forma de novos depósitos electrónicos – criando dinheiro que antes não existia – importa agora ter em conta que o volume de crédito para habitação não só aumentou progressivamente ao longo das últimas décadas como duplicou desde 2001.
Perante um processo de crescimento do crédito tão espectacular, que se traduziu na canalização de avultados recursos financeiros sobre o sector da construção, poderíamos ser levados a inquirir por que motivo tal não repercutiu um aumento igualmente significativo da inflação no conjunto da economia. Essa inflação, na verdade, aconteceu, mas os seus efeitos foram circunscritos ao mercado imobiliário.

A massificação do acesso ao crédito em regimes cada vez mais agressivos teve como efeito o aumento da procura e uma correspondente subida de preços da edificação. Esta valorização obteve, da parte do sistema bancário, uma leitura positiva por assegurar a solidez das suas garantias sobre a forma de hipoteca em caso de incumprimento dos particulares. Por sua vez, este comportamento do mercado tornava mais favoráveis as condições para criação de novos créditos no sector, tidos como de baixo risco e elevado retorno.

Sucede também que o aumento global do preço do parque edificado não é considerado para efeitos do cálculo da inflação, apenas os custos correntes em rendas e outras despesas associadas à habitação. A isto acresce que o endividamento das famílias, obtido por via do crédito, implica a redução do seu rendimento disponível, tendo um efeito negativo no consumo e, correspondentemente, na inflação para o restante conjunto da economia.

Importa assim compreender que este processo de valorização crescente do imobiliário constituiu uma distorção do normal comportamento do mercado. Qualquer modelo de avaliação dos custos da construção tem por base a consideração de uma desvalorização gradual dos imóveis em função da idade. É isso que sucede em economias onde o sector da construção não teve uma expressão tão significativa, como no caso da Alemanha. Em Portugal, no entanto, como na Espanha e em outros países, instalou-se a expectativa generalizada quanto à tendência de valorização do preço das casas.

Tomou-se afinal como paradigma aquilo que não passou dos efeitos do próprio sobreaquecimento do mercado, resultante da canalização de avultadas quantidades de crédito pelo sistema bancário para este sector. Este ambiente especulativo foi não só lesivo para os cidadãos particulares, aumentando artificialmente os preços da habitação e o seu endividamento, como se traduziu numa forte pressão urbanística em todo o país.

Também aqui as dinâmicas de um mercado distorcido tiveram as suas consequências. Se algumas cidades foram a reboque do imobiliário, cedendo à expansão dos perímetros urbanos a uma velocidade sem precedentes, outras cidades que procuraram conter essa tendência viram-se fortemente prejudicadas pelos efeitos inflacionários decorrentes para o custo do solo urbano - com distorções de preços que, em muitos casos, a própria crise não resolveu.

Devemos agora compreender que tal paradigma foi, não apenas, errado, como é igualmente irrepetível. Passámos da era da construção para a era da gestão – mais um motivo para colocarmos a reabilitação, ainda tão deficitária, no centro do debate político.

A grande questão política do nosso tempo



Tenho vindo a dedicar alguma atenção ao tema da economia e, em particular, à natureza do actual sistema monetário, ao real papel exercido pelos bancos comerciais e às profundas distorções sistémicas que um tal modelo faz incidir sobre a nossa sociedade em todos os aspectos da nossa vida. Acredito que esta é, no contexto das economias desenvolvidas, a questão política do nosso tempo.

No passado dia 20 de Novembro teve lugar no Parlamento Britânico um debate sobre a criação de dinheiro com o título Money Creation and Society. Em discussão esteve o facto de no actual sistema de moedas fiduciárias como a Libra, o Euro ou o Dólar, a esmagadora percentagem do money stock em circulação não ter sido criada pelos governos (ou pelos bancos centrais) mas por bancos comerciais através da concessão de crédito.

Em causa está o facto dos bancos criarem dinheiro do nada, electronicamente, sobre a forma de crédito e que o volume de dinheiro criado por essa via aumentou exponencialmente nas últimas décadas – ascendendo, no caso Britânico, a 97% da totalidade do money stock.

Tratou-se de um debate promovido por quatro parlamentares da Câmara dos Comuns, de cada uma quatro forças políticas ali representadas: Conservadores, Trabalhistas, Verdes e Ukip. A discussão assertiva que se gerou demonstrou bem que as preocupações em torno da reforma monetária não são apenas opiniões de um pequeno grupo com ideias alternativas sobre economia, mas antes apreensões fundamentadas de um vasto conjunto de pessoas com diferentes sensibilidades políticas.

Alheios à natureza do sistema monetário moderno muitos cidadãos são conduzidos por conceitos do senso comum que iludem a compreensão real dos problemas. Um exemplo imediato revela-se no modo como as pessoas entendem o significado de um “empréstimo” bancário. No entendimento de muitas pessoas um banco é uma instituição intermediária que tem à sua guarda os depósitos de outros cidadãos, redistribuindo-os através de empréstimos sobre os quais incidem juros que revertem a seu favor, de que depois beneficiam também os depositantes originais.

Sucede que a realidade é bem diversa. Quando um banco concede um crédito a um particular essa instituição assume uma responsabilidade desse valor mas a dívida deste é registada como um activo do banco. Ao fazê-lo, os bancos estão simultaneamente a criar dinheiro (electrónico) novo na conta do cliente, bem como a dívida que lhe é correspondente. O processo é descrito de forma detalhada num documento publicado pelo sítio web Positive Money que pode ser descarregado aqui – corroborado de forma inequívoca por uma outra publicação emitida pelo Banco de Inglaterra.

Significa isto que no contexto actual o principal objecto de actividade dos bancos não é mais aquilo que outrora entendemos como banking, fazendo recircular as poupanças na economia como crédito a novos investimentos, mas sim a criação de money stock através de crédito sobre a forma de novos depósitos electrónicos.

Decorrem deste processo vários aspectos a ter em conta. Faço referência ao exemplo Britânico pelo facto de conter documentação mais acessível mas valerá a pena lembrar que o Euro, pese embora ter tido uma gestão mais conservadora, opera segundo um paradigma idêntico.
No caso Britânico, com um money stock de 2.200 mil milhões de libras, apenas 8% foi concedido a empresas do sector não financeiro. O volume de crédito emitido a entidades financeiras é três vezes superior. E um terço daquele money stock foi canalizado para o sector imobiliário ou para empréstimos sobre hipoteca de casa.

Estamos perante um fenómeno que contradiz um princípio básico em que parecem acreditar muitos economistas: que, no actual sistema, o dinheiro não é neutral – facto muito enfatizado no debate da Câmara dos Comuns pelo Conservador Steve Baker. O dinheiro tem sido maioritariamente criado por bancos – sem correspondência com os seus activos e em valor que lhe é muito superior, ao abrigo das regras do fractional reserve banking – fazendo reverter em seu benefício os juros correspondentes e extraindo desse modo riqueza do todo da economia, empobrecendo gradualmente a sociedade.
Assistimos assim ao desenrolar de um desequilíbrio sistémico extremamente perigoso, por via do aumento exponencial do endividamento sobre economias de lento crescimento. E temos assim que o peso dos juros que tal volume de crédito faz agora incidir é de tal forma elevado que comprime a economia real e a sua possibilidade efectiva de crescimento.

De igual modo, os cidadãos têm vindo a ser iludidos quanto ao papel exercido pelos “Mercados”, maioritariamente representados por instituições financeiras que estão na primeira linha de acesso ao crédito, em condições de muito baixo custo de financiamento.

