Escombros ou a vitória da ignorância



Sempre as mesmas pequenas receitas para explicar a complexidade das coisas. Sempre o mesmo “duque de trunfo” para cortar com qualquer réstia de honestidade intelectual. O que dizer então do maniqueísmo pobre com que se trata a questão das noites de violência em França no Abrupto: ou se está com “os valores” ou se chafurda na “complacência sociológica”. Não há meio termo.

Uma sociedade que olha o seu próprio vazio é o retrato desta França fragmentada por noites de motim. Desta vez não é “lá na América” onde é suposto que tudo aconteça mas no coração da Europa civilizada. Agora, depois de anos de sinais de alarme ignorados chega a crónica de uma crise anunciada. Que ninguém faça ares de surpresa. A história da violência urbana nos arredores de Paris já tem pelo menos duas décadas de existência. O estranho é como conseguimos viver, nestas nossas cidades e sociedades organizadas, neste convívio podre com a exclusão, fechados nos pequenos perímetros das nossas vidas privadas. Não ameaçados, tudo ignoramos. Lá como cá os brandos costumes do comodismo mais cego, mais insustentável, sempre regressam para acertar contas.
Temos e teremos, também cá, aquilo que merecemos. A proporção inédita que começa a tomar o fenómeno dos motins nocturnos de Paris é o retrato da nossa própria falência, da nossa incapacidade em produzir sociedade - e também cidade, porque o urbanismo também passa por aqui.
É evidente que a defesa da democracia exige a reposição da ordem, que o crime seja tratado como crime e os criminosos punidos como tal. É evidente que existem aqui múltiplos fenómenos em acção que o extremismo religioso contribui para incendiar. Mas levantar o discurso “dos valores” como se estes fenómenos fossem externos ao tecido da sociedade contemporânea é pactuar com o arranque já inevitável das rodas dentadas do extremismo: os de dentro, “dos valores”; e os de fora, “eles”, os outros.

Neste mundo globalizado nada é estanque. Tivessemos nós nascido nesses bairros, filhos dessa pobreza, atingidos porventura pelo desemprego e a exclusão, com poucos incentivos para continuar uma educação que nada nos diz, encontrado no crime e na droga o caminho da independência, pergunto-me se não andaríamos estas noites por aquelas ruas atirando pedras e incendiando lojas. Não estou a desculpabilizar. Digo apenas que me repugna tanto o criminoso como aquele que enche a boca na sua superioridade moral, nos seus valores. Onde estão eles? Onde se fazem representar nestas cidades, nestes subúrbios massificados onde se encaixotam estes imigrantes e aqueles que tem um pesado peso a pagar pela sua integração social, económica e cultural. Onde estão esses valores representados no ensino a que entregamos esses e todos os outros jovens; onde estão esses valores nos media, nos nossos comportamentos pessoais e na nossa interacção social. Ou reduzem-se esses valores a uma espécie de botões de punho com que alguns pretendem mostrar a sua elevação moral.

Iremos, como sociedade, reflectir sobre estes problemas e procurar respostas aplicáveis, na política, na economia, na educação, no urbanismo? Ou vamos persistir na mesma indiferença sobranceira e esperar pelo dia em que nos venham partir o carro, incendiar o negócio, agredir os nossos amigos ou sermos nós próprios a ir parar ao hospital?

10 comentários:

  1. Apreciei bastante o teu comentário, Daniel!

    Vivi em Paris um ano (2002) e, de facto, tive oportunidade de constatar (até porque trabalho com imigrantes) que lá como por cá, é muito triste ver como a nossa dita "sociedade" fecha os olhos à exclusão de que alguns (muitos) são vítimas... sem nunca se interessar, "enviando" os mais pobres, imigrantes e outros para bairros sociais nos subúrbios onde os turistas não podem ver a verdadeira realidade de um país (como sucede em França), ou para antigos bairros sociais, guetizados onde agora se constrôem condomínios de luxo (como vai sucedendo por cá, no nosso burgozinho).

    Mais triste e hipócrita ainda se torna escutar os comentários de gente que se acha muito informada sobre este assunto e que depois anda para aí a dizer que a culpa é de deixarem entrar os imigrantes na Europa!...

    Enfim...
    Tudo isto só para dizer que gostei do teu comentário.

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  2. Posso estar redondamente enganado, mas parece-me que quando se vai procurar sustento longe de casa não se maltrata quem nos recebe (como aliás a nossa população emigrante nunca o fez). O problema passa antes pelas 2ª e 3ª gerações que já pouco ou nada têm a ver com o país dos seus progenitores e também não são aceites no país onde nasceram, agravado pelo facto de tanto a cultura do país anfitrião como a cultura de quem é convidado (sim, apesar da imigração ilegal, a maiora continua a ser legal) serem muito fortes e na maior parte dos casos incompatíveis.

