
Este texto foi publicado na Revista Intersecções, Ordem dos Arquitectos, Alentejo, Edição #1, novembro 2025.
O relatório de monitorização do Plano de Recuperação e Resiliência divulgado pela Estrutura de Missão Recuperar Portugal no mês de setembro reporta uma taxa de execução da ordem dos 40%. Da dotação global de financiamento prevista, que ascende a 22 000 M€, foram já pagos cerca de 8 000 M€ aos beneficiários finais, públicos e privados, sinalizando o término bem sucedido das suas operações de investimento.
A cerca de um ano do termo do PRR, o discurso político é unânime em determinar a urgência da sua concretização como um desígnio nacional. No entanto, apesar da vontade política, uma conjugação de fatores externos e internos tem vindo a dificultar a capacidade de execução por parte das entidades promotoras, em particular nos casos em que esse investimento depende da construção de obra pública.
As empresas do setor sinalizam a escassez de mão de obra e a falta de profissionais qualificados para assegurarem a gestão e a direção técnica das empreitadas como razões para não concorrerem aos muitos procedimentos promovidos pela administração pública. As próprias fileiras de produção de materiais de construção revelam dificuldades de resposta às solicitações que lhes são feitas, deixando até os grandes clientes em lista de espera. A estas dificuldades somam-se queixas de um quadro de excessiva burocracia e desnecessária complexidade dos processos de gestão dos programas de candidatura, a par com uma legislação pesada ao nível da contratação pública.
Se a atual taxa de execução do PRR talvez não seja, por si só, motivo para pânico, um olhar mais fino sobre os números permite-nos levantar o véu sobre aquela que pode ser a real situação no domínio da construção de obras públicas. Para isso temos de olhar para o universo dos beneficiários diretos do PRR que reportam dados relativos a procedimentos de contratação pública. São eles: Escolas, Autarquias e Áreas Metropolitanas, Entidades e Empresas Públicas.

Centrando-nos neste grupo – onde encontramos os principais promotores de obra pública – verificamos que a taxa de execução se resume a 33% – contrastando com os 49% dos restantes beneficiários.

De salientar que as Escolas, com uma taxa notável da ordem dos 58%, são recetoras de uma expressiva componente de investimento no domínio da transição digital na educação, cuja dotação ascende a 605 M€ e que se reflete, maioritariamente, em procedimentos de aquisição de bens e serviços. Como termo de comparação, as Autarquias e Áreas Metropolitanas apresentam uma concretização de apenas 26% da dotação que lhes está atribuída.
São valores que reforçam o sentimento vivido no terreno pela administração local e central, com as dificuldades em levarem a cabo, com sucesso, muitos procedimentos de empreitada. Perante a falta de capacidade de resposta do setor, os concursos repetem-se, tantas vezes sem interessados, obrigando ao reforço dos preços base muito para lá do inicialmente previsto em projeto – contribuindo, por sua vez, para o aumento generalizado dos preços da construção.
Certo é que os projetistas não deixaram de saber fazer orçamentos de um dia para o outro. A situação atual reflete uma anomalia sentida por todos. Assim, mais do que procurar as razões para explicar as dificuldades sentidas momentaneamente pelos agentes públicos e privados, importa refletir sobre a conjugação complexa de fatores que nos trouxe até aqui.

Investimento público em construções, máquinas e equipamentos em Portugal entre 1995 e 2025 (via Pordata).
O país viveu um ciclo de investimento público relativamente estável no domínio das obras públicas entre 2000 e 2010, culminando com um volume de empreitadas no valor de 6 687 M€ em 2010, seguido por uma queda abrupta que se prolongou nos anos seguintes, quando os efeitos da crise financeira de 2007-2008 se abateram finalmente sobre a Europa.
Curiosamente, o mercado privado da construção já refletia, desde 2008, os receios da crise, com uma descida gradual, mas significativa, do número de licenças de construção emitidas em Portugal – passando das cerca de 4 mil licenças mensais em 2008, para valores mais próximos do milhar de licenças emitidas mensalmente em 2015 – o valor mais baixo registado neste século.

Emissão de licenças de construção em Portugal entre 2000 e 2025 (via Banco de Portugal).
A convergência de políticas públicas de forte contenção e austeridade seguidas pela União Europeia neste período, em simultâneo com a retração da atividade privada, tiveram como resultado uma inegável redução do setor, ditando o fecho de muitas empresas de construção, em especial de escala intermédia, e a consequente redução de mão de obra, com a saída de trabalhadores para outras áreas profissionais ou para o estrangeiro, em busca de melhores oportunidades de emprego.