Perante estas circunstâncias afiguram-se pouco elaboradas as preocupações dedicadas por alguns economistas à possibilidade de criação de dinheiro pelo BCE e aos riscos que tal representa, tendo em conta que os bancos andaram a fazer isso mesmo de modo descontrolado nas últimas décadas. Na verdade, o recurso ao quantitative easing levado a cabo pelo BCE é um processo que continua a operar em benefício directo dos agentes financeiros e não da economia. E de novo a apresentação do Plano Juncker se apresenta como mais uma demonstração de como a Comissão Europeia prefere actuar no interesse dos bancos, introduzindo um mecanismo que volta a colocar os Estados na dependência de se financiarem através da banca privada, acumulando assim mais dívida ao sector privado emissor de crédito.

Coloca-se afinal a interrogação quanto aos motivos porque no contexto de moedas Fiat, como o Euro, os Estados se colocam na contingência de se financiarem em instituições privadas que beneficiam da criação de dinheiro sobre a forma de crédito, em vez de se financiarem, de forma necessariamente regulada, junto de instituições centrais de natureza pública.

A solução para um problema desta magnitude só pode passar por uma reforma monetária que faça transferir as dívidas públicas dos Estados para um organismo central Europeu, de que beneficiem os seus cidadãos e não os bancos que emprestaram aquilo que efectivamente não tinham, em proveito próprio. A não o fazer, continuaremos a viver ao abrigo de um sistema monetário que constitui uma imoralidade e uma distorção sistémica profunda das regras do próprio Capitalismo.

Isto vai revolucionar a educação



Derek Muller, autor do popular vídeo blogue científico Veritasium, dá conta de um vasto número de inovações tecnológicas que prometeram revolucionar o sistema educativo. Uma reflexão sobre a natureza do processo de aprendizagem, mais dependente da capacidade de despoletar o envolvimento activo da mente dos alunos do que dos inúmeros artefactos que a cada momento ganham protagonismo na sociedade. O entusiasmo pueril que por vezes rodeia a introdução de novas tecnologias parece assim esquecer as lições do passado e o facto de que aprender é uma actividade inerentemente social, motivada e encorajada pelas interacções com outras pessoas. Não deixem de subscrever o Veritasium no YouTube e no Facebook.

Uma vez na vida



Se há filmes que dificilmente se repetem, este é um deles. Um retrato da transição da infância para o início da idade adulta, Boyhood é um projecto cinematográfico concebido durante doze anos com filmagens que acompanharam o envelhecimento dos seus actores – com natural impacto na evolução física e psicológica das crianças através da adolescência que se desenrola à frente dos nossos olhos.

O registo segue os traços naturalistas próprios das obras recentes de Richard Linklater, sem arcos melodramáticos para levar o espectador pela mão em crescendos de narrativa e desenlaces finais. O resultado é um filme despojado, hiper-realista, profundamente adulto, sobre os efeitos da passagem do tempo na vida de cada uma das suas personagens.
Tão interessante quanto testemunhar a transformação das crianças é assim observar o ponto de partida e de chegada daqueles adultos e os curiosos, incertos e inexplicáveis caminhos que nos conduzem, cheios de erro e tentativa.

Linklater não perde tempo com figuras de estilo, distante dos estafados clichés que dão conta do ciclo das estações ou dos anos que passam. Vamos saltando apenas de uns anos para outros, sempre em frente, sempre sem retorno possível. A estrutura temporal de Boyhood resulta assim muito mais do que um mero artefacto experimental. Mais do que um somatório de momentos da vida, o filme é um pequeno milagre sobre a própria vida no tempo, sobre o que significa afinal crescer.

Boyhood é um filme de culto instantâneo, a obra-prima de Richard Linklater e um dos grandes feitos cinematográficos da década.

Tão longe, tão perto



Wanderers, uma curta metragem de Erik Wernquist que nos leva numa viagem imaginária a lugares próximos do Sistema Solar, acompanhados pelas palavras imortais de Carl Sagan. Dos anéis de Saturno aos campos gelados de Europa, sobrevoando as nuvens de Titan ou descendo um elevador espacial em Marte, um filme inspirador sobre o sonho da exploração do espaço pela Humanidade. Talvez um dia. Via io9.

Paroxismos

Image credits: Iñaki Otaola.

O cidadão avisado tenderá a franzir o nariz sempre que um comentador se entrega ao exercício de presumir o que “as pessoas” pensam. “As pessoas” serão, à luz das sábias luminárias que comentam os assuntos do dia na televisão, nos jornais e nos blogues, uma massa de pouca espessura mental cujo pensamento pode ser rigorosa e cientificamente auscultado através do mural do Facebook.

Sabia que os bancos criam dinheiro do nada?



Na passada quinta-feira, dia 20 de Novembro de 2014, pela primeira vez em 170 anos, o Parlamento Britânico promoveu um debate sobre a criação de dinheiro. Poucas pessoas sabem que, no actual sistema de moedas fiduciárias como a Libra, o Euro ou o Dólar, a esmagadora percentagem do money stock em circulação nas nossas economias não foi criado pelos governos (ou pelos bancos centrais) mas por bancos comerciais através da concessão de crédito.

Aos pais



O desejo de criar é igualmente forte em todas as crianças. Meninos e meninas.
É a imaginação que importa. Não a habilidade. Cada um deve construir aquilo que lhe vem à cabeça, da forma que quiser. Uma cama ou um camião. Uma casa de bonecas ou uma nave espacial.
Muitos meninos gostam de casas de bonecas. Elas são mais humanas do que as naves espaciais. Muitas meninas preferem as naves espaciais. Elas são mais excitantes do que as casas de bonecas.
A coisa mais importante é colocar o material certo nas suas mãos e deixá-los criar aquilo de que mais gostam.


Uma pequena nota da Lego enviada aos pais dentro dos seus conjuntos de peças durante a década de 1970. Via Kottke.

Para onde vão os comentários do Diário Económico? Talvez para Nárnia...

Há cerca de uma semana Vital Moreira publicou um artigo no Diário Económico sobre o polémico TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership).

A layer zero da arquitectura e do urbanismo: pensamentos sobre a criação de dinheiro e o problema das cidades

Image credits: John Brosio.

Quando urbanistas e arquitectos se debruçam sobre as dinâmicas da cidade contemporânea, no contexto das sociedades organizadas, tendem a ignorar o problema da cidade na sua dimensão financeira. Está em causa, muito concretamente, a desconsideração dos processos de produção de cidade enquanto materialização de instrumentos financeiros e, em particular, a dimensão que este processo teve no conjunto da política monetária levada a cabo pelas instituições bancárias nas últimas décadas.

Ao fazê-lo, urbanistas e arquitectos estão a debater fenómenos muito importantes como, por exemplo, a expansão urbanística, os movimentos pendulares e os seus efeitos sociais ou ambientais, muito a jusante dos factores que lhes estão na origem.

Temos assim que a nossa cultura teórica e profissional conduz-nos muitas vezes para a abordagem dos problemas na sua dimensão material, do mundo construído e das suas repercussões objectivas – ao nível da ocupação humana e das suas dinâmicas sociológicas, ou, por exemplo, dos transportes, das infra-estruturas, da gestão do património edificado. E acabamos por ignorar que fenómenos cruciais como a suburbanização das cidades foram, em primeiro lugar, o resultado da tradução em obra física de veículos de investimento financeiro.

Olhando para a vasta mancha urbana anónima e tantas vezes desqualificada que caracteriza esses subúrbios, sobre esta perspectiva, temos agora de nos interrogar quanto àquilo que ela efectivamente representa. Tendo presente princípios de reflexão estritamente urbanística e arquitectónica, estes territórios construídos representam o falhanço do planeamento perante a voragem do sector da construção civil e do imobiliário.
Correspondem, de alguma forma, a uma certa falência da capacidade de actuação do poder público, no domínio do urbanismo, sobre a actuação descontrolada do mercado.

