Uma vez na vida



Se há filmes que dificilmente se repetem, este é um deles. Um retrato da transição da infância para o início da idade adulta, Boyhood é um projecto cinematográfico concebido durante doze anos com filmagens que acompanharam o envelhecimento dos seus actores – com natural impacto na evolução física e psicológica das crianças através da adolescência que se desenrola à frente dos nossos olhos.

O registo segue os traços naturalistas próprios das obras recentes de Richard Linklater, sem arcos melodramáticos para levar o espectador pela mão em crescendos de narrativa e desenlaces finais. O resultado é um filme despojado, hiper-realista, profundamente adulto, sobre os efeitos da passagem do tempo na vida de cada uma das suas personagens.
Tão interessante quanto testemunhar a transformação das crianças é assim observar o ponto de partida e de chegada daqueles adultos e os curiosos, incertos e inexplicáveis caminhos que nos conduzem, cheios de erro e tentativa.

Linklater não perde tempo com figuras de estilo, distante dos estafados clichés que dão conta do ciclo das estações ou dos anos que passam. Vamos saltando apenas de uns anos para outros, sempre em frente, sempre sem retorno possível. A estrutura temporal de Boyhood resulta assim muito mais do que um mero artefacto experimental. Mais do que um somatório de momentos da vida, o filme é um pequeno milagre sobre a própria vida no tempo, sobre o que significa afinal crescer.

Boyhood é um filme de culto instantâneo, a obra-prima de Richard Linklater e um dos grandes feitos cinematográficos da década.

2 comentários:

  1. Oi, Daniel!
    Tive a oportunidade de assistir uma sessão exclusiva antes do lançamento oficial e fiz um post pré-lançamento contando a minha admiração pelo trabalho de Richard Linklater e um pouco sobre o filme. Pena que muitos não o entendem e acham seus filmes monótonos. A profundidade é monótona... rs.

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  2. Olá, obrigado pelo comentário.

    Acho que existem dois lados para essa reacção de monotonia de algum público. Por um lado temos muitos espectadores educados visualmente por um cinema mais ritmado, mais apelativo aos sentidos, que desaprendeu de olhar para o valor da imagem.

    Mas temos um outro lado, de que me lembro ouvir falar Paul Auster a propósito do seu filme "Smoke". Auster falava que também a maior parte do público aprendeu a reconhecer e a gostar de histórias muito enraizadas num modelo narrativo novecentista, com uma estrutura muito tipificada e os seus momentos rígidos: exposição, acção crescente, conflito/climax, desenlace/denouement.

    E Auster referia que a vida não é assim. A vida não tem figuras de estilo, não tem elipses, não tem indícios lógicos de que decorre o resto da acção.

    Mas o público tem muitas vezes essa expectativa do que é uma história, muito bem entrelaçada, que fecha no fim todas as pontas soltas desde o início. Gostamos de histórias em círculo. Mas quando queremos falar da vida mesmo, como ela é, então temos de ter em conta o que dizia Paul Auster, que a vida não tem lógica nem narrativa, tem apenas tempo e os seus efeitos sobre as pessoas.

    Penso que Boyhoood é muito sobre isto. Muitos espectadores, a meio deste longo filme, estarão à espera que se abata ali o grande drama, um caso da vida que dê "lógica" a tudo aquilo. Mas a única lógica é a do tempo que passa e a mudança que ele traz sobre as várias personagens, no seu crescimento, na sua transformação enquanto pessoas.

    Penso que o filme é muito sobre isto. Menos sobre uma "história" e mais sobre a vida.

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