População empregada no setor da construção em Portugal entre 2000 e 2024 (via Banco de Portugal).
É certo que o mercado da construção recuperou gradualmente ao longo da última década, passando dos mínimos de 2015 para um número da ordem das 2,5 mil licenças de construção emitidas mensalmente em 2025. No entanto, este valor revela-se pálido quando comparado com os anos anteriores à crise financeira, estando ainda mais afastado do registo igual ou superior a 10 mil licenças emitidas mensalmente no ano 2000.
Também os dados da população empregada no setor da construção são indicadores de uma recuperação, mas esse número, atualmente próximo dos 350 mil trabalhadores, significa apenas o regresso aos valores de 2011, distantes do quadro estável, próximo dos 450 mil trabalhadores, observado durante a primeira década deste século.
O que todos estes números nos dizem é que o setor da construção ainda não recuperou completamente do impacto da crise vivida há uma década, existindo hoje menos empresas, menos trabalhadores e menos obras edificadas.
O que todos estes números nos dizem é que o setor da construção ainda não recuperou completamente do impacto da crise vivida há uma década, existindo hoje menos empresas, menos trabalhadores e menos obras edificadas. A estes juntam-se ainda outros fatores, como as repercussões da crise pandémica e da guerra no aumento de preços de matérias-primas, materiais de construção, máquinas e equipamentos.
Em resultado, os custos da construção aumentaram acentuadamente para todos. Os efeitos são sentidos, não apenas pela administração pública, mas também pelos promotores privados, com consequências económicas e sociais graves como aquelas que são hoje bem reconhecidas, por exemplo, no domínio da habitação.
É sobre este tecido frágil que o ciclo de financiamento do PRR veio aplicar um vasto volume de investimento público, só equiparável aos níveis registados entre 2000 e 2010, quando o setor da construção era significativamente mais robusto do que é hoje. Como termo de referência, só nos primeiros sete meses de 2025 foram lançadas a concurso, pelo Estado, empreitadas no valor de 6 871 M€, tendo sido, no mesmo período, celebrados contratos no valor de 3 520 M€.
Este enorme esforço de execução de obra pública sobre um setor já de si diminuído, colocando agentes públicos e privados em concorrência uns com os outros e entre si, num curto espaço de tempo, constituiu uma autêntica tempestade perfeita. Os governos da Europa estão a pedir aos seus setores produtivos que concretizem, em cinco anos, aquilo que devia ser feito num prazo bastante mais extenso. Os resultados são, por isso, previsíveis. Os países, em especial aqueles mais atingidos pelos ciclos de austeridade, como o nosso, ficarão inevitavelmente aquém das metas traçadas.
A lição que nos deixa o PRR é que, quando não existe capacidade de fazer, não há dinheiro que resolva. (...) Os países, em conjunto com a UE, devem garantir a estabilidade e a previsibilidade da carteira de projetos públicos, assegurando um fluxo continuado de investimento, em vez de ciclos concentrados.
É conhecida a frase de John Maynard Keynes, dita aos microfones da BBC em 1942, que “qualquer coisa que possamos fazer, podemos pagar”. A lição que nos deixa o PRR é que, quando não existe capacidade de fazer, não há dinheiro que resolva. Não estão em causa os muitos efeitos positivos que o PRR nos deixa, trazendo um impulso necessário ao investimento em equipamentos e infraestruturas, um forte incentivo à criação e manutenção de emprego e à consolidação de condições de maior resiliência económica. No entanto, os vários agentes políticos, os governos em conjunto com a União Europeia, devem fazer uma reflexão sobre a necessidade de concretizar estratégias de investimento mais dirigidas e sustentadas para o longo prazo.
Embora o PRR represente uma oportunidade histórica de investimento e modernização do país, o esgotamento da capacidade de execução do setor da construção veio revelar aquele que parece ser um dos seus principais efeitos negativos de curto prazo. O excesso de empreitadas públicas, concentradas num período reduzido, veio gerar inevitáveis constrangimentos logísticos, tornando-se num fator acrescido de pressão sobre os custos das cadeias de produção que pode vir a comprometer a qualidade e a eficiência das obras realizadas. O plano que se pretende como motor de sustentabilidade e crescimento corre assim o risco de deixar consequências negativas, no presente e para o futuro, caso não sejam encontradas soluções continuadas que reforcem a capacidade produtiva e organizativa de toda a fileira da construção civil.
Para que o PRR não seja apenas um esforço conjuntural, mas um verdadeiro catalisador de transformação estrutural, a União Europeia terá de adotar uma visão estratégica, com medidas extensas e abrangentes, apostando na formação e na qualificação profissional, técnica e operacional, apoiando as empresas com incentivos à inovação e à adoção de novas metodologias, e planeando, acima de tudo, o escalonamento de obras de modo a evitar picos de procura que sobrecarreguem as capacidades do setor.
Os países, em conjunto com a UE, devem garantir a estabilidade e a previsibilidade da carteira de projetos públicos, assegurando um fluxo continuado de investimento, em vez de ciclos concentrados. De outra forma, não será possível às empresas planearem os seus recursos de forma sustentada, ficando à mercê da volatilidade dos ciclos económicos.
Também aspetos inovadores, como a introdução de critérios sociais e ambientais, devem ser implementados a partir dos próprios agentes da indústria. Mais do que decretar novas exigências, de cima para baixo, a transformação dos referenciais do setor deve ser construída com estímulos às empresas, para que estas consolidem, de forma progressiva e sustentada, os objetivos de inovação, inclusão e sustentabilidade, apostando também na investigação em novos materiais, em técnicas de construção mais ecológicas e eficazes, capazes de competir num mercado global e multipolar.
Por fim, o desejado aumento de escala e competitividade do setor implicará a criação de condições para atrair e reter mão de obra mais qualificada, do projeto à construção, melhorando as condições laborais e a atratividade desta área profissional para as gerações mais jovens. São desafios que exigem, acima de tudo, aprender com as tempestades do presente, para que seja possível realizar o futuro melhor que todos desejamos.
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