No entanto, considerados enquanto manifestações de instrumentos financeiros, essa mesma cidade constitui um exemplo de optimização eficaz do objecto da construção tendo em vista o máximo retorno financeiro a partir do menor investimento possível. Assim se traduz essa cidade em áreas de máxima densidade de ocupação, menor infraestrutura pública e reduzida qualidade arquitectónica.

O resultado é um ambiente construído altamente ineficaz ao nível do conforto humano, da gestão ambiental e energética, dos fluxos de mobilidade e demais implicações urbanas. Pior, é não só um modelo de criação de cidade que permite ao agente privado extrair o máximo rendimento possível como implica uma posterior acção pública a diversos níveis – desde a necessidade de reforço de infraestruturas de transportes para viabilizar a deslocação pendular massiva dos habitantes, ao investimento na dotação de espaços públicos e equipamentos que assegurem a sua qualidade de vida – de que decorrem custos colectivos, e ainda os prejuízos de longo prazo de um modelo de ocupação ineficaz ao nível energético, com pesados consumos rodoviários e tempos dispendidos.

Ao termos presente que nas sociedades organizadas o volume de dinheiro (money stock) introduzido na economia sobre a forma de crédito por parte da banca privada, dirigido ao sector da construção, ascende a valores da ordem de um terço da quantidade total de moeda disponível, podemos compreender a dimensão deste fenómeno no conjunto da nossa vida económica.
O processo a que assistimos nas últimas quatro décadas não tem paralelo na história mundial. Se é certo que dele decorreu o sobreaquecimento da economia que assegurou, no curto prazo, uma melhoria generalizada da qualidade de vida, é também verdade que a herança que fica dos custos desta realidade e o peso que dela decorre no endividamento colectivo dos cidadãos será difícil de sustentar no futuro.

Decorre assim para urbanistas e arquitectos que queiram participar no fazer e gerir da cidade que não basta já reflectir sobre soluções inovadoras de urbanismo no sentido estrito, com ilusões irreverentes quanto ao poder do desenho, tornando-se necessário reflectir sobre os próprios mecanismos financeiros que estão na base da sua operacionalização. Se não o fizermos estaremos a actuar sobre um terreno comprometido à partida com decisões tomadas nos gabinetes de instituições financeiras para quem a cidade é, em primeiro lugar, um veículo para a obtenção de lucro, e de forma muito secundária, um território material onde vivem pessoas.

Um pouco como a Alice



– Imagino que te estejas a sentir um pouco como a Alice… Caindo na toca do coelho? Vejo-o nos teus olhos. Tens o olhar do homem que aceita aquilo que vê porque está à espera de acordar. Ironicamente, isto não está longe da verdade…
Deixa-me dizer-te porque estás aqui. Estás aqui porque sabes uma coisa. O que sabes não consegues explicar. Mas sente-lo. Sentiste-o toda a tua vida. Que há algo errado com o mundo. Não sabes o que é, mas está ali. Como uma farpa na tua mente, a enlouquecer-te. É este sentimento que te trouxe até mim. Sabes do que estou a falar?
– Da Matriz?
– Queres saber o que ela é?...
A Matriz está em todo o lado. Está à nossa volta, nesta mesma sala. Podes vê-la quando olhas pela janela ou quando ligas a tua televisão. Sente-la quando vais para o trabalho, ou à igreja, ou quando pagas os teus impostos.
A Matriz é o mundo que foi colocado à frente dos teus olhos para te cegar da verdade.
– Que verdade?
– Que tu és um escravo, Neo. Como todos os outros que te rodeiam, nasceste na escravatura, nasceste numa prisão que não consegues cheirar ou sentir ou tocar. Uma prisão… para a tua mente.

De onde vêm as dívidas

Amanhã, dia 20 de Novembro de 2014, será um dia histórico para o Reino Unido. O Parlamento Britânico vai discutir, pela primeira vez desde 1844, o modelo de criação de dinheiro do actual sistema monetário. O debate tem por título Money Creation and Society.

O sítio web da campanha Positive Money é um bom ponto de partida para conhecer este problema. Em causa está o facto de os bancos criarem dinheiro “do nada”, electronicamente, sobre a forma de crédito, e que o volume de dinheiro criado dessa forma aumentou exponencialmente nas últimas décadas – ascendendo, no caso britânico, a 97% da totalidade do dinheiro em circulação na economia.
Trata-se de uma trágica concessão de soberania das Nações a favor de agentes financeiros privados, com efeito em todos os aspectos da nossa vida económica.

Partilho um dos melhores vídeos que encontrei sobre este problema: uma palestra de Michael Rowbotham, gravada em 1999, onde aborda as muitas implicações que resultam de um sistema monetário baseado no endividamento. A qualidade da gravação é muito fraca mas o conteúdo é obrigatório. Legendas disponíveis em inglês.

Facebook: pensar antes de usar

Image credits: Jaya Nicely.

O que Zuckerberg não gosta é que alguém questione, não exactamente a legitimidade do seu negócio, mas as implicações práticas, simbólicas e políticas do Facebook. Comporta-se mesmo como um fabricante de automóveis que, socorrendo-se de uma verdade insofismável – todos os cidadãos tiram ou podem tirar gratificantes vantagens dos veículos fabricados – recusasse qualquer tipo de responsabilidade na poluição do planeta.

João Lopes, Sound + Vision: Amigos e inimigos do Facebook, 2014-11-14.

A todos os homens é dada a chave dos portões do céu. A mesma chave abre os portões do inferno.

Richard Feynman, The Meaning of It All: Thoughts of a Citizen Scientist, 1998.

No final do ano passado o Facebook contava com cerca de 1230 milhões de utilizadores activos, dos quais 757 milhões acedem à rede social todos os dias.

A esta realidade somam-se outros dados relevantes: uma sondagem ao universo de cidadãos norte-americanos permite-nos saber que 64% dos adultos utilizam o Facebook e, destes, metade utiliza o site como fonte de acesso a notícias – o que corresponde a um terço daquela população.

Um olhar mais detalhado aos números permite-nos concluir que apenas uma parte (38%) deste último grupo afirma considerar o Facebook como fonte principal de informação. Importa no entanto ter em conta que estamos perante um fenómeno tendencialmente crescente e que o número de utilizadores que tem nessa página o veículo central de acesso a notícias aumenta à medida que vamos considerando a população mais jovem.

O peso do Facebook como fonte de tráfego dos sítios web de meios de comunicação é assim cada vez maior e tem influência na própria produção dos conteúdos jornalísticos. Os artigos tendem a ser escritos e intitulados tendo presente a repercussão potencial que vão ter na internet e, em particular, nas redes sociais. A título de mero exemplo, publicar que [Angela] Merkel diz que Portugal tem demasiados licenciados não é o mesmo que referir que Angela Merkel defende aposta no ensino técnico especializado – sendo a última asserção mais próxima do justo relato dos factos.

A verdade é que o Facebook vem contribuindo para uma progressiva e persistente degradação do jornalismo ou, pelo menos, de algumas formas de jornalismo que vão ganhando visibilidade ao recorrer a processos de apelo ao sensacionalismo e à emoção.

O problema decorre, em primeiro lugar, dos mecanismos de funcionamento do próprio Facebook. Com a perda de expressão dos blogues, as principais páginas da internet abandonaram o célebre formato cronológico-invertido para adoptarem algoritmos automáticos de valorização de conteúdos tendo por base o número de “gostos”, comentários e partilhas. Ao impulsionar esse modelo de publicação, o Facebook está efectivamente a retirar aos utilizadores o controlo sobre aquilo que vêem.

O resultado é uma rede que valoriza o que é mais popular mas despreza a unicidade daquilo que é especial. As distorções surgem pela prevalência de conteúdos mais apelativos e populares, favorecendo o clickbait e desvalorizando histórias com mais conteúdo e melhor qualidade. Como consequência, o público deixa de ver muitas coisas publicadas pelos seus contactos ou pelas páginas que os utilizadores estão voluntariamente a “seguir”.

