Tiro ao lado
Será injusto acusar Clint Eastwood de alimentar uma visão bidimensional sobre a guerra. Falamos do autor de um díptico da Segunda Guerra Mundial – Flags of our Fathers e Letters from Iwo Jima – que se propôs evocar os dois lados de um mesmo conflito armado num exercício sem paralelo na história do cinema.
American Sniper não beneficia dessa multiplicidade de pontos de vista. Pelo contrário, o filme começa exactamente por convocar a perspectiva subjectiva que condiciona todo o percurso da sua personagem. Numa das primeiras cenas do filme Chris Kyle, o atirador interpretado por Bradley Cooper, é confrontado com a decisão difícil de abater uma criança. A sequência marca o trajecto sem retorno para todos os que vivem a brutalidade do cenário de guerra. Acima de tudo, Clint Eastwood sublinha desde o início a ambiguidade cruel do conflito que compromete a metáfora definidora da natureza de Kyle – um cão pastor que protege as ovelhas dos lobos. Mas quem se atreve a dizer quem são afinal os lobos e as ovelhas nesta história?
Como retrato dos efeitos psicológicos da guerra American Sniper começa por se revelar um objecto de invulgar complexidade, dando a conhecer os motivos que levam alguns homens a voltar ao combate em múltiplas jornadas de serviço. Kyle não regressa ao Iraque em busca de aventura mas, pelo contrário, pela compulsão maior de um sentido de defesa para com seus companheiros. Pouco vulnerável a estados de alma, encontrando justificação para os seus actos num necessário sentido de dever, Kyle é alguém que não verbaliza o processo psicológico que atravessa – na verdade, não está sequer consciente do que lhe está a acontecer. O desafio notável da representação de Bradley Cooper é exprimir esse processo não através da exposição mas da supressão de emoções, revelando-nos um homem incapaz de regressar a uma normalidade que ele próprio se tornou incapaz de compreender.
As fragilidades de American Sniper tornam-se no entanto evidentes no modo como se revela incapaz de confrontar os demónios que ele próprio invoca. Apresentando-nos a dinâmica interior conturbada da sua personagem, o filme carece de uma resolução também ela psicológica. Lamentavelmente a narrativa acaba por se centrar no duelo entre Kyle e um atirador iraquiano, enredo fictício enfatizado por Steven Spielberg numa das revisões do argumento aquando do seu envolvimento na produção, numa altura em que ponderava ainda realizar o filme.
Esse fio narrativo contamina de forma irremediável as motivações da personagem central, colocando em primeiro plano o confronto da acção e desvalorizando o processo mental que torna o regresso tão difícil. A tempestade de areia que marca a resolução narrativa assume-se assim uma metáfora terrivelmente ambígua. Resolvido o conflito, tudo se apaga? Kyle parece por fim apaziguar-se com os actos cometidos, votando a crua realidade daquele país em conflito a uma mera decoração de fundo da sua viagem.
Como nos lembra Brian Turner, veterano da guerra do Iraque e autor do livro My Life as a Foreign Country, o problema de American Sniper é também o problema mais vasto da América no modo como vê o mundo. Que, em American Sniper, os iraquianos, homens, mulheres, crianças, existem e são definidos apenas na sua relação com o conflito e no risco potencial que representam. As suas vidas interiores são uma folha branca; em boa verdade, não chegam a ser pessoas – e se a sua humanidade fosse reconhecida, ruiría a narrativa mental que permite ao herói cavalgar por fim, em paz, em direcção ao horizonte.
Clint Eastwood acaba por nos trazer uma obra que se parece perder na sua própria ambiguidade, comprometida que fica na vontade de afirmar Chris Kyle como um herói americano – condenando-se assim a dividir plateias entre os que o acusam de patriotismo cego, por um lado, e os que aplaudem o tiro decisivo da narrativa por outro. Talvez o filme beneficiasse em providenciar uma perspectiva mais vasta, dando a conhecer o homem na sua verdadeira dimensão, com os seus defeitos e as suas virtudes, as suas motivações e circunstâncias, revelando-o simplesmente humano e deixando o resto para a audiência.
De acreditar
As pessoas precisam de esperança. Precisam de acreditar numa visão, num projecto que prometa um futuro melhor para si e para as suas comunidades. Os países Europeus ofereceram em tempos esse sentido de esperança. Mas a crise, e a resposta oficial a ela, trocou a esperança pela frustração e pelo desencanto.
– Javier Solana: Europe’s Jihadi Generation; Social Europe
Javier Solana escreve sobre a geração da Jihad da Europa. É sempre bom quando encontramos ecos daquilo que pensamos nas palavras daqueles não comprometem a sua humanidade para defender os seus próprios valores. Para ler no sítio web Social Europe, uma página que vale a pena conhecer e acompanhar.
