Muito mais do que matar pixéis
De que falamos quando falamos de violência nos videojogos? Dos actos explícitos que podemos testemunhar ou praticar na realidade do mundo virtual ou do que está para lá da superfície pixelizada do ecrã? Falamos, afinal, daquilo que vemos ou daquilo que sentimos?
Invariavelmente quando se discute violência nos jogos de vídeo encontramos um debate centrado na dimensão explícita da violência – chamemos-lhe, para efeitos desta reflexão, de violência descritiva. Trata-se de um tipo de violência que é recorrentemente minimizada pela comunidade de jogadores. Importa no entanto interrogarmo-nos sobre a relevância do acto de agredir ou matar NPC’s – non-player characters – num universo de pura fantasia. Afinal, é apenas um jogo. Ou será?
Dizer que a violência nos jogos de vídeo se resume a uma questão de píxeis é o mesmo que dizer que um filme é apenas uma projecção de luz num ecrã ou que um livro não passa de tinta sobre uma folha de papel. Um videojogo, tal como um filme ou um livro, é um artefacto cultural. Estabelecemos inevitavelmente relações cognitivas e afectivas com os seus universos ficcionais. Eles ajudam-nos a questionar o nosso entendimento do mundo e a experimentar possibilidades que transcendem o plano corrente da vida. Por isso a violência tem uma dimensão cultural que não podemos ignorar.
Devemos também ter presente que os jogos de vídeo não se reduzem a entretenimento infantil. Eles compreendem obras de uma enorme diversidade temática, dirigidos às mais variadas faixas etárias e sujeitos a regras convencionadas de catalogação de conteúdos. Se um pai não compraria filmes como Fight Club, A Laranja Mecânica ou O Exorcista para o seu filho pré-adolescente, por que motivo acharemos aceitável que o faça com títulos como GTA, Gears of War ou Mortal Combat, todos eles classificados como destinando-se a um público com mais de 18 anos?
Como refere Nelson Zagalo, professor de media interactiva na Universidade do Minho, num recente artigo publicado na IGN Portugal, diversos jogos vêm explorando a violência descritiva como forma de potenciar o seu alcance mediático e o seu sucesso comercial. Veja-se o caso recente de Hatred, na senda de títulos como Postal, Carmageddon ou Gamehunt. São títulos que se reduzem tantas vezes a epifenómenos dirigidos a uma faixa etária susceptível de ser seduzida por aquilo que lhe é proibido. Assim, tal como sucede em relação aos filmes e aos livros, também nos videojogos é fundamental que os pais estejam informados sobre os produtos que os seus filhos consomem. Mais do que proibir importa conhecer, acompanhar e dialogar acerca das experiências que os rodeiam.
A proibição dos jogos violentos é uma questão sempre controversa, pelo balanço inevitável entre a legitimidade da censura e o respeito pela liberdade de expressão. Mas não devemos deixar de ter em conta que a liberdade de expressão não é um valor absoluto; por exemplo no que toca ao incitamento ao ódio e à violência contra grupos de pessoas, sejam mulheres, homossexuais, imigrantes, cidadãos de outras etnias ou diferentes credos religiosos.
O caso torna-se mais complexo quando a violência ocorre no espaço de liberdade de decisão do jogador. Tomemos como exemplo o polémico Grand Theft Auto V, um jogo que nos apresenta um mundo aberto para explorar e experimentar de inúmeras formas. Nele o jogador é livre para conduzir automóveis, participar em corridas, subir montanhas, percorrer trilhos de bicicleta, descobrir objectos escondidos, ir ao cinema, assistir a espectáculos ocasionais de stand-up comedy, comprar roupas e casas para as suas personagens virtuais, entre tantas outras actividades.