O caso torna-se ainda mais controverso quando o algoritmo do Facebook valoriza outras páginas e outras publicações mediante o seu próprio sistema de monetização. Como seria de esperar, os posts pagos são considerados preferencialmente na escala de relevância, ganhando maior visibilidade.

O ecossistema que resulta desta conjugação de populismo e publicidade tem dado lugar a sites de pseudo-notícias que abandonaram qualquer referência de ética de conteúdo, tendo por fim alcançar o máximo retorno financeiro possível. Quanto mais escandaloso ou sensacional for o título, mais provável será a hipótese de receber “gostos” e partilhas. Para essas páginas o único objectivo é alavancar as suas visualizações – sendo certo que quantas mais visualizações obtiver, mais será o revenue alcançado por via da publicidade.

Mas se é verdade que o Facebook é o principal catalisador deste processo, a responsabilidade última impende sobre os utilizadores que adoptam a rede social como meio de acesso priviligiado a notícias e se submetem acriticamente aos seus processos de selecção automática.

Acompanhando o desvanecer da cultura blogue, muitos dos novos internautas deixaram de construir os seus próprios canais de recolha de informação através de feeds criteriosamente seleccionados, para passarem a ter nas plataformas pré-formatadas das redes sociais a sua principal experiência web. Ao fazê-lo, os utilizadores estão a abdicar da possibilidade de tornar a internet numa poderosa fonte de informação seleccionada e editada por si, para mergulharem num mundo caótico de sensacionais irrelevâncias e conteúdos pagos, sem critério e sem fim.

O resultado último é uma desqualificação da experiência pessoal, tornando a cultura web e o jornalismo refém das regras impostas por corporações privadas com os seus algoritmos e prioridades publicitárias.

Como quase tudo o que envolve a evolução da tecnologia o Facebook é uma plataforma com enorme potencial, tanto para o bem como para o mal. Cabe a cada um construir a sua rede de conteúdos ou ser vítima das regras impostas pela própria rede. No entanto, num mundo em que a internet será absolutamente intrusiva para as próximas gerações, parece estar ausente de qualquer discussão social a necessidade de uma educação para a vida online. Como tudo aquilo que evolui "por defeito", as tendências que estão já no terreno não permitem acalentar grandes esperanças.

Editorial: todos os clics são bons?



O formato blog, com as suas características próprias, partilha regras que se inscrevem na tradição mais longa de outras formas de comunicação escrita. Os seus conteúdos repartem-se, de modo geral, por entre três tipologias principais.

Podemos considerar, em primeiro lugar, a simples divulgação ou partilha de notícias tendo por base um comunicado ou uma fonte de informação, incluindo, por exemplo, uma outra página da internet. Este tipo de post corresponde àquela que foi uma das grandes funções iniciais dos blogues: a função de apontador de informação seleccionada “manualmente” pelo autor-blogger, antes da prevalência dos algoritmos automáticos de atribuição de importância com base nos likes, no número de comentários ou de partilhas de um link.

O post de divulgação mantém ainda hoje uma grande utilidade para os leitores dando a conhecer acontecimentos relevantes e os sítios onde estes poderão encontrar informações mais detalhadas. São também os conteúdos mais rápidos de produzir. No entanto, são posts que colhem, em geral, pouco tráfego, atraindo poucos comentários e poucas ligações subsequentes.

No extremo oposto da mera divulgação temos o texto de desenvolvimento ou mesmo o ensaio crítico. Trata-se de um conteúdo elaborado, com referenciação de múltiplas fontes, que contém trabalho de investigação e análise aprofundada dos temas. São certamente os textos mais recompensadores para quem lê mas consomem um tempo considerável de preparação. Por outro lado o esforço da escrita assertiva e equilibrada nem sempre é recompensado com um retorno visível da parte dos leitores.

Entre estes dois tipos de post temos aquele que é o conteúdo mais popular: o texto de opinião. Apesar de demorar um pouco mais tempo a compor do que a mera divulgação tem a vantagem de requerer uma única fonte – o próprio autor – e a sua capacidade de exprimir um ponto de vista com argumentos suficientes para ocupar o necessário volume de texto. Basta juntar um título apelativo e os clics começam a rolar.

O blogger responsável poderá sentir algum pudor na publicação de textos de opinião rápidos e irreflectidos. No entanto a experiência continuada mostra que, para obter sucesso na internet, não importa sequer se se tem razão nos argumentos. Na verdade, se o número de visualizações de um blogue é medida de sucesso, por vezes até pode ser preferível estar errado. Em especial se estiver em causa o retorno financeiro em função do tráfego online.

Qual julgam ser afinal o conteúdo mais popular: aquele texto reflectido, equilibrado, que abraça a complexidade de um determinado tema, ou o texto condescendente, unidimensional e até, talvez, factualmente incorrecto, mas capaz de deixar os leitores em brasa na caixa de comentários e nas redes sociais?

Para os contadores de páginas não há distinção entre clics bons e maus. Não há sistema que diferencie entre os leitores que partem felizes e os que voltam em estado de fúria. Na internet dos números o que importa é que os posts sejam visitados, gostados e partilhados. E para isso é preciso escolher um lado – e fazê-lo rápido.

Talvez para o autor de um blogue a decisão mais importante que terá de tomar reside no conteúdo e na forma da sua escrita, tendo em conta estes vários tipos de publicação. Para os que desejem aventurar-se no mundo mais denso das ideias a blogosfera irá revelar-se tantas vezes um aparente deserto, inóspito e inaudível. Em especial num país onde o mérito dos argumentos não tem correspondência com a sua qualidade objectiva mas com o prestígio das pessoas que os subscrevem. Ah, as massas da internet, sempre tão argumentativas, tão fáceis de caricaturar, tão fáceis de marginalizar, tão fáceis de ignorar.

Mas se não queremos fazer da internet um pântano de posts que “vos vão fazer chorar”, talvez valha a pena resistir nesse trilho mais solitário da escrita. Algures, afinal, estará alguém. A ler.

A história de Aaron Swartz



The Internet’s Own Boy é um documentário que dá a conhecer o percurso de vida de Aaron Swartz. De jovem prodígio da informática – com participação no desenvolvimento do protocolo RSS e na fundação da rede Reddit – a activista pela liberdade de acesso à informação na internet, tendo tido uma acção decisiva na campanha Stop Online Piracy Act.
Aaron Swartz foi alvo de um processo judicial por ter descarregado elevadas quantidades de informação da JSTOR, uma base de dados de trabalhos académicos de acesso pago. Apesar da desistência do processo por parte da JSTOR as autoridades federais americanas prosseguiram com a acusação, com uma condenação potencial de 35 anos de prisão e mais de 1 milhão de dólares de multa. A pressão colocada sobre Swartz levá-lo-ia ao suicídio em Janeiro de 2013.
O documentário sobre a sua vida é também um trabalho fundamental para compreender as tensões que pendem sobre a internet, entre a possibilidade de acesso ilimitado à informação e o seu condicionamento por corporações que dominam os principais veículos de navegação na rede. Legendas disponíveis em inglês e espanhol.

Lá em cima



A nave Rosetta vista do veículo auxiliar Philae pouco tempo depois da separação. Hoje, 12 de Novembro de 2014, às 16:04 GMT, o pequeno Philae aterrou no cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko. Imagem via European Space Agency.

Adenda: Eis a primeira fotografia captada pela sonda Philae depois de pousar na superfície do cometa 67P/C-G. Apesar das adversidades, o relato da missão continua empolgante.

