Porreiro, pá!


Image credits: Oliver Jeffers.

Dez notas sobre o Brexit e o momento histórico que estamos a viver.

1. Todo o debate está dominado por um enviesamento impregnado na própria linguagem. O mais expressivo está na utilização da expressão União Europeia (quando não mesmo a própria palavra “Europa”) como sinónimo de unidade europeia. Esquece-se que a União Europeia não é uma construção mitológica assente nas boas palavras que encimam o preâmbulo dos tratados mas, como escreve hoje Steeve Keen, uma instituição real que se transformou numa força de desunião dos países Europeus, uma entidade política disfuncional anti-democrática cujas regras e procedimentos estão a causar o declínio na Europa e a alimentar as forças racistas e separatistas que a estão agora a desagregar.

2. A campanha do referendo britânico foi um exercício vergonhoso de xenofobia, por um lado, e medo, por outro. Mas querer representar o voto no Brexit como um voto unidireccional conduzido por idiotas racistas, esquecendo a complexidade social e política de cada uma das escolhas em presença, é um exercício de um simplismo abjecto e inaceitável.

3. Na ressaca dos resultados, a mídia aí está a representar os eleitores britânicos do Brexit como idiotas, ignorando que a extraordinária participação do referendo traduz um largo espectro de eleitorado com sensibilidades políticas muito divergentes.

4. A campanha da mídia britânica para culpar Jeremy Corbyn dos resultados também já está em marcha. Se Corbyn era um incómodo antes do referendo, a possibilidade de se tornar primeiro-ministro inglês em caso de viragem política tornou-se uma ameaça real para o “establishment”. É preciso matá-lo politicamente tão cedo quanto possível.

5. Algumas vozes erguem-se agora esperando da União Europeia o início de um processo de reflexão e reforma que retome “o primado dos valores fundacionais”. É bom ter esperança. Mas também é bom lembrar que da UE não vieram quaisquer sinais de abertura a um processo desse tipo. Pelo contrário, podemos vir a assistir a exactamente o contrário; ao reforço da matriz austeritária e à tentativa de concentração de poder da União sobre a autonomia política e económica dos Estados Membros. O estertor até ao fim.

6. A instabilidade imediata lançada sobre o Reino Unido é um risco real, especialmente grave para os cidadãos mais vulneráveis, entre os quais os estrangeiros que lá trabalham como os muitos emigrantes portugueses. Mas a compreensão da gravidade desse processo não pode ser medida pela volatilidade inicial dos mercados cambiais e bolsistas. Em si mesmo, o que se vai passar nestes primeiros dias não tem verdadeira importância – a forma como a situação económica se vai reequilibrar, essa sim.

7. Na necessidade de estancar um processo de desagregação e saída de outras nações da União a UE poderá ter uma reacção inicial hostil, uma tentativa de castigar o Reino Unido como exemplo perante outros países. Mas a UE terá de vergar-se, também por influência dos Estados Unidos, consagrando à Grã-Bretanha um estatuto especial em termos similares aos que estão estabelecidos com a Suiça ou a Noruega. A situação acabará por estabilizar-se e os medos que a mídia está a lançar – como as dificuldades dos cidadãos ingleses em trabalharem nos países da União ou vice-versa – acabarão por se resolver com completa normalidade.

8. O voto de revolta, mesmo o voto xenófobo e racista, não é em si mesmo uma causa mas uma consequência da crise mais alargada que se vive hoje na Europa.

9. Acima de tudo, o voto do referendo britânico é um voto de revolta contra o “statu quo” – europeu e britânico. Os ingleses votaram na saída da União Europeia porque podem. Ponto. Muitos outros cidadãos desta Europa, como os Portugueses, os Gregos e os Espanhóis, gostariam de estar fora deste clube – dirigido por figuras cada vez mais sinistras como Wolfgang Schäuble, Jean Claude-Juncker, Donald Tusk, Jeroen Dijsselbloem e outros. Mas um referendo similar em qualquer um destes países teria sempre como resultado a manutenção – pela sua evidente fragilidade perante a força do “establishment” Europeu. A campanha do medo venceria sempre. Mas mesmo isso é verdade só até certo ponto. O medo só sustentará esta União Europeia à força até que o desespero imponha a alternativa. O que poderá acontecer na Itália ou na França, gerando, neste último caso, um terramoto político e económico difícil de imaginar.

10. O fim da União Europeia não começou ontem. A UE tornou-se numa instituição que está activamente a promover a desconstrução do tecido dos estados sociais que lhe trouxeram a paz desde o fim da segunda guerra mundial – e que está hoje a danificar e a destruir a economia de muitas das suas nações. Aquilo que estamos hoje a viver resulta do facto da União Europeia se ter tornado num projecto, não de esperança, mas de desesperança. Um projecto em que ninguém acredita e que só sobreviverá se o sistema político for capaz de levar a cabo a sua refundação. Se o processo de transformação inevitável a que vamos assistir for conduzido pela mão dos populismos da extrema direita, do Ukip à Frente Nacional, o destino será um desastre histórico de consequências trágicas para todos.

