A poesia da sobrevivência



Enquanto tiveres um só fôlego dentro de ti, tu lutas. Tu respiras. Continuas a respirar. Quando a tempestade cai e tu te ergues em frente a uma árvore, olhando para os seus ramos julgarás por certo que vai cair. Mas se atentares no seu tronco, então compreenderás a sua estabilidade.

Em criança recebi um livro de banda desenhada chamado História Sem HeróisHistoire Sans Héros, no original, com texto de Jean Van Hamme e desenhos de Daniel Henrotin – relatando a aventura desesperada de um grupo de homens e mulheres que sobrevivem à queda de um avião no coração da Floresta Amazónica.

Recordo o forte impacto que História Sem Heróis teve em mim nesse tempo. Era novo, porventura demasiado novo, para aquele género de narrativa dirigida a um público mais adulto. É tão mais fácil sermos cativados por heróis estereotipados quando estamos a crescer: personagens corajosas, despojadas de egoísmo e, afinal, de todo o sentido da realidade que habitam a maior parte da ficção popular.
Ora aqui estava um livro que, como o próprio título sugeria, não oferecia heróis claros em quem o leitor pudesse projectar um sentido de identidade. Antes era povoado por personagens plenas de defeitos e contradições, enfrentando os seus próprios demónios – medo, egoísmo, ódio – até compreenderem que apenas em conjunto, com solidariedade e coragem, poderiam encontrar o caminho para a liberdade.

Serve a evocação deste clássico de banda desenhada, publicado nos idos de 1977, para ilustrar a ideia de que também The Revenant é, de certo modo, uma história “sem heróis”. O mais recente filme de Alejandro Gonzáles Iñárritu desafia o espectador com um olhar despojado de juízo moral, confrontando-nos com um mundo habitado por personagens moralmente ambíguas, entranhadas no seu tempo e nas suas circunstâncias.
Convidando-nos a embarcar numa viagem ao passado, o filme recusa-se a produzir um juízo fácil da História pelos padrões culturais do presente. Trata-se apenas de revelar a natureza daquele grupo de homens, na sua complexidade e a partir das suas próprias contingências.



O realizador mexicano faz contrapor a uma narrativa linear um contexto de grande densidade dramática – algo que parece perder-se nas entrelinhas junto de alguns espectadores e de parte da crítica. Certo é que no retrato que rodeia os eventos que nos conta se inscreve o apocalipse da cultura nativa e a voragem predadora, inexorável, da potência ocupante. Dá-nos a testemunhar, acima de tudo, o modo como os homens se tornam monstros, assim se desvanecem os contornos de civilização.

Se The Revenant é uma portentosa viagem visual, muito o deve ao trabalho de direcção de fotografia de Emmanuel Lubezki. A obsessão “Kubrickiana” pela luz natural perseguida por Iñárritu atribui ao filme uma temperatura única e a fotografia de Lubezki faz daquela floresta gelada uma paisagem inesquecível.

É no contraponto entre a imensidão suspensa da paisagem e a desolação humana que a atravessa que tem lugar a odisseia de Hugh Glass. O regresso do homem da fronteira, interpretado por Leonardo DiCaprio com um ímpeto visceral e uma crua fisicalidade, conta-nos uma história maior sobre aquilo que, no mais hostil dos mundos, nos torna humanos: na força e na dureza dos afectos – pela ex-companheira nativa, pelo filho – como substância mais íntima da própria sobrevivência num mundo de violência e agressão.

Fica a ligação para o interessante documentário A World Unseen, reflectindo os temas presentes no filme e o desafio que constituiu a sua rodagem, levada a cabo em condições de grande adversidade.

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