Filmar o infilmável
Este texto contém spoilers sobre o filme Interstellar de Christopher Nolan.
Um dos traços da genialidade de 2001: Odisseia no Espaço reside na supressão de explicações para os factos que nos dá a ver. Kubrick não faz concessões ao espectador em benefício da contextualização ou da apreensão mais ampla da sua estrutura narrativa.
Tal não significa que não exista uma lógica inerente aos eventos que convoca. Significa apenas que, na perspectiva humana de tais acontecimentos, a compreensão está para lá da vivência primeira dos seus mistérios.
Na verdade, como nos revela o livro de Arthur C. Clarke publicado no mesmo ano de 1968, existem explicações objectivas e consistentes para o segredo dos monólitos – instrumentos de origem extraterrestre que supervisionam a evolução de novas espécies em planetas dispersos do cosmos – ou para a viagem onírica de Dave no capítulo final da história. Aquilo que muitos tomavam como representação alegórica ou simbólica traduzia a dificuldade em abarcar o encontro com forças e poderes maiores do que o alcance da compreensão pelo Homem. O filme de Stanley Kubrick é assim, por essa mesma razão, muito mais abstracto do que o livro que serve de complemento à sua narrativa.
Em contraponto, talvez o maior defeito de Interstellar seja a necessidade persistente de explicar o que está a acontecer ao espectador. Tratando-se de uma obra claramente inspirada naquele clássico de Kubrick, terá faltado a Christopher Nolan a lucidez para subtrair explicações ao invés de as aditar, a cada passo, em exercícios de repetida exposição. Será porventura reflexo da vontade de validar para o exterior a sólida substância científica que lhe serve de base e que resulta do contributo de Kip Thorne, especialista em física teórica do reputado California Institute of Technology, enquanto consultor do filme.
Sendo Interstellar resultado de um trabalho profundo de consolidação científica na sua representação de conceitos limite como os buracos negros e os wormholes, o filme assenta num trabalho visual que, nos seus melhores momentos, conjuga a grande ciência com uma inspirada arte conceptual. No entanto, fica no ar a interrogação se não seria melhor deixar esses momentos discorrerem, na sua plenitude artística, despojados dos fundamentos teóricos que os sustentam.
Uma das ideias mais interessantes que o filme elabora consiste na especulação em torno de um evento de cinco dimensões. O conceito tem uma base simples. Habitamos uma realidade física de três dimensões onde somos livres de aceder, em teoria, a qualquer ponto do espaço. A estas soma-se uma quarta dimensão: o tempo. Nesta última, no entanto, estamos presos a um ponto fixo – o presente – estando-nos vedada a possibilidade de movimento, em qualquer direcção, seja para o passado ou para o futuro.
O que aconteceria então se pudéssemos, por um instante, transcender para uma outra dimensão onde fosse possível deslocarmo-nos através do tempo, com a mesma liberdade com que nos deslocamos no espaço. É esse o conceito a que o filme dá corpo através do intrigante Tesseract – uma construção desenhada por seres que transcenderam as quatro dimensões da realidade humana, tornando-se capazes de apreender a integridade do tempo no Universo.
É viajando no Tesseract que Cooper, um dos cosmonautas da expedição ao buraco negro de Gargantua, consegue percorrer um ponto do espaço através do tempo – agora transformado numa dimensão física não linear – e assim comunicar com o passado. A ideia é engenhosa e revela-nos Interstellar em toda a sua grandeza; que a arte se revela a melhor forma de explicar ciência, sem que fossem precisas palavras, apenas dando corpo à abstracção daquele profundo mistério.
Apesar das suas fragilidades narrativas, Interstellar é uma das grandes obras de ficção científica desta década e um filme que ficará na história do género, para discutir e revisitar durante muitos anos.
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