O passado através do futuro
Por fim o computador da nave revela que está a seguir instruções com o objectivo de trazer o monstro para a Terra, para que a Companhia o possa estudar em benefício da sua divisão de armamento. A tripulação é dispensável diz-nos, reproduzindo as suas ordens no mais devastador momento do filme. E Ash, o médico da tripulação, descobrimos de forma chocante, é também ele um computador...
– The Paris Review: HAL, Mother, and Father
HAL, Mother, and Father é um texto muito interessante que oferece um olhar sobre as décadas de sessenta e setenta do século passado através dos filmes 2001: Odisseia no Espaço e Alien – O 8º Passageiro. A reflexão tem como ponto de partida a relação cultural da sociedade com a tecnologia, em particular a evolução dos computadores e a sua ascensão no imaginário popular. HAL revelava-se como o monólito da evolução, a imagem gloriosa de um futuro possível que seria desvendado pela revolução da inteligência das máquinas.
Uma década depois o optimismo de 2001 seria substituído pela corrupção a bordo da Nostromo. A tripulação de Alien era formada por um grupo de operários espaciais numa viagem de longo curso ao serviço de uma misteriosa mega-corporação conhecida apenas como a Companhia. Toda a sua missão se fundava numa mentira. A equipa seria destacada para uma falsa operação de salvamento que serviria afinal de incursão exploratória a um sinal hostil de origem extraterrestre. O resultado revelar-se-ia trágico e implacável.
Alien é um filme nascido na ressaca da Guerra do Vietname, no dealbar de uma cultura narcisista que dominaria a América corporativa da década seguinte. Fala-nos de um tempo carregado de cinismo e descrença em todas as formas poder, um mundo onde os cidadãos são usados sem escrúpulo ao serviço de interesses inescrutáveis.
A sequela de Alien dirigida por James Cameron era um filme bem diferente. Um dos melhores filmes de acção da década de oitenta, Aliens chega-nos no auge da era Reagan em pleno crescendo da supremacia militar da América. Em Aliens somos apresentados a um grupo de poderosos Marines dotados do mais avançado armamento, prontos para enfrentar os mais temíveis inimigos. Indiscutivelmente bem treinados, cheios de confiança e arrogância, acabarão afinal por morrer todos.
Também aqui somos confrontados com uma reflexão sobre as contradições do seu tempo. A arrogância do poder esconde nada mais do que o desconhecimento profundo sobre aquilo que está para lá do nosso controle, esse território hostil e selvagem do desconhecido que se traduz na monstruosidade dos xenomorfos que habitam a colónia de Acheron.
Alien 3 encerra a história de Ellen Ripley. Um filme conturbado, fruto de um longo processo de produção, revelaria um realizador promissor que se viria a tornar um dos mais importantes cineastas americanos da sua geração. David Fincher mantém até hoje um distanciamento para com esta sua primeira longa-metragem. Ainda assim, para lá das controvérsias que continua a alimentar na comunidade cinéfila, é um dos mais interessantes filmes da série.
Um filme dos anos da Sida, Alien 3 é um objecto carregado de profundo desencanto. Encontramos a nossa heroína como nunca a tínhamos visto. Uma personagem vulnerável, “contaminada” pelo mal, rodeada por um mundo hostil e devastador. Náufraga do espaço profundo, resgatada num planeta-prisão, estabelece uma cautelosa empatia com o médico daquele estranho planeta. A sua intimidade traduz a mera procura de conforto fugaz, duas personagens marcadas que não se permitem gestos de romantismo, muito menos de ilusão.
A sombra da corporação volta a abater-se sobre os destinos de Ripley, mais ameaçadora do que nunca. Sabemos que o resgate vem a caminho, não sabemos a sua real intenção. A história confirmará a suposição de todos os medos. Que afinal a Companhia não vem para salvar os humanos, antes para os matar a todos e salvar o próprio monstro. Para Ellen Ripley restará uma derradeira escolha, solitária e redentora, que talvez possamos salvar o mundo mas não nos possamos salvar a nós próprios.
Eis apenas um exemplo de como a boa ficção científica nos fala, afinal, não de lugares distantes, de um futuro longínquo, mas do presente tão próximo. Que, por vezes, olhar para o futuro é apenas uma outra forma de descobrir o passado e interrogarmos o mundo em que vivemos.
Conferência com Smiljan Radić
A Trienal de Arquitectura de Lisboa lança a segunda edição do ciclo de grandes conferências – Distância Crítica – em co-produção com o CCB. O primeiro convidado deste ciclo que arranca a 22 de Janeiro é o arquitecto chileno Smiljan Radić, autor do pavilhão da Serpentine Gallery de 2014 e autor da instalação de abertura da exposição People Meet in Architecture para a 12ª Exposição Internacional de Arquitectura, La Biennale di Venezia comissariada por Kazujo Sejima.