Importa ter presente que GTA V (tal como os anteriores títulos desta série) é um jogo com uma história carregada de crítica e comentário social. No entanto, focando-se nas desventuras de três personagens cuja vida tem lugar no submundo do crime, a violência é um tema que lhe está sempre presente. Oferecendo total liberdade ao jogador este é livre para roubar carros, destruir edifícios, agredir e matar, de forma gratuita, NPC’s, sejam eles polícias ou habitantes anónimos daquela cidade virtual.
Diga-se em abono de GTA que nada na mecânica do jogo incita objectivamente aos actos de violência urbana caótica contra NPC’s que tantas vezes encontramos no YouTube e que servem de crítica nos media generalistas contra os videojogos. Nada na história do jogo motiva violência – virtual, entenda-se – contra civis inocentes. Pelo contrário, a mecânica do jogo contraria esse tipo de actuação, atribuindo ao jogador níveis crescentes de criminalidade que têm como retorno a perseguição por forças policiais cada vez mais agressivas e, por fim, o próprio exército, ditando a morte do jogador em poucos minutos. Game over.
Ainda assim é indiscutível que a violência explícita faz parte do tecido do jogo e da sua repercussão promocional, bem como a sua permissividade no campo sexual. Em GTA, o jogador é livre para visitar bares nocturnos, assistir a shows eróticos e até contratar prostitutas de rua.
A propósito do lançamento da nova versão remasterizada do jogo o site Polygon deu a conhecer um vídeo extraído da internet em que um jogador praticava sexo – uma breve animação não explícita, mas bastante implícita – com uma prostituta. No final o jogador saiu do carro, pegou numa arma e matou a personagem virtual. E um comentador deixou uma curiosa mensagem: “à boa maneira de GTA ele mata a prostituta no fim”.
Em boa verdade não há nada em GTA V que nos diga que o jogador deve contratar prostitutas. Não há nenhum prémio em fazê-lo. E não existe, na mecânica do próprio jogo, nenhum incentivo a matar prostitutas virtuais. No entanto isso parece ter-se tornado numa espécie de subcultura para alguns jogadores, em número suficiente para ter expressão “cultural” - o que se traduz naquele comentário na Polygon e em inúmeros vídeos que podemos encontrar no YouTube.
Ora se o jogo não promove esses actos de violência porque é que eles acontecem e são tão expressivos na internet e nos media? Como será fácil de presumir a questão não é inocente. A presença daqueles conteúdos no mundo do jogo é uma decisão premeditada da sua produtora – ela própria os subtraiu, afinal, de títulos como LA Noire e Red Dead Redemption. A verdade é que eles definem a conformação das personagens principais, pelos jogadores, no seu espaço de acção. Eles estão lá para serem testados e jogados, tornando-se parte da textura experiencial daquele universo, da sua expressão cultural e, inevitavelmente, da sua repercussão mediática.
Importa igualmente aprofundar a dimensão subjectiva da violência nos videojogos. Considerada no plano meramente descritivo GTA será um dos jogos mais violentos que existem. Mas tendo presente o segundo plano, muito mais ignorado, outros títulos parecem ganhar maior relevância. A hiperviolência de GTA ocorre num território de natureza fortemente caricatural. Comparativamente o mundo claustrofóbico e psicologicamente opressivo de BioShock afigura-se-nos como dotado de uma experiência muito mais impactante. O mesmo poderá dizer-se de inúmeros first-person shooters, jogos de guerra e de acção, tantas vezes dominados pela componente online de natureza potencialmente aditiva.
A dimensão psicológica da violência, ao contrário da sua vertente meramente explícita, é um factor que tende a ser esquecido mas que detém enorme alcance na experiência vivida pelo jogador. A este propósito, Danny O'Dwyer, editor da Gamespot, elaborou uma interessante reflexão a respeito da introdução da perspectiva na primeira pessoa na versão remasterizada de GTA V – ver GTA Violence: A Matter of Perspective. Também aqui a presença da componente subjectiva introduz uma dimensão visceral em que a violência parece alcançar todo um outro sentido dramático.
