[esta terra mal amada - 2]

Sexta-feira

The first principle is that you must not fool yourself - and you are the easiest person to fool.
[Richard Feynman]

Mais do que um comentador ou um opinion-maker, Miguel Sousa Tavares é um cronista dos tempos em que vivemos. Por esta razão os seus livros de compilação permanecem como obras de interesse social: fazem o retrato de uma época e realidade política específicas e permitem-nos começar a construir uma ideia da nossa própria história recente.
No artigo que assina hoje no Público, Sousa Tavares reflecte sobre a degradação do sistema político e dos seus intervenientes: A imagem e a demagogia afastaram a reflexão e a ideologia. A ambição e o oportunismo substituíram a verdade e a coragem. Apesar da crueza das palavras o que está expresso é uma boa parte do sentimento que a sociedade portuguesa tem para com a vida política. No entanto é também essa sociedade, de que todos fazemos parte, que sustenta esta realidade e valoriza exactamente a imagem e a demagogia em detrimento da reflexão e da ideologia. Somos todos responsáveis.

O célebre físico americano Richard Feynman (prémio nobel da física em 1965) contava uma metáfora curiosa sobre o menosprezo social pela atitude científica. A história é simples: imaginemos dois candidatos à presidência, um é um político profissional e o outro é cientista. Ao primeiro um jornalista pergunta o que pensa ele fazer a respeito do problema da agricultura. O político profissional rapidamente aponta várias soluções fruto da sua “profunda convicção”: Devemos investir na formação profissional e na renovação de maquinaria, modernizando as nossas capacidades tecnológicas, por outro lado promover a reestruturação dos territórios agrícolas e florestais com vista à optimização dos recursos disponíveis, e por aí fora.
O jornalista aborda então o candidato cientista com a mesma pergunta, ao que este responde: Bem, eu não sou especialista em agricultura mas parece-me ser uma área bastante complexa. Há muitos anos que muita gente trabalha nesta área e persistem muitas dificuldades, pelo que o que penso fazer é reunir as pessoas mais conceituadas deste sector, com experiência e capacidade de análise, para tentarmos compreender todas as componentes da questão e assim planificarmos o melhor sistema com vista à obtenção dos melhores resultados possíveis.
Richard Feynman termina esta história com duas evidências. Em primeiro lugar que o cientista, pela sua abordagem que parte de observar a realidade e os fenómenos concretos que aí se verificam, é aquele que dispõe da melhor metodologia com vista à resolução dos problemas. Em segundo lugar, outra evidência, que este cientista nunca ganhará as eleições.

A verdade é esta: a maioria das pessoas valoriza a superfície à profundidade das coisas, valoriza as “profundas convicções” dos líderes em detrimento da observação da realidade. Ora isto não é assim em todos os países europeus. Em muitos países, especialmente do norte da Europa, os programas e as estratégias de acção política assentam crescentemente em métodos participativos abertos aos vários sectores da sociedade e resultam em planos de trabalho fortemente monitorizados. Este importante princípio, a monitorização, tem por objectivo analisar a evolução da acção política com indicadores que permitam medir os efeitos das actividades e delinear novas estratégias para corrigir erros ou aspectos menos conseguidos. Esta monitorização com vista à redução do erro é algo aceite como normal, tanto pelos cidadãos como pelos dirigentes políticos. O erro não é um escândalo, ele faz parte da vida humana e tem que ser assumido (e não ocultado) através de uma continuada observação da realidade e dos efeitos que as nossas acções nela vão imprimindo.

O que daqui se conclui é uma atitude adulta, uma cidadania avançada da qual estamos infelizmente muito longe. E não é apenas por culpa dos nossos políticos, mas por culpa de toda uma sociedade que persiste em não olhar para a realidade e aprender com a experiência passada, em defesa de uma interpretação do conceito de ideologia que está completamente desvirtuado. É que a ideologia não deve ser uma visão redutora, paralizada no tempo e fundada em preconceitos para com a sociedade e a história, mas uma doutrina sustentada na experiência e no conhecimento da realidade, com vista à defesa dos valores que estão na base da sociedade em que vivemos e que herdámos de séculos de esforço e sofrimento de muitos dos nossos antepassados.

Mais:

[A Barriga De Um Arquitecto: Esta Terra Mal Amada, 2004-01-13]


 Posted by Hello

1 comentário:

  1. Esta é uma questão que me tem assediado várias vezes e concordo bastante com a sua análise. Não concordo, no entanto, com a afirmação que somos todos responsáveis. Eu, não me considero responsável. Assim como não me considero responsável pelos incêndios, ao contrário do que o senhor Presidente disse hoje. O "somos todos responsáveis" é uma maneira óptima de sacudir as responsabilidades individuais.
    Este governo é uma miséria franciscana, mas a alternativa qual era? Eleições, que trariam o quê de novo? Com jeitinho o Dr. Santana Lopes até ganhava e isso é que seria digno de se ver.
    No texto de Miguel Sousa Tavares, diz-se que a mensagem de tão democrática para todos entenderem, já não significa nada. Eu até vou mais longe: mas qual mensagem? Até podia citar alguém eminentemente anti-democrático: "nunca votei na minha vida, sempre soube e compreendi que os imbecis são a maioria". Porque no fundo é aí que se está a chegar, questionar a própria democracia e começar a pensar no futuro.
    Neste momento, quem pensa pela sua cabeça não tem escolha. Chegamos ao ponto que George W. Bush tão bem ilustrou quando disse que quem não era pela América era pelos terroristas, deixando efectivamente sem espaço quem ainda queria ser pela paz, ou pelo menos ter ideias próprias.
    Numa outra nota, já não me lembro como aqui cheguei, mas gosto bastante do seu blog e aproveito para o convidar a visitar o meu.
    -- José Rui Fernandes

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