    Está ao lume uma sopa de povos possuídores de uma subcultura que não têm pátria nem raça, que nunca antes existíu nesta escala e com a qual ninguém sabe exactamente como lidar, mas que está, como temos visto, a entrar em ebulição. Quando se dá educação mas não se dão oportunidades de vingar na vida não se pode esperar outro resultado. Não tenham dúvidas: os ateiam fogos em Paris têm mais do que a escolaridade média em Portugal.

    O fenómeno da imigração em massa acontece nos Estados Unidos da América e na Austrália desde há mais de um século. Porém nestes países não há um povo ou uma cultura única dominante (por mais que isto custe a alguns norte-americanos), dando assim maior ou menor espaço para que este fenómeno se dilúa, pesem embora os distúrbios em L. A. no fim do século passado.

    Talvez me tenha entusiasmado com o assunto...

    Daniel, sigo o seu blog diariamente e agradeço-lhe o facto de nos mostrar o mundo pelos seus olhos e nos dar oportunidade de opinar sobre assuntos sempre interessantes.

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  3. "Iremos, como sociedade, reflectir sobre estes problemas e procurar respostas aplicáveis, na política, na economia, na educação, no urbanismo?"

    pois bem. mas, precisamente, no urbanismo, não era "aquela" a resposta. habitação "colectiva", espaços verdes. ar para todos! teremos outra? a não ser a do novo (velho) urbanismo... é que as novas propostas "urbanas" que se vão vendo por aí, nas revistas ou nos blogs, por mais que venham embrulhadas em fotomontagens de choque, não são muito diferentes dos subúrbios de paris, com muitos espaços verdes - porque convém ser "ecológico" - e tudo...
    poderá - dando de barato, que deverá - o urbanismo combater estes fenómenos de... "exclusão"?
    não será "urbanizar" sinónimo de excluir? a cidade do campo, o centro da periféria, etc...
    deverão os arquitectos/urbanistas martirizarem-se com complexos de culpa (para além da culpa "directa" que tenham pelo trabalho mal feito) por estes fenómenos “sociais”?
    ou seja, será que este é um problema de urbanismo?

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  4. Gostei particularmente deste seu post, da mesma forma que gostei do "mercado, a classe e a falta de classe"... revela uma posição muito sensata face a problemas muito complexos. Sobre os acontecimentos de Paris, apenas consegui publicar um desabafo no Allegro, certamente polémico!

    Agradeço o email muito pormenorizado sobre o template e a inclusão do meu blogue na sua vasta lista!

    Um abraço

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  5. Parece-me que tanto o Daniel Carrapa como o Pacheco Pereira analisaram bem parte da questão, mas a omissão da outra parte deixa demasiado espaço para a confusão.
    Não me parece credível falar dos acontecimentos de Paris sem salientar a barbárie que eles representam. Se nos damos ao trabalho de construir civilização por oposição ao estado natural e selvagem não é para, a qualquer momento, sermos arrastados para a selva.
    Existem conteúdos a debater, mas as formas escolhidas para os trazer, não são independentes da discussão. Neste caso discordo da forma escolhida por alguns dos “marginalizados” e acho que é possível exigir melhor abordagem á questão. E não me revejo na superioridade moral de que fala o Daniel, simplesmente não me fascina a efervescência revolucionária com que alguns vibram perante estes actos -que na realidade são declarações vazias de ideais, cujo único produto é a destruição.
    Esta não é uma distinção que se faça pelo polimento da instrução, é uma distinção dada simplesmente pelo bom senso e inteligência: de pouco serve a discussão sobre o quão bem educados foram os revoltados.
    A Historia já demonstrou ser possível a luta numa posição social inferior, sem armas, sem barbárie.
    As verdadeiras vitimas nesta história são os que nada fizeram para ser noticia, para produzir este alarido, os que encabeçam as manifestações contra a violência, que vivem nos mesmos bairros mas que têm filhos e medo dos traficantes, que têm o carro queimado e um emprego honesto e rigoroso – e estes são muitos mais e muito menos ruidosos.

    De qualquer forma, dito isto, fica tudo por resolver – como faz o Daniel, há uma série de perguntas que nos devem preocupar também a nós…

    Daniel, obrigado por fazer este blog, por ser inteligente e assertivo no seu pensamento e por estar certo 99,999% das vezes.
    Enviei-lhe o endereço do meu blog mas sem certeza de que o tenha recebido aqui está: http://www.tamosaga.blogspot.com

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  6. Obrigado a todos pelos comentários. Gostava de acrescentar mais algumas palavras à reflexão.

