A ambiguidade que paira entre divulgação, opinião e crítica – esta última assente num trabalho mais profundo de investigação e contextualização, de referenciação da história, dos conteúdos e das ideias – é por certo um dos desafios que se coloca à expressão do pensamento erudito sobre o mundo que nos rodeia; a este respeito escrevi recentemente em
Da arquitectura como narrativa política. O caso torna-se no entanto mais complicado quando essa indistinção parte dos próprios críticos, neste caso de arquitectura. No ensaio
Os analfabetos do presente Pedro Levi Bismark enuncia o «últimas reportagens» como sintoma de um processo de desvalorização crítica da imagem, denunciando-lhe a ausência de critério arquitectónico, estético ou político.
Coloca-se, em primeiro lugar, um equívoco de partida. O exemplo em causa, como tantos outros sítios web de fotógrafos de arquitectura, tem explícita uma fundação empresarial. Estes profissionais são – tal como os arquitectos – prestadores de serviços e a sua presença na internet é uma extensão natural da sua imagem; algo que se traduz, no interface gráfico e nos conteúdos que divulgam, tanto no domínio corporativo como no campo criativo. É assim com Iwan Baan, Cristobal Palma, Hertha Hurnaus, Fernando Guerra, como com tantos outros.
Afirmar, em relação ao caso particular do fotógrafo português, que
não pode ser esquecido de modo nenhum é que um site como este não é uma publicação de arquitectura, onde texto e fotografia se cruzam para construir uma crítica de obra é “disparar sobre o mensageiro” em nome de um equívoco que o próprio crítico parece alimentar.
Será indesmentível que a fotografia se tornou, no mundo da rede, um veículo poderoso de divulgação da arquitectura produzida – mais do que do seu “valor crítico”. Uma boa foto de arquitectura não é necessariamente consequência de um bom projecto nem o fim último de um edifício consiste em ser fotografado. A arquitectura, existindo para ser vivida, abre sobre o mundo um diálogo com o lugar, com o tempo, com a memória. A representação fotográfica é mais uma extensão desse diálogo, não sendo indiferente o discurso formal da própria imagem e o seu destinatário editorial. Uma fotografia comissionada por um arquitecto não tem os mesmos parâmetros estéticos de uma comissão para a Dwell, como esta diverge dos padrões editoriais de uma Wallpaper; e, no entanto, nestes como noutros exemplos mais, podemos estar a falar de um só edifício. Para a mesma arquitectura, muitas “imagens” possíveis.
O que é questionável é alimentar uma visão caricatural em que a chancela de um fotógrafo se traduz numa paródia de “selo de qualidade” da própria arquitectura. Como se o facto de obras de diferentes arquitectos serem fotografadas por Iwaan Baan ou Fernando Guerra as colocassem num mesmo patamar “crítico”. O caso torna-se mais grave quando se enuncia o caso particular de Álvaro Siza, merecedor de uma secção autónoma destacada no site do fotógrafo português, como estando
lado a lado com um outro exemplo publicado numa rede social, ignorando o valor editorial dessa distinção.
O equívoco expresso por Pedro Levi Bismark torna-se ainda mais explícito quando coloca no mesmo plano o «últimas reportagens» com o «archdaily», este último o blogue de arquitectura mais visitado do mundo. Vale a pena reflectir sobre o que isso significa: qual o seu “valor crítico”. Resposta: nenhum. O «archdaily» não é um espaço de crítica de arquitectura e, no entanto, a sua política editorial não é de todo inócua. Ele concorre, com outros blogues semelhantes, pela publicação de conteúdos “em primeira mão”. Um press-release com imagens mais ou menos sensacionais de um projecto, enviado a dezenas ou centenas de emails de blogues, vê-se publicado em poucos minutos. Nesta blogosfera a novidade e a celeridade traduzem-se em
hits, o que por sua vez se converte em fonte de
revenue.
Não desenvolvendo sobre os projectos qualquer conteúdo crítico, a publicação num «archdaily» não se traduz por isso num valor qualitativo da obra. Um projecto não é bom ou mau por ser publicado na internet. No entanto, esta lógica de reciprocidade entre blogues e empresas de arquitectura tem uma consequência perversa quando dela se pretende extrair uma representatividade crítica; algo que o «archdaily» invocou por diversas vezes sob a forma de editorial. Como se a exposição de um projecto e a sua submissão ao “comentário” fossem em si mesmo uma forma de sujeição à “crítica” popular, o que por sua vez se traduziria num “valor” democrático. Ao fazê-lo, o «archdaily» alimenta os piores equívocos redutores da noção de crítica de arquitectura no espaço público.
Por muito que isso escandalize noções pueris de democraticidade que reinam na internet, a verdade é que a crítica de arquitectura será sempre uma actividade minoritária, de nicho. Trata-se, no entanto, de um espaço contido mas poderoso onde podemos encontrar coisas como o BLDGBLOG, o City of Sound, o Fantastic Journal, o Kosmograd, entre tantos outros, que desenvolvem o trabalho crítico de mapear os conteúdos – dos projectos, dos desenhos, dos textos, das fotografias – com o cruzamento de múltiplas referências.
O aspecto mais infeliz do texto do Pedro Levi Bismark é confundir estes diferentes planos na tábua rasa de uma generalização que alimenta esse mesmo olhar iletrado e indistinto sobre “as imagens” que hoje se abatem sobre nós num volume sem precedentes. O que ali se traduz é uma patologia recorrente na crítica escrita entre nós, pronta a disparar sobre o mensageiro de forma fácil mas que tantas vezes se demite de abordar os verdadeiros temas do nosso país em crise e do território sociológico em que vivemos. Nunca como hoje fez a crítica de arquitectura tanta falta, nem esteve tão ausente.