Image credits: John Brosio. |
Quando urbanistas e arquitectos se debruçam sobre as dinâmicas da cidade contemporânea, no contexto das sociedades organizadas, tendem a ignorar o problema da cidade na sua dimensão financeira. Está em causa, muito concretamente, a desconsideração dos processos de produção de cidade enquanto materialização de instrumentos financeiros e, em particular, a dimensão que este processo teve no conjunto da política monetária levada a cabo pelas instituições bancárias nas últimas décadas.
Ao fazê-lo, urbanistas e arquitectos estão a debater fenómenos muito importantes como, por exemplo, a expansão urbanística, os movimentos pendulares e os seus efeitos sociais ou ambientais, muito a jusante dos factores que lhes estão na origem.
Temos assim que a nossa cultura teórica e profissional conduz-nos muitas vezes para a abordagem dos problemas na sua dimensão material, do mundo construído e das suas repercussões objectivas – ao nível da ocupação humana e das suas dinâmicas sociológicas, ou, por exemplo, dos transportes, das infra-estruturas, da gestão do património edificado. E acabamos por ignorar que fenómenos cruciais como a suburbanização das cidades foram, em primeiro lugar, o resultado da tradução em obra física de veículos de investimento financeiro.
Olhando para a vasta mancha urbana anónima e tantas vezes desqualificada que caracteriza esses subúrbios, sobre esta perspectiva, temos agora de nos interrogar quanto àquilo que ela efectivamente representa. Tendo presente princípios de reflexão estritamente urbanística e arquitectónica, estes territórios construídos representam o falhanço do planeamento perante a voragem do sector da construção civil e do imobiliário.
Correspondem, de alguma forma, a uma certa falência da capacidade de actuação do poder público, no domínio do urbanismo, sobre a actuação descontrolada do mercado.
No entanto, considerados enquanto manifestações de instrumentos financeiros, essa mesma cidade constitui um exemplo de optimização eficaz do objecto da construção tendo em vista o máximo retorno financeiro a partir do menor investimento possível. Assim se traduz essa cidade em áreas de máxima densidade de ocupação, menor infraestrutura pública e reduzida qualidade arquitectónica.
O resultado é um ambiente construído altamente ineficaz ao nível do conforto humano, da gestão ambiental e energética, dos fluxos de mobilidade e demais implicações urbanas. Pior, é não só um modelo de criação de cidade que permite ao agente privado extrair o máximo rendimento possível como implica uma posterior acção pública a diversos níveis – desde a necessidade de reforço de infraestruturas de transportes para viabilizar a deslocação pendular massiva dos habitantes, ao investimento na dotação de espaços públicos e equipamentos que assegurem a sua qualidade de vida – de que decorrem custos colectivos, e ainda os prejuízos de longo prazo de um modelo de ocupação ineficaz ao nível energético, com pesados consumos rodoviários e tempos dispendidos.
Ao termos presente que nas sociedades organizadas o volume de dinheiro (money stock) introduzido na economia sobre a forma de crédito por parte da banca privada, dirigido ao sector da construção, ascende a valores da ordem de um terço da quantidade total de moeda disponível, podemos compreender a dimensão deste fenómeno no conjunto da nossa vida económica.
O processo a que assistimos nas últimas quatro décadas não tem paralelo na história mundial. Se é certo que dele decorreu o sobreaquecimento da economia que assegurou, no curto prazo, uma melhoria generalizada da qualidade de vida, é também verdade que a herança que fica dos custos desta realidade e o peso que dela decorre no endividamento colectivo dos cidadãos será difícil de sustentar no futuro.
Decorre assim para urbanistas e arquitectos que queiram participar no fazer e gerir da cidade que não basta já reflectir sobre soluções inovadoras de urbanismo no sentido estrito, com ilusões irreverentes quanto ao poder do desenho, tornando-se necessário reflectir sobre os próprios mecanismos financeiros que estão na base da sua operacionalização. Se não o fizermos estaremos a actuar sobre um terreno comprometido à partida com decisões tomadas nos gabinetes de instituições financeiras para quem a cidade é, em primeiro lugar, um veículo para a obtenção de lucro, e de forma muito secundária, um território material onde vivem pessoas.
Tenho vindo a reflectir sobre exactamente isto. Deve ser da idade, digo eu, e da necessidade muito URGENTE de nos darmos ao trabalho de efectivamente mudar alguma coisa. E se a construção está lá, o Arquitecto tem de focar a sua acção sobre o que está e não refugiar-se em modelos 3D de cidades fora desta realidade. Se queremos mesmo ter um papel respeitado, porque operacional, no nosso país a nossa acção tem de assumir-se publicamente. Estou convencida (e sei que muitos da "nossa" geração também) que o(a) Arquitecto(a) tem um papel fundamental a desempenhar na organização e formulação de modelos para um futuro imediato, cho que podemos de facto contribuir dessa forma, assim queiramos debater esta vocação (que poderá ser considerada política mas que essencialmente é humanista)que é essencial para recuperar e refundar as cidades.
ResponderEliminarTemos a capacidade de gerir e relacionar conhecimentos vários e esta curiosidade inata de querer conhecer - seria bom usarmos uma plataforma nacional, longe de especulações e interesses externos para discutirmos como podemos contribuir na prática para a reformulação dos sistemas que existem. temos já a experiência do que pode ser a "qualidade de vida", do caminho a que nos conduz o individualismo artístico, as acções pangletárias e os projectos megalómanos. Podemos e devemos (mais vale tarde que nunca)esquissar em jeito de "ideologia urbana" (engraçado que googlei esta expressão e fui dar a um texto teu de 2005)aquilo que podemos fazer para mudar os m2 que influenciamos à nossa volta. Tem de haver um debate muito sério sobre o que se faz na actividade privada e o que se anda a fazer nos organismos públicos....enfim...mais uma vez obrigada pelo texto.
Olá Marta. Fizeste-me ir em busca desse texto bem antigo de que já nem me lembrava. Obrigado pelo comentário.
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