    Tenho de reconhecer que me revejo nas palavras do Nuno Galvão, especialmente no que toca à referência mais importante de todas e que no meu desabafo omiti irreflectidamente: as verdadeiras vítimas desta história. Sem dúvida, os cidadãos anónimos atingidos por esta vaga de violência, que sem vontade de protagonismo se vêem arrastados para uma das fases mais negras das suas vidas.
    A violência crescente em França já não é apenas inédita, é também histórica. Acredito que a ordem será reposta, numa questão de dias, semanas ou poucos meses. Mas as suas consequências políticas são já inevitáveis, não apenas para a França mas para todo o contexto europeu.
    Ao contrário do que escreve Vital Moreira no Causa Nossa (Paris já está a arder, 7 Novembro), a reflexão posterior à onda de violência não será de ordem social mas na óptica da segurança e da política de imigração. De resto, a complexidade do problema demonstra que é tarde para reflectir-se agora sobre qual o modelo de integração destas populações. O tecido sociológico está criado e nele residem hoje estas forças da mais pura desagregação social, sem ideologia, com a causa única da recusa à sociedade em que vive. Este falhanço da construção social irá fortalecer as políticas mais duras e conservadoras ao nível da segurança global. Todos seremos afectados, e também (talvez principalmente) essas vítimas reais desta onda de violência em França, essas populações em carência que lutam pela integração cumprindo as regras de um sistema que lhes abre poucas oportunidades de sucesso.
    A igualdade e a fraternidade ardem entre os escombros. A seguir será a liberdade.

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  7. Até que ponto este é um problema de urbanismo, parece-me uma reflexão fundamental. E não sei se haverá resposta. Parece que se têm tentado outras abordagens, como promover habitação social no interior de Paris (no bairro de Belleville p.ex.), com alguns problemas pelo que ouvi dizer. Em todo o caso está visto que o modelo de urbanismo das 'cités' (e que também foi posto em prática por cá) não funciona.

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  8. Daniel,

    permita-me dizer que concordo consigo. Considero que o problema reside na política de imigração europeia em que os imigrantes são vistos como um fardo. Quando os emigrantes que têm chegado à Europa têm contribuido para o crescimento económico das sociedades europeias e rejuvenecimento da população. No entanto o modelo aplicado na maioria dos paises europeus sem hipótese de legalização dos imigrantes, exclusão social, compensando depois com o facilitismo de subsídios, tem atraído além das pessoas que realmente querem melhorar as suas condições de vida, através da obtenção de emprego e habitação, outro tipo de pessoas .....digamos menos desejáveis. Actualmente estou a viver na Holanda e aqui tenho-me apercebido ao falar com os meus colegas holandeses que inclusivamente não põem os filhos as estudar em escolas com muitos alunos oriundos de famílias emigrantes e tenho-me apercebido que apesar de na rua parecer que me encontro no meio de uma sociedade multicultural , na pratica socialmente isso muito pouco acontece.
    Bom para concluir: ao longo da história humana, a imigração foi sempre uma constante muito importante para o desenvolvimento civilizacional e devido ao intercâmbio entre diferentes povos chegámos aos dias de hoje. Acho que cada um deve ser livre de ir para onde quiser. Os modelos de imigração devem premiar as pessoas que realmente vão procurar um nível de vida condigno e aceitá-las em pleno nas suas novas sociedades e penalizar os que vão à procura de distúrbios e conflito. Assim poderiam-se evitar revoltas como as que estamos a assistir em França.
    Andreia Fonseca

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  9. Olá, caro Daniel. Não o conhecia, mas o seu "banner" interessou-me, pois gosto muito de Zumthor e do seu método de fazer arquitectura, e deparei-me finalmente com este seu post.

    Além de concordar completamente com o que é aqui dito, gostaria de, tal como António Machado e Pedro, referir a importância do urbanismo como agente muito influente no que se passou.

    Não tanto no seu desenho, pois o desenho em si segue teorias que já refutaram outras teorias, foi construído com o maior zelo e dinheiro disponível, e mesmo que se possa criticá-lo, poderei invocar centenas de outros lugares de desenho pior, e que no entanto não criaram semelhantes situações.

    Refiro-me antes ao processo que conduziu à construção de tais bairros. Não houve nada tão imposto como o que acontece frequentemente neste tipo de bairros: um arquitecto camarário desenha um conjunto de "caixotes" e para lá são enfiados todos os indesejáveis. Alegoricamente, estes bairros são a lixeira de Paris, porque foram desenhados como tal (por mais jardins que tenha, foi esse o espírito que o desenhou e promoveu) - os bairros de lata são infinitamente mais humanos pois foram construídos pelos próprios e para os próprios! (Lembro o processo caótico que foi a descolonização na malha urbana nacional - ninguém foi encaixotado - talvez se tenha evitado uma guerra civil apenas por isso)

    Em Paris, aquela gente não conta. Nem tão pouco faz cidade.

    Não será altura de reabilitar o método de fazer cidades tradicionais, que tão eficaz em termos sociais o foi durante milénios? Perdemos essa capacidade, e há que reabilitá-la... sem preconceitos! (mas com imenso estudo prévio a fazer)

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  10. "Neste mundo globalizado nada é estanque"...

    Nada é estanque? Permita-me discordar. Cada vez mais as comunidades urbanas são estanques. Blindadas, em nome de uma suposta segurança.

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