Considerado “Melhor arquitecto com menos de 35 anos” pelo Colégio de Arquitectos do Chile em 2001, o seu trabalho integra programas tão diversos como o bairro de habitação de baixo custo em Concepción ou a ampliação do Museu de Arte Pré-colombiana. Pertencendo à primeira geração de arquitectos chilenos com uma presença global, Radić tem realizado exposições em diferentes pontos do mundo a partir de uma abordagem experimental que designa por "construções frágeis" como aconteceu no Museu de Arte Contemporânea de Hiroshima, no Kunsthaus Bregenz ou na Serpentine Gallery.
Após a apresentação do trabalho que Smiljan Radić tem vindo a desenvolver, segue-se uma conversa informal com Joaquim Moreno, crítico e curador da exposição Carlo Scarpa – Túmulo Brion Guido Guidi actualmente patente na Garagem Sul do CCB.
Via Trienal de Arquitectura de Lisboa.
2001 Redux
Os frequentadores de sites de cinema terão visto a notícia que explodiu ontem na internet. Steven Soderbergh deu a conhecer ao mundo uma reedição pessoal do filme 2001: Odisseia no Espaço. Um trabalho de remontagem da obra-prima de Stanley Kubrick que reduz a sua duração, de 160 para 110 minutos, introduzindo ainda manipulações pontuais da cor e da estruturação da banda sonora do filme original.
Nas mãos de um qualquer realizador tal ousadia seria considerada um sacrilégio cinéfilo. A Soderbergh permitimos-lhe a irreverência. Afinal, todos os motivos são bons para rever a cinematografia colossal daquela que é considerada quase unanimemente como a maior obra de ficção científica da história da sétima arte. Para ver a partir do blogue pessoal do realizador em alta-definição e grande ecrã.
Somos todos Charlie #lolwat
Amanhã os líderes europeus estarão em Paris na linha da frente de uma marcha em solidariedade com as vítimas do atentado ao jornal satírico Charlie Hebdo. Por um dia, todos Charlie. Todos Charlie, desde que façamos do slogan uma expressão de sentimento e não de pensamento. Todos Charlie, desde que não nos interroguemos: porquê? Pouco importa que não os mova um único projecto social para a Europa. Pouco importa que sejam os maestros de um penoso processo de empobrecimento generalizado e não revelem, perante tantos sinais de desagregação, uma réstia de desígnio ou coragem.
Querem-nos fazer crer, com mais ou menos subtileza, que está em causa uma batalha entre a liberdade e o terrorismo, a civilização e a barbárie. Maria Fátima Bonifácio define-o como a defesa d’O nosso modo de vida, uma variante sofisticada do nós contra eles – a mesma Charlie que há pouco mais de seis meses lamentava a “ambiguidade constitucional” que absolveu um artista português da acusação de ultraje à bandeira nacional. A hipocrisia anda à solta.
Curioso que alguns dos mais inflamados Charlies venham do espaço de comentário da direita liberal, n’O Insurgente e no Blasfémias, tão céleres a abater-se sobre aqueles que ousem questionar os motivos pelos quais estes terroristas germinam no coração do velho continente.
Bem podem querer reduzir esta tragédia a uma guerra contra o jihadismo, bombardear todos os campos de treino do ISIS na Síria e até implementar a pena de morte na Europa, como anuncia a Frente Nacional. No fim teremos de nos perguntar por que motivo gente de quinze, dezoito ou vinte e cinco anos se torna matéria-prima pronta a ser recrutada por manipuladores profissionais e encontra no fundamentalismo religioso o único projecto capaz de dar sentido à sua vida ou, possivelmente, à sua morte.
Que ninguém se iluda. A resposta à monstruosidade do Charlie Hebdo encontra-se no coração da França, no caos social em que estão mergulhados alguns dos banlieues em redor de Paris, palco de racismo institucionalizado, guetização de pobreza, violência policial. Quantos muçulmanos, árabes e negros lutam diariamente para viver com dignidade numa sociedade que os despreza, sem cair na violência? Serão eles, lamentavelmente, os que mais vão sofrer quando assentar a poeira destas exibições colectivas de sentimentalismo. O burburinho do medo e do ódio já se sente por aí.
Adenda:
Imagem via Facebook (autor não identificado).
Dinamite cerebral
Dos mesmos autores do documentário 97% Owned chega-nos agora o interessante Princes of the Yen: Central Banks and the Transformation of the Economy. O filme tem como ponto de partida uma análise da bolha monetária que teve lugar no Japão na segunda metade da década de oitenta em resultado de uma rápida expansão do crédito emitido pela banca privada. Esta política, fomentada pelo banco central do Japão, teve como resultado uma profunda recessão com pesadas consequências económicas e sociais. Um fenómeno que parece apresentar um paralelismo assustador com a situação que se vem desenvolvendo na Europa desde a crise financeira de 2008. O documentário é, acima de tudo, uma denúncia do papel desempenhado pelos bancos centrais na fragilização da soberania monetária das nações, em benefício do sector financeiro privado. Legendas presentemente disponíveis apenas em Inglês.
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