Quando os jogos contam histórias
No início de 2012, David Cage, director e argumentista da produtora francesa de videojogos Quantic Dream, revelou uma curta metragem de apresentação de um novo motor gráfico híper-realista em desenvolvimento pela sua equipa. Tendo lugar num futuro próximo, KARA dava a conhecer uma andróide que experienciava emoções humanas durante a sua construção numa linha de montagem.
A intrigante tech-demo, que contava com a interpretação da actriz americana Valorie Curry, revela-se agora como a base para um novo jogo intitulado Detroit: Become Human. Reencontramos assim Kara despertando para a consciência numa Detroit futurista, dominada por tensões sociais emergentes, aprendendo a viver entre os humanos e enfrentando os desafios da sua condição anómala.
Este novo trabalho de David Cage não deixará de relançar o debate, recorrente na comunidade dos videojogos, que parte de interrogar a validade deste meio enquanto veículo para a expressão narrativa. Devem os videojogos servir para contar histórias? E será que a presença de narrativas diminui o objecto do jogo?
São discussões que têm tantas vezes como ponto de partida uma visão redutora quanto a esta nova plataforma de expressão cultural entendida literalmente enquanto “jogo” – definição que se afigura hoje obsoleta tendo em conta a diversidade de manifestações que nela têm lugar.
Não se trata de argumentar que todos os videojogos devem ser impulsionados por uma história. Os jogos podem ser bons quer tenham uma dimensão narrativa ou não e, de igual modo, a presença de uma boa história não implica necessariamente que se esteja na presença de um bom jogo. Mas os videojogos, enquanto veículo de criatividade e ficção, têm vindo a revelar-se muito mais do que um mero exercício de progressão.
Está assim em causa um entendimento limitado do próprio conceito de “jogabilidade”. A função do jogo, poderia invocar-se, consistiria apenas em estabelecer barreiras ao jogador. Superando essas barreiras, o participante progride e, transpondo todos os obstáculos, “ganha”.
Uma tal leitura choca naturalmente com objectos centrados na exposição narrativa, seja através da manipulação de graus variáveis de liberdade – como encontramos em Heavy Rain ou, mais recentemente, em Life is Strange – ou tão só a partir de um percurso de descoberta e revelação – tal como em Dear Esther, The Stanley Parable ou Gone Home.
É neste interessante campo de debate que a produtora Quantic Dream tem vindo a ocupar um lugar central, explorando novas soluções de interface para envolver o jogador com a acção presente no ecrã. A função principal da jogabilidade não será assim, necessariamente, “ganhar”, mas também “sentir”. A interacção está lá para convocar a empatia e produzir uma conexão mais profunda, emocional, da própria experiência do jogo.
Apesar de resultados inconstantes, os trabalhos de David Cage, têm procurado desafiar os limites da interactividade e o papel dos videojogos enquanto suporte para contar histórias. As suas obras são uma reinvenção sofisticada do género de aventura gráfica point-and-click que se tornou tão popular durante a década de noventa, assente na progressão narrativa, no mistério e na resolução de quebra-cabeças. Mas as suas experiências pretendem igualmente convocar o jogador a confrontar-se com a necessidade de fazer escolhas capazes de moldar o curso de uma história, sem que se afigure o que esteja certo ou errado, por vezes mesmo sem a pendência de um game over. O que sabemos é que cada escolha tem consequências e que, porque escolhemos, e porque essas escolhas irão determinar o destino da nossa viagem, tudo se torna definitivo.
Aí reside a maior beleza destes exercícios. O facto de, tal como na vida, o jogador ser confrontado com a necessidade de prosseguir o seu rumo, para lá de tudo, carreando consigo as implicações das suas acções, dos sucessos e dos fracassos, sabendo que estes irão impactar a cadeia de eventos que se seguirá.
A fórmula é arriscada e nem sempre isenta de limitações. Em Beyond: Two Souls tornavam-se evidentes os artifícios em que assentava a aparente liberdade do jogador – em particular para aqueles que experimentassem desviar-se do caminho pré-determinado pela narrativa. Eis um jogo que implora pela colaboração voluntária dos participantes e que, não encontrando reciprocidade, vê desmoronar o seu realismo.
Ao contrário do que sucede nos filmes, os videojogos são manifestações abertas que permitem ao jogador tornar-se participante e director da própria experiência através de graus variáveis de interactividade e liberdade. No entanto, cada escolha que o jogador faz dentro do perímetro daquela ocorrência é determinado pela visão e pelos parâmetros definidos pelos seus criadores. A interactividade é uma parte integral da estrutura do jogo, tal como o seu design conceptual, a sua música, a sua história.
Detroit: Become Human irá certamente convocar uma nova reflexão sobre as potencialidades e as fragilidades da exposição narrativa e do hiper-realismo cinemático – agora abeirando-se dos limites do paradigmático uncanny valley . Será incapaz de superar os condicionalismos sentidos no passado ou conseguirá David Cage conjugar as liberdades próprias do território do jogo com as virtualidades do mais clássico storytelling? – eis a interrogação que fica enquanto aguardamos pelo lançamento deste promissor projecto de ficção científica com a chancela da Quantic Dream.
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