Adenda (2): Após uma manobra de aterragem difícil, com três contactos distintos com a superfície, a Philae acabou por pousar numa zona irregular do cometa 67P. A insuficiente exposição ao Sol ditou a incapacidade de recarregar as baterias da pequena sonda. Os controladores da ESA viram-se assim na contingência de aproveitar as suas poucas horas de autonomia para levar a cabo diversas experiências, que foram bem sucedidas. Depois de enviar os dados recolhidos a Philae entrou em modo silencioso, situação que deverá perdurar muitos meses. Mantém-se a esperança que, no próximo Verão, a sonda receba luz solar suficiente para regressar à actividade. Ficam, por agora as magníficas imagens da paisagem alienígena do cometa, bem como uma reflexão no BLDGBLOG sobre o seu carácter bizarro e matematicamente complexo.

Momento geek



Em 1979 Ridley Scott revolucionou o cinema de ficção científica com a realização de Alien. O filme tornou-se uma referência de culto no género, em grande parte pela inovação conceptual e cenográfica que resultou da colaboração de artistas visionários como Ron Cobb e Chris Foss e, numa fase posterior, os míticos Moebius (Jean Giraud) e H. R. Giger.

Alien não seria o mesmo sem a colaboração do visionário Suiço que imprimiu aos seus estudos conceptuais a dimensão perturbante do hostil xenomorfo. Ridley Scott deve ao seu argumentista Dan O’Bannon a presença de Giger, por ter trazido até si o livro Necronomicon publicado pelo artista em 1977.
Foi também O’Bannon que referenciou os restantes artistas ao cineasta britânico. Da feliz colaboração de Ron Cobb e Chris Foss nasceria uma das mais icónicas naves espaciais da história do cinema: a célebre Nostromo.



O hiper-realismo aplicado por Stanley Kubrick à ficção científica uma década antes em 2001: Odisseia no Espaço tornara-se uma referência inescapável. Se até ali as naves espaciais pecavam pela falta de autenticidade, filmes como Silent Running (1972) e Dark Star (1974) procuravam já dar passos no sentido de exprimir uma funcionalidade aparente à sua dimensão cenográfica.
Seria no entanto Alien que ditaria, dali para a frente, as regras do que deveria ser uma nave espacial. Destacado para criar os interiores da Nostromo, Ron Cobb seria guiado pela sua procura obsessiva por um desenho fundado em ideias técnicas plausíveis no domínio da engenharia espacial. O design teria assim de servir a narrativa do argumento mas deveria de igual modo exprimir uma dimensão funcional credível, dentro das regras do seu universo ficcional.

A cenografia de Alien ficaria a cabo do director artístico Roger Christian. A partir das ideias de Dan O’Bannon e da arte conceptual de Ron Cobb, Christian deu forma aos interiores robustos e desgastados próprios de um cargueiro espacial de longo curso. Acima de tudo, a Nostromo deveria parecer usada e vivida, contrastando a brancura asséptica da ala médica e da câmara de híper-sono com a desarrumação da cantina e a sujidade das áreas técnicas do porão.



Trinta e cinco anos passados da estreia de Alien, um videojogo convida-nos a revisitar a sua atmosfera cenográfica com um detalhe sem precedentes. Alien: Isolation tomou como ponto de partida os desenhos conceptuais e os storyboards do filme para criar uma atmosfera rigorosamente fiel à da obra de Ridley Scott. A equipa de artistas de Isolation seguiu a sua visão futurista pré-digital, própria da ficção científica de finais da década de setenta, contando para tal com o acesso ilimitado a um avultado material de produção incluindo anotações de design e construção de adereços e cenários, fotografias e vídeos, bem como as gravações áudio de música e efeitos sonoros.
O resultado desse trabalho de investigação é verdadeiramente notável. Os espaços que servem de base à acção parecem extraídos das entranhas da Nostromo original, com alguns dos melhores ambientes de ficção científica alguma vez criados para um videojogo. Os corredores exibem uma robustez industrial, os gadgets são pesadamente mecânicos, os monitores são monocromáticos e apresentam gráficos ostensivamente arcaicos.



O aspecto mais interessante do jogo é revelar-se como um autêntico tributo ao talento visionário dos artistas de Alien. A sua expressão analógica demonstra resistir ao teste do tempo, parecendo adequar-se à natureza robusta e industrial própria de naves e estações espaciais criadas para durar muitas décadas no espaço longínquo.
Apesar da narrativa de Alien: Isolation ter lugar num cenário alternativo ao do filme – o porto espacial Sevastopol – os seus autores não quiseram deixar de homenagear os mestres por detrás da obra original oferecendo, como pequeno extra, uma viagem virtual à Nostromo, tal como foi imaginada e construída para o filme. Uma experiência obrigatória para todos os adeptos da sci-fi.


Vídeo: Other Places: USCSS Nostromo (Alien: Isolation) por Ultrabrilliant.

Simetria




Em cima, Boyhood, de 2014. Em baixo, Before Sunrise, de 1995. Dois filmes de Richard Linklater.

Às voltas no funil do amor



Este texto contém spoilers sobre o filme Only Lovers Left Alive de Jim Jarmusch.

Não será acidental o facto do sítio web oficial do filme Only Lovers Left Alive estar alojado no Tumblr, esse submundo alternativo de todos os nerdismos e fandoms da internet – entre os quais encontramos uma legião de adoradores de Tom Hiddleston, já designados no Urban Dictionary como Hiddlestoners. A opção assinala a dimensão desalinhada ou mesmo marginal da mais recente obra de Jim Jarmusch.

Talvez mais surpreendente seja reconhecer que Jarmusch, com o seu ar irreverente e eternamente jovem, é já um sexagenário; e no entanto o filme confirma-nos, passo a passo, a maturidade do seu autor. Only Lovers Left Alive declina vícios formais da pós-continuidade e outros compromissos rítmicos para entreter o espectador. Longe estamos dos Bayismos da indústria.
O filme é estilizado, planos calculados, tensos, com tempo para respirar. A influência underground é notória, com passagens hipnóticas, se não mesmo psicadélicas. Bem-vindos a um cinema orgulhosamente old-school.

Esta é a história de amor entre dois imortais. Adam e Eve são vampiros. Ela terá milhares de anos. Ele cerca de meio milénio. No presente ela vive em Tânger, ele na Detroit contemporânea. Não por acaso uma parte da história passa-se na colapsada cidade americana, representação de um mundo em declínio que é, ao mesmo tempo, abrigo de outras formas de vida.
Eve, protagonizada brilhantemente por Tilda Swinton, é uma personagem etérea e electrizante. Mas é Adam que merece maior fascínio. Um imortal deprimido, com pensamentos ocasionais de suicídio, que alimenta um olhar desiludido com o mundo dos homens. Refere-se à humanidade não-vampira como os “zombies”. No seu olhar somos nós os mortos-vivos, desesperados por sobreviver, incapazes de viver.

Adam é apaixonado pela cultura e pela música. Todo o seu modo de vida é uma colagem de retalhos de memória e de história. Compõe músicas vagamente hipnóticas, com instrumentos acústicos e velhos aparelhos electrónicos, que grava em fita analógica. A banda sonora reflecte o universo onírico da Detroit que Adam tanto gosta de atravessar pela noite dentro.
O mais interessante neste olhar negro e poético de Jim Jarmusch é oferecer-nos uma perspectiva sobre o tempo que paira sobre a regular experiência humana. Como veríamos o mundo se vivêssemos muitos séculos de vida? Como olharíamos então para as crises e os problemas da existência?

Só os amantes sobrevivem. Ou apenas os amantes são capazes de viver. Only Lovers Left Alive é, nas palavras do seu autor, uma meditação sobre a arte, a história, a memória, e os mistérios do amor imortal. A não perder.

Alguns dados para compreender a crise da construção em Portugal


Urban Development. Image credits: Thomas Dahlberg.

A partir da década de setenta do século passado o país conheceu um período de extraordinário crescimento do sector da construção que se traduziu na criação de mais de 800 mil fogos por década. Várias causas contribuíram para este fenómeno, tanto pela acção de agentes públicos como privados.

