O tempo da arquitectura; breves notas sobre a Catedral Notre-Dame de Paris
Vivemos num tempo de grandes comoções súbitas, repercutindo-se na repetição intensiva da informação – e acima de tudo das imagens – num curto espaço de tempo, seguindo-se o esquecimento. O tempo das redes sociais e da mídia em geral é, afinal, pouco compatível com o tempo lento da arquitectura. Mais assim é quando na presença de edifícios que percorreram longos séculos de história. Talvez por isso valha a pena lembrar que o nosso processo civilizacional é feito de perda constante, perda de conhecimento humano e perda de conhecimento material. Por vezes parece-nos mesmo que é mais aquilo que se perde do que aquilo que conseguimos salvar, preservar, reconstituir. Perdemos pela negligência humana, como terá sido o caso do incêndio da Catedral Notre-Dame de Paris, mas também por causas naturais, como também ainda pela ignorância e, mais grave do que tudo isso, pela guerra.
O entusiasmo mediático gerado pela destruição substancial daquela que é a mais visitada catedral gótica do mundo trouxe consigo reacções curiosas. Houve de tudo um pouco: desde a parada indecorosa de bilionários que se assomaram para doar milhões para a reconstrução, aos desabafos daqueles que viram nas chamas a metáfora perfeita para o declínio político e social da Europa, até aos manifestos mais inflamados em defesa do abandono da ruína como rejeição da comodificação do património. Não obstante as perplexidades com que se confronta a doutrina da arquitectura transformada em objecto de mercado, seria uma estranha ironia que, em nome da rejeição do capitalismo, deixássemos morrer património nascido muito antes dele mesmo. Seria talvez o símbolo supremo do estertor deste capitalismo tardio em que vivemos. De resto, convém recordar que em nome dos melhores manifestos se cometeram algumas das maiores atrocidades da história. E que, por fim, mais cedo ou mais tarde, a terra se ocupará de reclamar o retorno das pedras que erguemos.
Mais importante do que tudo isto é, em boa verdade, a arquitectura. E o tempo que se segue convoca arquitectura mas também as engenharias, as artes, a história, a cultura, a política. Em primeiro lugar porque é um processo de ética que obrigará a tomar decisões, por certo, bem difíceis.
Sabemos agora, passada a inquietação das chamas e dos escombros, que o casco edificado que sobreviveu à devastação do incêndio ficou fragilizado e vulnerável. Perdeu-se toda a estrutura de madeira da cobertura, muito antiga e muito rica, bem como o telhado em placas de chumbo. Com o seu colapso ruiu também a flecha, a torre erguida por Viollet-le-Duc durante a extensa e controversa intervenção de restauro de meados do século XIX.
As paredes da Catedral parecem ter resistido, bem como a maior parte das abóbadas, com colapsos parciais. Mas o diagnóstico que se segue será certamente extenso para compreender com rigor os efeitos do incêndio e da elevada temperatura sobre a pedra e nas argamassas de junção e revestimento.
As fotografias disponíveis do desvão do telhado da catedral – a notável “floresta” estrutural de madeira agora desaparecida – parecem sugerir que as abóbadas teriam um revestimento argamassado pelo extra-dorso – desconheço se parte do processo construtivo original ou se resultado de uma acção de reforço posterior. O estado de todos esses materiais terá de ser bem compreendido para orientar as decisões seguintes.
Existirá também um vasto conjunto de elementos mais finos que se terão perdido, entre os quais os mais notáveis serão alguns dos vãos com envidraçados decorativos e obras de arte de maior dimensão que não puderam ser removidas durante o incêndio.
Para o que toca a arquitectura, as questões éticas que se colocarão não podem deixar de ser orientadas pelo dever de transmitir o património histórico às gerações vindouras. A Catedral ardeu durante a nossa vigília. Temos certamente a obrigação de reconstruir. Mas várias questões se irão colocar, como por exemplo a vontade de reconstruir aquela maravilhosa estrutura de madeira – sendo certo que a perda da estrutura original é um motivo de consternação irremediável – por um lado, e a ponderação daquilo que pode ser melhor para a salvaguarda da vida futura do edifício. Será uma decisão de ética construtiva, ética do processo construtivo, da mediação entre engenharia e arquitectura, assente no que os diagnósticos informarem. Não serão questões de achómetro ou de opinião, como não será a decisão de repor a elevada carga de placas de chumbo da cobertura, na tipologia original, ou outra solução porventura mais compatível com as suas capacidades – e vulnerabilidades – estruturais.
Acima de tudo há uma coisa que devia ser compreendida por todos: nenhuma solução, nenhuma proposta avançada sem estar sustentada por um profundo trabalho de diagnóstico estrutural do edifício pode ser levada a sério. Arquitectura não são imagens, não são renders, não é design conceptual, por mais belo e inspirador que seja. E é também por isto que este só pode ser um longo, lento e laborioso processo de estudo e de decisão, incompatível com o calendário avançado pelo presidente Emmanuel Macron que se comprometeu a reconstruir a catedral até à data da inauguração dos jogos olímpicos de Paris de 2024.
Também o Senado Francês veio refrear o repto dos líderes políticos para uma reconstrução inventiva, estabelecendo como condição ao financiamento da operação o restauro do edifício de acordo com o seu último estado visual. A decisão não deixará de motivar o desagrado de alguns, mas tem também o mérito de rejeitar muitas das ideias prematuras, mal cozinhadas, que têm vindo a público. Parece aliás revelador de uma certa mediocridade contemporânea, uma insegurança disfarçada de irreverência que urge em afirmar-se a todo o momento, cuja apoteose seria a elevação de uma flecha paramétrica sobre uma catedral gótica com oitocentos anos de história. Está em causa, afinal, salvaguardar a coesão construtiva, arquitectónica e estrutural daquele conjunto, que importa não devassar em nome de uma pretensa noção muito discutível de “modernidade”.
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