Alguns dados para compreender a crise da construção em Portugal


Urban Development. Image credits: Thomas Dahlberg.

A partir da década de setenta do século passado o país conheceu um período de extraordinário crescimento do sector da construção que se traduziu na criação de mais de 800 mil fogos por década. Várias causas contribuíram para este fenómeno, tanto pela acção de agentes públicos como privados.

À escassez de oferta que resultou do período do Estado Novo seguiram-se políticas de apoio à edificação, directas e indirectas, pela promoção de habitação de custos controlados ou pela implementação de regimes de bonificação de acesso ao crédito.

Por outro lado, alterações estruturais do sistema bancário conduziram ao aumento do crédito disponível e ao abaixamento progressivo das taxas de juro, processo acentuado pela convergência das moedas nacionais no quadro da adesão ao Euro.



Imagem: Vítor Reis (IHRU), A reabilitação urbana e as mudanças que estão a ocorrer em Portugal (apresentação).

O efeito destes vários factores centrou-se essencialmente no mercado da venda, associado à obra nova. Não só o sector da reabilitação se manteve cronicamente abaixo da média europeia como os cidadãos foram incentivados à aquisição de imóvel, com a massificação do acesso ao crédito em regimes cada vez mais agressivos mesmo para famílias de menores rendimentos.

Este foi assim um ciclo em que o sector da construção repercutiu um peso excepcionalmente elevado para o produto interno, com o correspondente efeito redistributivo sobre indústrias produtivas que lhe são próximas e ainda sobre o emprego.



Imagem: Vítor Cóias (GECoRPA), Qualificação para a reabilitação (apresentação).

Ao contrário do que se possa pensar, a decadência da construção em Portugal começa a manifestar-se bem antes da denominada crise financeira de 2008. O número de fogos licenciados e concluídos em construções novas para habitação familiar começa a observar uma descida progressiva a partir de 2001. Esse fenómeno repercute também a perda de expressão do sector sobre o PIB, dado que se mantém até aos dias de hoje.

Sinal de que a banca portuguesa interiorizava já este processo era perceptível na implementação gradual de mecanismos versáteis de crédito: aumento de prazos de empréstimo no crédito-habitação, prorrogação parcial do crédito para o fim do empréstimo e produtos de crédito intercalar para troca de casa (permitindo adquirir casa nova e vender a antiga até o prazo máximo de três anos). Foram medidas que procuraram criar condições de sustentação do mercado num momento já frágil da nossa economia.


Imagem: Associação Lisbonense de Proprietários, Retrato da Habitação em Portugal, Características e Recomendações.

Pese embora todas estas medidas, a crise de 2008 veio estilhaçar a política bancária que serviu de motor a este ciclo extraordinário da construção civil em Portugal. Esta crise, que deflagrou nos Estados Unidos, teve subjacente a percepção de que o valor dos activos imobiliários que serviam de segurança ao crédito emitido pelas instituições bancárias – sobre a forma de hipoteca – se encontrava largamente sobrevalorizado.
A consciência dos elevados riscos associados, directa e indirectamente sobre um conjunto de derivados financeiros (e o pânico que se seguiu) traduziu-se na contracção do crédito para a habitação. Consequentemente o mercado viu-se incapaz de escoar a construção em curso, com a agravante de uma inundação secundária de mercado por produto resultante dos casos de incumprimento de pagamento de dívida por proprietários em dificuldades e, num segundo momento, pela própria banca.

Assistimos assim a um fenómeno internacional que tem subjacente uma desvalorização generalizada do parque imobiliário. Algumas vozes apontaram a necessidade de proceder a uma reavaliação dos activos que servem de segurança aos bancos, de modo a assegurar uma compreensão real do grau de solvabilidade do sistema bancário. Essas vozes, no entanto, cedo se calaram, certamente reflectindo a compreensão de que um tal processo tornaria claro o risco subjacente à nuvem de crédito criada em torno deste sector.

Explícita ou oculta, essa realidade não deixará de ser bem conhecida pelo sistema bancário. Para um país sufocado por uma violenta contracção do crédito disponível como o nosso esta circunstância é inescapável. O mercado da obra nova dificilmente conhecerá uma retoma próxima dos níveis de produção que viveu no passado. A crise da construção é estrutural.

Conscientes desta realidade, torna-se claro que o caminho a seguir deve orientar-se para o domínio da reabilitação onde, mesmo nestes anos de crise, se tem vindo a assistir a um crescimento consolidado. Esta via é no entanto dificultada por um conjunto de factores que importa confrontar.

O prédio jurídico vigente foi produzido no ciclo desta bolha imobiliária. O quadro legal foi estabelecido para o paradigma da obra nova. Pior, em muitos casos, as suas normas e regulamentos reflectem exigências que perderam de vista os parâmetros mínimos racionalmente exigíveis para passarem a impor critérios técnicos de duvidosa racionalidade. Os custos deste desajustamento, entre as normas, a boa arte e a própria capacidade económica do país, são inaceitáveis. Por outro lado, também a fileira de agentes intermédios, instituições certificadoras e custos impostos pelo Estado continuam a operar nos mesmos termos do passado.

Todos estes factores são inimigos da recuperação do sector da construção e particularmente pesados sobre esse domínio ainda mais frágil que é a reabilitação do parque antigo. Se o regime excepcional entretanto criado ao abrigo do Decreto-Lei n.º 53/2014 constitui uma forma de ganhar tempo, ainda que de âmbito parcial, importa levar a cabo uma profunda reforma do quadro normativo da edificação que tenha por base esta alteração do paradigma da construção.

Este processo moroso e difícil tem de ser conduzido de forma pública, aberta e participada, convocando o melhor dos saberes nas áreas do urbanismo, arquitecturas, engenharias e demais áreas envolvidas. É um processo para o qual todos os agentes têm de contribuir de forma colaborativa, sem que cada um se procure sobrepor aos outros – algo que parece distante da cultura institucional que vigorou no passado, traduzida na acção do Estado contra agentes privados e, tantas vezes, do Estado contra o próprio Estado.

A tarefa é enorme e convoca a todos. Certo é que, nesta como em outras áreas, o país não pode pagar o preço de nada fazer.

2 comentários:

  1. Considero a abordagem apresentada de enorme interesse e relevância. Deveria ser apresentada e discutida internamente, nas ordens profissionais, e apresentada aos partidos políticos de acento parlamentar.
    Luís Cardoso

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  2. Concordo com o comentário.

    Esta análise individual é, em qualidade e quantidade de dados analisados, muito superior à que os partidos políticos, comissões e ministérios fazem.

    Infelizmente, isto aplica-se aqui ao setor de contrução, mas é uma realidade recorrente a que assistimos.

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