À escassez de oferta que resultou do período do Estado Novo seguiram-se políticas de apoio à edificação, directas e indirectas, pela promoção de habitação de custos controlados ou pela implementação de regimes de bonificação de acesso ao crédito.

Por outro lado, alterações estruturais do sistema bancário conduziram ao aumento do crédito disponível e ao abaixamento progressivo das taxas de juro, processo acentuado pela convergência das moedas nacionais no quadro da adesão ao Euro.



Imagem: Vítor Reis (IHRU), A reabilitação urbana e as mudanças que estão a ocorrer em Portugal (apresentação).

O efeito destes vários factores centrou-se essencialmente no mercado da venda, associado à obra nova. Não só o sector da reabilitação se manteve cronicamente abaixo da média europeia como os cidadãos foram incentivados à aquisição de imóvel, com a massificação do acesso ao crédito em regimes cada vez mais agressivos mesmo para famílias de menores rendimentos.

Este foi assim um ciclo em que o sector da construção repercutiu um peso excepcionalmente elevado para o produto interno, com o correspondente efeito redistributivo sobre indústrias produtivas que lhe são próximas e ainda sobre o emprego.



Imagem: Vítor Cóias (GECoRPA), Qualificação para a reabilitação (apresentação).

Ao contrário do que se possa pensar, a decadência da construção em Portugal começa a manifestar-se bem antes da denominada crise financeira de 2008. O número de fogos licenciados e concluídos em construções novas para habitação familiar começa a observar uma descida progressiva a partir de 2001. Esse fenómeno repercute também a perda de expressão do sector sobre o PIB, dado que se mantém até aos dias de hoje.

Sinal de que a banca portuguesa interiorizava já este processo era perceptível na implementação gradual de mecanismos versáteis de crédito: aumento de prazos de empréstimo no crédito-habitação, prorrogação parcial do crédito para o fim do empréstimo e produtos de crédito intercalar para troca de casa (permitindo adquirir casa nova e vender a antiga até o prazo máximo de três anos). Foram medidas que procuraram criar condições de sustentação do mercado num momento já frágil da nossa economia.


Imagem: Associação Lisbonense de Proprietários, Retrato da Habitação em Portugal, Características e Recomendações.

Pese embora todas estas medidas, a crise de 2008 veio estilhaçar a política bancária que serviu de motor a este ciclo extraordinário da construção civil em Portugal. Esta crise, que deflagrou nos Estados Unidos, teve subjacente a percepção de que o valor dos activos imobiliários que serviam de segurança ao crédito emitido pelas instituições bancárias – sobre a forma de hipoteca – se encontrava largamente sobrevalorizado.
A consciência dos elevados riscos associados, directa e indirectamente sobre um conjunto de derivados financeiros (e o pânico que se seguiu) traduziu-se na contracção do crédito para a habitação. Consequentemente o mercado viu-se incapaz de escoar a construção em curso, com a agravante de uma inundação secundária de mercado por produto resultante dos casos de incumprimento de pagamento de dívida por proprietários em dificuldades e, num segundo momento, pela própria banca.

Assistimos assim a um fenómeno internacional que tem subjacente uma desvalorização generalizada do parque imobiliário. Algumas vozes apontaram a necessidade de proceder a uma reavaliação dos activos que servem de segurança aos bancos, de modo a assegurar uma compreensão real do grau de solvabilidade do sistema bancário. Essas vozes, no entanto, cedo se calaram, certamente reflectindo a compreensão de que um tal processo tornaria claro o risco subjacente à nuvem de crédito criada em torno deste sector.

Explícita ou oculta, essa realidade não deixará de ser bem conhecida pelo sistema bancário. Para um país sufocado por uma violenta contracção do crédito disponível como o nosso esta circunstância é inescapável. O mercado da obra nova dificilmente conhecerá uma retoma próxima dos níveis de produção que viveu no passado. A crise da construção é estrutural.

Conscientes desta realidade, torna-se claro que o caminho a seguir deve orientar-se para o domínio da reabilitação onde, mesmo nestes anos de crise, se tem vindo a assistir a um crescimento consolidado. Esta via é no entanto dificultada por um conjunto de factores que importa confrontar.

O prédio jurídico vigente foi produzido no ciclo desta bolha imobiliária. O quadro legal foi estabelecido para o paradigma da obra nova. Pior, em muitos casos, as suas normas e regulamentos reflectem exigências que perderam de vista os parâmetros mínimos racionalmente exigíveis para passarem a impor critérios técnicos de duvidosa racionalidade. Os custos deste desajustamento, entre as normas, a boa arte e a própria capacidade económica do país, são inaceitáveis. Por outro lado, também a fileira de agentes intermédios, instituições certificadoras e custos impostos pelo Estado continuam a operar nos mesmos termos do passado.

Todos estes factores são inimigos da recuperação do sector da construção e particularmente pesados sobre esse domínio ainda mais frágil que é a reabilitação do parque antigo. Se o regime excepcional entretanto criado ao abrigo do Decreto-Lei n.º 53/2014 constitui uma forma de ganhar tempo, ainda que de âmbito parcial, importa levar a cabo uma profunda reforma do quadro normativo da edificação que tenha por base esta alteração do paradigma da construção.

Este processo moroso e difícil tem de ser conduzido de forma pública, aberta e participada, convocando o melhor dos saberes nas áreas do urbanismo, arquitecturas, engenharias e demais áreas envolvidas. É um processo para o qual todos os agentes têm de contribuir de forma colaborativa, sem que cada um se procure sobrepor aos outros – algo que parece distante da cultura institucional que vigorou no passado, traduzida na acção do Estado contra agentes privados e, tantas vezes, do Estado contra o próprio Estado.

A tarefa é enorme e convoca a todos. Certo é que, nesta como em outras áreas, o país não pode pagar o preço de nada fazer.

Lá em cima



Auto-retrato da nave Rosetta tirado a menos de dez milhas do cometa 67P/C-G. A 12 de Novembro o veículo auxiliar Philae irá separar-se da nave-mãe para deslocar-se até à sua superfície gelada. Via io9.

Cheias em Lisboa (2)

Vale a pena ouvir a entrevista do Eng. José Manuel Saldanha na SIC Notícias sobre as cheias que ocorrem em Lisboa quando coincidem períodos de grande precipitação com preia-mar de águas vivas. Parece certo que a solução passará sempre pela conjugação de diferentes medidas: a montante, como a criação de dispositivos de filtração passiva e bacias de retenção, e a jusante, com sistemas que evitem a obstrução da saída das redes e eventual recurso a bombagem dos grandes caudais nas alturas de maior descarga.

A implementação de um plano de drenagem será assim um encontro de medidas de menor e maior escala, todas elas difíceis por se tratar de um ambiente construído fortemente consolidado, mas que não podem deixar de ser assumidas. Reabilitação urbana é um conceito que deve ir muito para lá das acções cosméticas, com muito lajedo e marmoredo, que por vezes se fazem passar por urbanismo. Entregar um território tão sensível ao medo e à inquietação, sempre que a chuva cai, é convidar a população a abandonar aquela cidade. Para lá disso, nada fazer será ficar à espera de um episódio extremo que venha produzir estragos irremediáveis e, quem sabe, colher vidas. Ainda estamos a tempo de o evitar.

Cheias em Lisboa: um pouco mais de Engenharia, sff


Tideland (Partially Rainy). Image credits: Thomas Dahlberg.

Há qualquer coisa de estranho nesta dicotomia que se abate nos meios de comunicação quando se discute o fenómeno das cheias em Lisboa. Temos, por um lado, a explicação das causas na conjugação de níveis muito elevados de precipitação com o período de subida das marés. E temos, no lado oposto, aqueles que questionam a estrutura urbana com excessiva impermeabilização do solo e a ausência de medidas de retenção de águas de escorrência superficial.