À medida que os videojogos vão assumindo um crescente híper-realismo o debate sobre a violência não poderá deixar de compreender a dimensão ética da sua experiência, aos seus múltiplos níveis. Eminentemente gratuita ou intrinsecamente embebida no tecido da ficção a violência nos meios de expressão narrativa encerra uma dimensão cultural que não pode nunca ser ignorada. Não se trata por isso de matar pixéis mas de ter presente que os gestos que praticamos, no plano do real ou em mundos simulados, reflectem sempre, e inevitavelmente, aquilo que somos e aquilo que nos fazemos ser.
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Daniel,
ResponderEliminarJulgo que a subjetividade inerente a qualquer apreciação a este tipo de conteúdos estará sempre presente. Independentemente das técnicas de marketing usadas por cada título, concordo que as restrições etárias devem ser claras e não subestimadas. Infelizmente as conclusões a tirar são escassas pois, como o Daniel referiu, é dificil distinguir a violência gratuita da atmosfera cultural ou mesmo da criação de uma carga indispensável á gênese de um jogo.
Olá Márcio, obrigado pelo comentário.
ResponderEliminarNão sei se ficaram completamente claras as conclusões deste texto e aproveito a oportunidade para acrescentar algo mais.
O primeiro ponto é referir que a violência nos videojogos é um tema (culturalmente) relevante, equiparável à violência em qualquer outro meio de expressão narrativa. Isto não pressupõe nenhum moralismo. Não se trata de dizer que a violência é boa ou má, defensável ou censurável. Apenas de dizer que tem importância e que deve ser sempre debatida.
O segundo aspecto é referir que analisar a violência nos videojogos requer analisar também os vários planos dessa violência. Se existem videojogos que são objectivamente violentos ou que requerem a prática da violência como parte intrínseca da jogabilidade (por exemplo, um "corridor-shooter" de tipo linear) existem jogos em que a violência ocorre no espaço de decisão do jogador.
O caso do GTA é por isso importante. É verdade que o sucesso de GTA vive da projecção mediática da violência e da controvérsia. Mas também é verdade que, em grande medida, o que GTA faz é oferecer ao jogador um enorme espaço de liberdade. Em sentido figurado (mas também literal) o que GTA faz é colocar uma arma na mão do jogador sem lhe dizer necessariamente como a utilizar nesse espaço de liberdade. Por isso a violência de GTA é interessante e complexa: porque ela diz-nos tanto sobre o jogo como nos diz algo sobre aqueles que o jogam.
Há alguns meses saiu um artigo muito interessante na EDGE sobre o jogo multiplayer DayZ. O artigo referia como naquele espaço de liberdade de actuação - um território ficcional devastado por um apocalipse zombie - os jogadores assumiam comportamentos brutais uns para com os outros na luta pelos escassos recursos disponíveis para sobreviver. Ou seja, o jogo revela-se como que uma experiência social em que muitos comportamentos observáveis são espontâneos e voluntários da parte de quem nele participa. Por que motivo os jogadores não optam por comportamentos mais cooperantes e assumem antes organizações tribais, espírito de facção, completa crueldade para com os jogadores mais inexperientes, etc?
O terceiro e último aspecto é referir que há um plano adicional da violência que vai para lá do que é explícito, antes se manifesta na percepção da experiência do jogo. Não mencionei The Last of Us mas ilustrei o texto com duas imagens do jogo. É um exemplo em que a violência não é apenas gráfica mas faz parte da sua textura emocional. da eficácia na apresentação e no desenvolvimento das suas personagens e da sua relação com aquele mundo ficcional. É também um exemplo onde a violência tem uma dimensão narrativa que dificilmente pode ser posta em causa. E acima de tudo onde os momentos mais violentos não são os momentos de violência gráfica explícita mas antes de violência psicológica da narrativa.
Em todos estes casos está em causa muito mais do que apenas pixéis.
Abraço.