A queda de Sirius



O Nerdwriter tem vindo a estabelecer-se como um dos melhores canais de cinema no YouTube. Um dos seus mais recentes vídeos – What The Truman Show Teaches Us About Politics – apresenta uma análise do filme The Truman Show, estreado em Portugal com o título “A Vida em Directo” no ano de 1998. Em causa está muito mais do que destacar os contornos visionários da obra de Peter Weir, seja pelo advento da vigilância de massas ou da omnipresença da reality tv. Trata-se antes de olhar para a perturbadora correlação entre o cenário simulado de Seahaven e a sociedade em que vivemos.



Evan Puschak, autor do Nerdwriter, faz notar que a sobrevivência do mundo fictício que rodeia Truman Burbank carece de muito mais do que um exército de actores ou uma parafernália de tecnologia oculta. Para lá de tudo isto, a existência de Seahaven depende de um factor muito mais simples: que o próprio Truman acredite que aquele mundo é verdadeiro.
Do mesmo modo, Evan propõe que também o mundo em que vivemos precisa que acreditemos nas suas regras. Que, acima de tudo, a sustentação de uma ideia de realidade depende de nos mantermos imóveis na perspectiva da verdade que ele nos apresenta.

Assim, tal como a queda de uma estrela artificial ou os vislumbres por detrás do cenário vão servindo de perturbador alerta na vida de Truman, também os sinais alarmantes do presente nos vão revelando as fragilidades de uma realidade que outrora julgávamos tão robusta e perene. E, no entanto, tal como Truman, também nós temos dificuldade em enfrentar a inquietação do que esses sinais nos revelam, preferindo o conforto daquilo que sempre tomámos como certo e nos é familiar a, em alternativa, despertar para o desconhecido.



Curiosamente, é um pouco sobre isto que nos fala um recente vídeo de Derek Muller no Veritasium. The Illusion of Truth aborda o conceito de conforto cognitivo , definição do campo das neurociências para a tendência humana em acreditar naquilo que nos é mais familiar. Dito de forma simples, as coisas a que somos expostos constantemente parecem-nos mais verdadeiras.

Ainda que se trate de um mecanismo essencial no reconhecimento intuitivo de factos sobre o mundo que nos rodeia, o conforto cognitivo pode ser estimulado artificialmente de modo a tornar-nos mais susceptíveis a aceitar determinadas ideias – facto bem conhecido no campo da publicidade ou do marketing político. O conforto cognitivo é fácil e não requer grande esforço da mente humana. Ideias que desafiam as nossas convenções ou preconceitos, por outro lado, requerem esforço. O pensamento crítico contraria a nossa intuição e afasta-nos do estado de segurança mental para que tendemos a mover-nos por defeito.

Talvez seja por tudo isto que, tal como Truman, nos sintamos mais confortáveis não questionando aquilo em que acreditámos durante toda a vida, mesmo perante as evidências crescentes de falsidade que vão rompendo o cenário em nossa volta. Num tempo em que a tecnologia tornou instantânea a partilha e a disseminação de entendimentos da realidade, nunca foi tão fácil estimular o nosso conforto cognitivo e promover convicções familiares com que nos sentimos bem. Mas talvez devêssemos também ter presente que os mecanismos da nossa inteligência são falíveis e que se queremos distinguir entre os factos e a fantasia poderemos ter de pagar o preço de viver no desconforto da dúvida, da incerteza e do desconhecido, tão próprios de quem carrega o seu pensamento crítico pelo mundo.

2 comentários:

  1. Daniel, lendo um texto do Zizek - que se encontra traduzido para português e publicado na obra "A subjetividade por vir" - fiquei a saber que o "The Truman Show" (que é para mim um filme de referência) não é uma história muito original já que o grande Philip K. Dick havia já escrito muito antes um livro ("Time Out of Joint", de 1959, traduzido para português como "O homem mais importante do mundo", colecção Argonauta) que conta a história de um homem que vive numa pequena localidade californiana onde todos os outros são figurantes. Aconselho o texto do Zizek (em inglês aqui: http://www.lacan.com/zizek-matrix.htm). Belo post, como sempre.

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