A razão está dos dois lados. Mas entre o derrotismo de encolher os ombros perante as “causas naturais” e o desígnio de pôr a cidade toda em causa, por muito fundamentado que seja, haverá certamente um meio-termo. Não se podendo deitar Lisboa abaixo e fazê-la de novo para dar origem a um tecido urbano altamente eficaz no domínio do stormwater management e na implementação de sistemas passivos de filtração e drenagem (o que, apesar das dificuldades, também devia ser estudado), talvez fosse possível adoptar um pouco de incrementalismo.

Apesar das condicionantes que Lisboa nos coloca existem medidas que poderiam ser consideradas para reduzir os efeitos da maré alta no bloqueio, parcial ou total, dos colectores da zona baixa da cidade. Seria possível planear um sistema integrado de unidades de bombagem e descarga que evitasse o bloqueio das redes e permitisse assegurar uma capacidade de escoamento mais elevada nas alturas críticas, como as que se fizeram sentir neste e noutros anos?

Uma tal infraestrutura terá certamente custos elevados, não só pela dimensão como pelas contrariedades que se colocam nas intervenções junto à margem ribeirinha. E não deixará de ter impactos pontuais na frente de rio. Mas será preferível ficarmos à mercê dos elementos, com os prejuízos repetidos para os cidadãos, enquanto vamos dissertando sobre as disfunções urbanas da capital? É que perante esse facto consumado chamado “cidade de Lisboa” talvez fosse a hora de deixarmos de ouvir os políticos e os filósofos da urbanidade, para dar a vez a esses agentes menores do fazer urbano chamados "os técnicos" e trazer para a discussão a Engenharia, com “E” grande.

Adenda: Especialista explica o porquê de Lisboa ter as chamadas cheias rápidas, via SIC Notícias.

Dois filmes com James Gandolfini




Dois filmes para revisitar o talento de James Gandolfini. Podemos vê-lo em Enough Said, um dos seus últimos trabalhos, contracenando com Julia Louis-Dreyfus. A história de uma mulher e de um homem que se conhecem numa fase desencantada das suas vidas, num tempo em que não persistem muitas ilusões sobre o amor. É um filme que se balança no limiar da comédia-dramática, esse território por vezes difícil de definir, tão anti-romântico quanto genuíno, questionando as formas como construímos a nossa visão dos outros e o que nos faz, afinal, procurar alguém.
Um pouco mais antigo mas absolutamente imperdível é Welcome to the Rileys, uma produção independente que nos revela Gandolfini na sua melhor forma. Um grande exemplo de underacting em contraste com o histrionismo de Kristen Stewart, numa prestação também surpreendente. Por aquele confronto de gerações se vai erguer uma cumplicidade improvável, tecido de fundo para uma bela história sobre o que nos liga uns aos outros e até onde estamos dispostos a ir para salvar alguém. Duas oportunidades para redescobrir um grande actor.

Deixar-te ir



Deram as mãos no momento de dizer adeus, olharam-se nos olhos e, por um breve instante, passou entre eles o sopro de tudo aquilo que poderia ter sido…

Begin Again, de John Carney, com Keira Knightley e Mark Ruffalo. Num género saturado de lugares-comuns, eis um filme que nos fala de cumplicidade e paixão pela música. De antologia a sequência em que ele a vê pela primeira vez, tocando e cantando a solo no palco de um bar, e compõe, na sua cabeça, toda uma orquestração em torno da sua voz. Simplesmente mágico.

Instantâneo



Arte urbana de Banksy pintada na parede lateral de um edifício situado no distrito financeiro de Canary Wharf, em Londres, em Dezembro de 2011. Via Afroblush.

O lastro


Image credits: Michael Kerbow.

«Os bancos são, por excelência, os símbolos do capitalismo. A sua invenção foi um verdadeiro Ovo de Colombo: as pessoas depositam as suas economias numa instituição que põe esse dinheiro a circular e à custa disso obtém lucros, podendo pagar um juro ao depositante.»

Assim se descrevia num editorial publicado num jornal semanal português o modelo de funcionamento da banca. Pouco importa, para efeitos de reflexão, personalizar aquele ponto de vista; ele sintetiza, na sua ingenuidade, o entendimento que a maioria dos cidadãos tem sobre o que os bancos são e aquilo que fazem.

Este entendimento devia motivar-nos uma interrogação simples: se não conhecemos o mundo em que vivemos como poderemos extrair as conclusões certas sobre aquilo que nos rodeia? Se o diagnóstico está errado como poderemos alguma vez reconhecer a doença?

Não deixa de surpreender que aquela visão cândida, talvez aplicável aos idos de mil oitocentos, corresponda ainda hoje à convicção generalizadamente aceite pelos cidadãos sobre o que é o sistema bancário. Num mundo onde a informação se tornou tão rápida e acessível muitos desconhecem que mais de 90% do dinheiro existente nas economias desenvolvidas foi criado através da emissão de crédito por parte de instituições financeiras privadas. Desconhecem, afinal, que com mais ou menos regulação central, os bancos criam dinheiro do nada, electronicamente, sobre a forma de crédito, em valor muitas vezes superior às suas obrigações de solvabilidade, sejam depósitos ou outros activos reais.

A maior parte dos cidadãos desconhece afinal o que é o dinheiro. Ignora como ele se cria e se introduz na economia. Ignora que a emissão de crédito corresponde à criação de dinheiro novo (e não ao “empréstimo” de dinheiro já existente) e que o crédito aumentou geometricamente nas últimas quatro décadas em resultado da sucessiva desregulamentação do sistema bancário, naquela que constituiu uma trágica concessão de soberania financeira das nações. E, no entanto, é com base nessas pré-concepções erradas que as pessoas, todos os dias, formulam opinião e tomam partido sobre assuntos tão diversos como o resgate de uma instituição financeira privada ou a reestruturação da dívida pública.


O exemplo inglês; imagem via Positive Money.

A constatação desta realidade não traduz uma interpretação ideologicamente orientada, de esquerda ou de direita, sobre a realidade. Trata-se, tão só, de reconhecer os mecanismos financeiros em que assenta a sociedade em que vivemos, a partir dos quais não poderemos deixar de nos interrogar sobre o alcance e os impactos que tais mecanismos tiveram nas mais variadas áreas da nossa vida. Interrogar, por exemplo, o que significa saber que cerca de um terço desse volume de endividamento está associado a crédito concedido no sector da construção. Que implicações urbanas e arquitectónicas serão resultado da tradução de instrumentos financeiros dirigidos à aquisição de imobiliário? De que forma transformou isto as nossas expectativas de vida relativas a tipologias de habitação, a comodidades, a concepções culturais e, por fim, as nossas próprias cidades?

Importa não esquecer que para muitos de nós este é o único mundo que alguma vez conhecemos. Uma parte importante da nossa cultura, do nosso saber, do nosso modo de vida, nasceu daquilo que parece estar a revelar-se um trágico processo de boom and bust; um sistema estruturalmente distorcido que favoreceu um agente específico da economia e que continua a gerar uma desigualdade sem paralelo na história das democracias.

À medida que vamos sendo confrontados com as limitações deste modelo de crescimento e os sinais de uma profunda e terrivelmente incerta transformação parecem configurar-se no horizonte, talvez devêssemos reconsiderar toda a fundação de noções, ideias e convicções que sustentaram a nossa visão do passado. Esta não deixará de ser, afinal, uma das grandes questões políticas do nosso tempo.

Ficam algumas ligações úteis para aqueles que queiram aprofundar o seu conhecimento sobre este tema: o documentário Four Horsemen (via Renegade Economist); o vídeo In Conversation With Ann Pettifor (mais aqui); o documentário 97% Owned, com a colaboração de Ben Dyson, promotor da campanha inglesa Positive Money; o vídeo Wealth Inequality in America.