É obrigação de todos nós, cidadãos deste tempo, evitá-lo.

6 comentários:

  1. Respostas
    1. Qual extrema-esquerda? Não é a extrema-direita que está a cavalgar a onda de nacionalismo xenófobo anti União Europeia? Na Inglaterra, na França, nos países escandinavos?
      O Labour não é com certeza. Mesmo na Grécia, quando o Syriza ainda estava em choque com a UE, nunca se fez a campanha pela saída da União ou sequer pela saída do Euro - sem, nem no referendo de 2015. Essa agenda está com a Aurora Dourada, mais uma vez, de extrema-direita.
      Ou falamos do Bloco e do PCP, que até apoiam a maioria parlamentar que está a sustentar um governo socialista, pró-Europeu? É essa a extrema-esquerda que está a ameaçar a Europa? Não me parece.

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  2. 1. Julgo não haver enviesamento nenhum. A Europa não pode anular a identidade nacional das populações. Caso contrário os países não se tinham formado. A razão de existência de um Pais são as características que o fazem único e causa da sua identidade e que o faz funcionar como um todo. Uma União não tem que acabar com estes sentimentos pois isso apenas trará conflitos. No entanto uma união pode perfeitamente existir sem que seja necessário anular as vontades dos povos.
    Evidentemente para os fundamentalistas que enchem a boca com a Democracia será fácil subjugar um povo a outro apenas pelo numero de habitantes. Isso seria o pior que podia acontecer. É bom que a Democracia tenha limites...

    2. Acusar os Ingleses de Xenófobos para mim quer dizer uma de duas coisa: ou é demagogia/desonestidade Intelectual ou é de quem nunca foi a Londres...

    3. Também concordo, chamar idiota ao povo que instituiu a democracia moderna tem a sua piada.

    4. Penso que um Corbyn não conseguirá jamais chegar ao poder , o próprio Brexit o significa. Porque a memoria coletiva inglesa sabe como James Callaghan destruiu a economia Inglesa.

    5. Penso que a grande confusão é chamar austeridade à racionalidade economica.

    6. A Inglaterra sempre foi um país de imigração e continuará a ser, pela simples razão que o RU precisa dessas pessoas. O Brexit significa apenas que o RU quer definir quem e quantos devem entrar. Os portugueses p.e. podem estar descansados. Já potenciais terroristas e indigentes que se querem encostar ao SNS britânico vão ter dificuldades.

    7. Neste ponto estou de acordo

    8. Também concordo.

    9. Não , os Portugueses e demais receptores de fundos não querem sair. Isso seria o fim dos fundos que tanto nos tem ajudado, desde a nossa entrada na UE.
    Em relação a pessoas sinistras esqueceu-se de mencionar Mário Dragui.

    10. O fim da União Europeia não começou ontem. Quanto a mim por causa do ilimitada dependência dos países do sul que por norma são desgovernados e viram nos países do norte uma fonte de financiamento inesgotável.


    É obrigação de todos nós, cidadãos deste tempo, evitá-lo. Concordo mas para isso será necessário numa palavra : reconhecimento e politicas racionais.

    cumps

    Rui SIlva

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    1. Lido e relido o que escrevi, concordo que o ponto 9 é o mais questionável. Que a União Europeia vem sendo mal conduzida parece-me uma evidência. Daí a presumir que "gostaríamos de sair deste clube" é um passo pouco avisado. Não pelo motivo que invoca - por sermos receptores de ajuda externa. Mas porque dificilmente poderemos pensar que a solução para os nossos problemas, internos e externos, seja possível fora do quadro mais alargado da Europa.
      De resto, o voto no Brexit, para além de alimentado por maus fundamentos, é equivocado quanto às próprias razões de desigualdade interna do Reino Unido, neste caso particular muito mais resultante de causas de política interna do que de imposições externas da União Europeia. Mas essa é uma reflexão que nas actuais circunstâncias cabe ao Reino Unido fazer. Esperemos que sejam capazes de encontrar uma saída que minimize os danos do que está em marcha, e que os dirigentes da União se comportem de forma construtiva nesse processo, em vez de funcionarem como fonte de perturbação, como vêm fazendo nestes primeiros dias.
      Estamos a viver tempos complicados...

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  3. Evitar o fim da União Europeis? E como? Os discursos populistas estão para ficar. Qdo ao RU lá se arranjarão, mas numa noite, os meus dias aqui ficaram mais tristed. Vamos ver senão ficam impossiveis.

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    1. Olá Sara. Não tenho como retorquir ao teu desabafo. Uma coisa é estarmos ao longe a teorizar, outra é viver a realidade de um país estrangeiro em convulsão, tentando levar em frente uma vida e uma carreira.
      Receio que este momento seja apenas uma amostra dos perigos e da instabilidade que podemos vir a viver na Europa. Com convulsões de um dia para o outro que nos demonstram a fragilidade daquilo que por vezes julgamos perene e previsível.
      Só posso desejar-vos a melhor sorte e sucesso, e que este momento se ultrapasse da maneira menos conturbada possível. Força para superar essa tristeza e que dias mais alegres cheguem em breve.

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