Educação para a vida online



O que não deixa de ser curioso no seu discurso (…) é o facto de todo ele tentar encerrar-se em questões de natureza técnica, repelindo qualquer reflexão cultural sobre o Facebook. Mais exactamente: Zuckerberg não quer (ou não é capaz de) reconhecer que qualquer dispositivo técnico – para mais com a dimensão planetária que o seu negócio adquiriu – envolve sempre os modos de viver, pensar e comunicar dos cidadãos, quer dizer, os valores da sua existência. Numa palavra: a sua cultura.
— João Lopes, Facebook: os "erros" de Mark Zuckerberg.

O recente escândalo que envolveu a Cambridge Analytica, uma empresa de consultoria política sediada em Londres que levou a cabo uma operação de data-harvesting em larga escala através do Facebook, vem lembrar-nos de uma frase que se popularizou na internet: se não estás a pagar por um serviço, não és o cliente; és o produto que está a ser vendido.

Com o conhecimento que hoje podemos ter sobre a actividade das grandes empresas que dominam o tráfego na rede, onde se destacam a Google – também proprietária do YouTube – e o Facebook, não deixa de surpreender o facto de grande parte do público desconhecer aspectos básicos do modo como estes gigantes operam. São curiosos alguns desabafos mais singelos de utilizadores que falam “do seu Facebook”, ignorando não só que o lugar que ocupam na plataforma de Mark Zuckerberg não é um espaço privado individual seu, como não é sequer um espaço público onde todos podem ver aquilo que partilham. Trata-se, afinal, de um espaço privado de outrem; uma empresa de informação privada que vende o seu público – todos nós – a um vasto conjunto de empresas e serviços – tais como a Cambridge Analytica.

O sucesso que corporações como o Facebook ou a Google foram capazes de alcançar depende grandemente do conhecimento profundo que estas empresas reúnem a nosso respeito a partir da monitorização de tudo o que fazemos enquanto estamos online, traçando automaticamente, através de poderosos sistemas de processamento de informação, perfis muito complexos sobre aquilo que somos, as nossas tendências e preferências. Num tempo em que a atuação destas plataformas se revela tão intrusiva sobre as vidas de cada um de nós, importa ainda mais ter presente que a acção destas páginas e, acima de tudo, a informação que recolhem, vai muito para lá das coisas que escrevemos ou partilhamos, dos comentários ou dos “gostos” que exprimimos na rede.



Ainda e sempre, não se trata de demonizar o Facebook (…). Trata-se tão só, para já, de contrariar a perspectiva tecnocrática – também política, sem dúvida – segundo a qual se está apenas a viver um percalço técnico. Importa exigir um pouco mais de todos nós e perguntar de onde vem – e, sobretudo, para onde vai – esta cultura virtual que leva milhões de pessoas a tratar muitos dados da sua identidade (social, familiar, muitas vezes íntima) como coisa partilhável com uma empresa gerada na perspectiva de angariar gigantescas receitas publicitárias. Se não soubermos formular tal questão, então devemos concluir que aquilo que oferecemos ao Facebook envolve o nosso próprio conceito de humanidade.
— João Lopes, Facebook: o alarmismo mediático.

Somos nós, afinal, que construímos, voluntariamente, ao passo e passo de cada post e like, ou involuntariamente, através das aplicações que instalamos nos tablets e telemóveis, os nossos perfis pessoais nas bases de dados destas corporações privadas. Importa por isso dramatizar junto do público, e em especial dos mais jovens, o modo como tudo aquilo que hoje fazemos se pode vir a repercutir no futuro.

Em alguns países, em particular nos Estados Unidos, é já uma prática regular de grandes empresas ter em conta a identidade online dos candidatos em processos de contratação – recorrendo para isso a consultoras altamente especializadas. No momento em que o candidato se apresenta numa entrevista de emprego, caso tenha sido pré-seleccionado, o júri já tem em sua posse um perfil pré-elaborado daquele indivíduo que se estende desde as suas preferências e orientações pessoais, simpatias políticas, gostos, actividades e até mesmo traços da sua personalidade: se social ou introvertido, dinâmico ou passivo, reactivo ou pensativo, etc.

É sabido que em muitas universidades americanas os departamentos de admissão também procedem ao escrutínio prévio do perfil dos candidatos na internet, aconselhando os alunos a removerem imagens lesivas, mensagens de cariz político ou humor considerado inadequado ou ofensivo. E são também conhecidos alguns casos em que episódios mais controversos de exposição da vida privada se revelaram, anos mais tarde, obstáculos inadvertidos ao avanço de carreiras profissionais e políticas.

Existem muitas formas de encarar esta realidade que tenderá a universalizar-se. Podemos optar pelo silêncio, procurando eliminar os traços da nossa pegada digital, ou podemos, em alternativa, assumir de forma consciente os riscos e as consequências de viver este nosso tempo. Mas, para que cada um possa verdadeiramente escolher, é fundamental estar informado quanto ao alcance e à complexidade deste novo meio que habitamos, e esse saber deve envolver todos os cidadãos, pais, professores, especialistas, com o apoio do Estado e o suporte esclarecido dos meios de comunicação. Caso contrário, serão as gerações mais novas que pagarão o maior preço, crescendo por defeito num mundo cheio de armadilhas. Tão apelativo, agora, quanto perigoso, anos mais tarde.

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