À espera que o longo prazo nos caia em cima

Image credits: Matias Santa Maria.

Daqui a uma década teremos uma geração, agora na casa dos vinte anos de idade, a meio dos trinta e rapidamente a caminho dos quarenta, confrontando-se com o facto de que a vida lhe passou ao lado. Muitos destes portugueses nunca terão conhecido um emprego estável, transitando entre estágios pouco relevantes e contratos precários, remunerações baixas e uma perspectiva de futuro esvaída de qualquer previsibilidade.

Que cultura social será produto desta realidade? De que forma encarará esta geração conceitos como paternidade ou solidariedade inter-geracional? E em que ideologias e actores políticos se irá rever esta nova geração de portugueses? Como se transformará então o sistema político?

Este não é um problema do médio ou do longo prazo. Este possível futuro resultará de factores que estão já em efeito no nosso presente. Fragilização das regras laborais. Redução do rendimento do trabalho. Desemprego. Emigração. Baixa natalidade. Perante este quadro, esta conjugação perigosa de variáveis, dificilmente podemos ignorar que estamos perante um dos principais problemas que a nossa democracia alguma vez enfrentou.

No entanto o debate corrente sobre a situação portuguesa é trazido quase todos os dias para uma discussão pedestre, do curto prazo. Desprezando uma observação ampla dos problemas somos entretidos com o desfile selectivo de índices parcelares, variações homólogas, dados que permitem extrair todas as conclusões possíveis.

Pior ainda quando as teses de políticos e comentadores são apresentadas com formato aparentemente científico, como se de verdades indiscutíveis se tratassem. Disso exemplo é o discurso da inevitabilidade promovido por governantes e sustentado por alguns especialistas da área do jornalismo económico. Uma verdade é tão mais científica quanto mais vasto for o conjunto das variáveis consideradas. Quando essa verdade se formula a partir da observação selectiva de meia dúzia de variáveis mais não é do que uma refinada mentira, por mais académico-científica que seja a sua formulação retórica; sendo certo que a melhor mentira é aquela que contém o máximo de verdade possível nos argumentos que a sustentam.

Circunstância contraditória ao ouvirmos abordar temas de médio e longo prazo, como o debate recente sobre natalidade, como logo se levantam ideias políticas diametralmente opostas daquelas que nos têm sido impostas nos últimos anos como sendo inevitáveis. Em boa verdade o discurso da inevitabilidade não parece ter já outro alcance que não o desejo de manter a opinião pública num patamar pedestre de pensamento, junto ao chão, sem vislumbre do horizonte. Não se trata de ignorar a importância de questões tão sérias como o rigor na gestão das contas públicas e na aplicação dos dinheiros do Estado. Trata-se apenas de reconhecer que, perante a gravidade histórica que nos apresenta a prospectiva do futuro próximo, saber se vamos cumprir a meta do défice deste ano é o menor dos nossos problemas.

Km0



Ciclovia de Lisboa por João Gomes da Silva, Global Arquitectura Paisagista. Via Pinterest.

Eu hoje acordei assim



Obrigado e bom dia.

Dinamite cerebral



Four Horsemen, um documentário sobre a distorção do sistema financeiro contemporâneo e as suas ramificações sociais e políticas à escala global. Tão perturbador quanto obrigatório. Legendas disponíveis em português. Via Renegade Economist.

Mujer de mano de Leonardo Abince



A famosa cópia da Mona Lisa que existe no Museu do Prado, que se pensa ter sido desenhada por um dos pupilos do próprio Leonardo da Vinci, foi restaurada há cerca de dois anos. Análises efectuadas nessa altura por radiografia e infra-vermelhos permitiram concluir que a obra havia sido repintada em data posterior a 1750. Foi possível revelar que, oculto sob o fundo pintado de preto, se conservava ainda a paisagem envolvente inicial em bom estado. Apesar de persistirem receios em relação a limpar a frágil Mona Lisa original, o restauro da cópia do Prado permite conhecer a natureza vibrante da luz e das cores da obra-prima de da Vinci e imaginar quantos detalhes poderão estar escondidos debaixo da sua superfície enegrecida pelo tempo.

Facebook redesign: the most important change that nobody noticed


Is the Facebook trending algorithm ruling your social web experience?

Blogs are dead, Facebook is dying, and the machines are taking over. That seemed to be a popular theory just a few months ago. Now, maybe these ill-fated feelings resonate with the idea strongly rooted in western culture that if something isn’t growing, it’s necessarily dying. But it does raise interesting points for debate.

As Jason Kottke stated in a later post, blogs aren’t really dying. They have, however, lost their former relevance as content providers for news pages and feed aggregators. Blogging has become an enclosed ecosystem, operating internally within its own sphere. More importantly, the blog format, the iconic reverse-chronological stream that became an almost universal reference of web-page design, is being replaced by automatic trending algorithms.

Pages like Facebook, Twitter, Pinterest, use complex algorithms to determine what topics are trending in the moment. That means that posts, or entries, are attributed a degree of importance that is determined automatically, based on the number of “likes”, “comments” and “shares” that they receive.

The problem is that things may not be as transparent as they seem. In the case of Facebook, trending has been the default visualization mode for some time now. The option to view entries in chronological order was available at the top of the news feed, making it plainly visible. However, it didn’t seem to memorize your preference. Once you logged back in, it reverted to Facebook’s default option.

The recent redesign brought by Facebook introduced a curious subtlety. This option is still reasonably accessible, but it is hidden in the news feed button, making it less obvious for many users. Also, once you choose the chronological option, a message appears at the top of the stream, and stays there, advising you to go back to what it considers “the most important” posts.

What does this mean? It means that Facebook is subtly imposing its trending algorithm on you. This is a profound transformation of the way we’ve been accessing information on the internet. It values what is most popular, but disregards the uniqueness of what is special. As a consequence, you will not see many of the things that are being posted by your friends or the pages you follow. And it gets worse. Facebook’s monetization system allows pages to pay small fees to promote their posts and access a wider range of users. As expected, paid posts will be valued preferentially by its algorithm. Veritasium has an interesting analysis of this problem.



Because most people tend to use Facebook’s default visualization option, it allows Facebook to manipulate its criteria of relevance to leverage its business model. It seems to do so by imposing a curious mechanism: as a page grows in followers, its posts seem to reach less and less users, in relative terms, “inviting” page owners to promote their posts, paying Facebook’s fees. Such system, of course, wouldn’t work if every user chose the reverse-chronological visualization option.

Which raises a fundamental question: should we allow trending algorithms to determine the way we access information online and ultimately rule our internet experience?

Momento geek



Kerrie Neilen’s Post-it Note Mural at the Art, Not Apart street art festival in Canberra, 2014. Via Geek Art.

Ar-cat-ectural digest



It is my firm belief that thousands of years of architectural history have been leading us to this very moment. Indeed, one day, all buildings will look like cats. More images of this pretty looking school can be found here. ‘Tis glorious…

Serviço público



Um post do tipo "fui eu que inventei isto". Não liguem...

Liberty City Noire






Grand Theft Auto IV Walkabout Series is a visual essay by Duncan Harris.

Dead End Thrills is considered the bible of the trade when it comes to the art of screenshot capture. Its author, British gaming journalist Duncan Harris, is regarded as one of the most brilliant video game photographers in the world. He has been capturing the beauty of virtual landscapes for several years using advanced modding techniques and customized image filters.
Grand Theft Auto IV Walkabout Series is one of his latest visual essays, a black-and-white incursion through the game’s iconic Liberty City. The strong emphasis on eye-level perspective and low camera angles accentuates the sharp realism of the pictures, reflecting an aesthetic proximity to the images usually seen in movie stills. Make sure to visit his website to see the full gallery.