|transcender|

Terça-feira

Há quem confunda arte com agressão. Cada afirmação tem de ser um manifesto, cada gesto um murro na mesa. Mas violento não é sinónimo consequente ou pertinente.

Arte é um conceito difícil de definir mas que reside numa certa ideia de transcendência. A arte é uma expressão do espírito humano e do modo como nos relacionamos com o mundo. O momento da arte é o da transformação do olhar, para usar uma citação do crítico de cinema João Lopes, abalando toda a verdade do que somos. É o momento de transcendência em que nos apercebemos que a nossa compreensão da vida se transforma, aumenta nesse instante, como alguém que descobre e diz: sim, eu sei exactamente de que é que tu estás a falar.
Se existe alguma razão para a arquitectura ser “erudita” é por procurar exactamente essa transcendência da arte. O modo como projectamos o espaço define o que somos enquanto humanos. Por isto saímos da caverna, porque já não nos revemos nela. E por isso a arquitectura não é uma arte amordaçada. O que a define é exactamente o homem. O que define uma porta é o homem a passar nela. Se não passar não é uma porta. Há quem encontre nos “constrangimentos” da realidade um espartilho para a sua imaginação, ao ponto do próprio cliente se tornar num constrangimento do artista. Esta atitude não tem nada de erudito, é uma mentira. Não tem nada que ver com arte, nada que ver com liberdade. É tão absurda como dizer que as regras da gramática são um constrangimento para o escritor ou para a literatura.
Uma vez citei aqui Frank Lloyd Wright: Freedom is from within. A liberdade vem de dentro. Repito estas palavras, porque o verdadeiro constrangimento do arquitecto artista é ele próprio. A nossa maior condicionante, somos nós.
Ao longo da nossa vida pessoal e profissional aplicamos as referências que conhecemos e por isto travamos uma batalha até ao fim dos nossos dias. A da busca de conhecimento, para alargarmos o nosso vocabulário de referências, a nossa capacidade de percepcionar os problemas e encontrar as soluções mais lúcidas. Mas para lá disto temos a obrigação de nos esforçar para projectar essas soluções como Arquitectura, essa com “A” grande. A arquitectura faz-se com contemporaneidade, com verdade, com sentimento, com desejo de transcender. Para que uma parede não seja apenas uma parede mas uma palavra, e a escala se torne um sentido e a experiência de a sentir eleve o espírito humano. O mesmo faz o músico, mas as suas ferramentas não são o tijolo, a pedra, a madeira ou o ferro, mas os instrumentos musicais, as cordas e os metais. O mesmo faz o pintor, ou o fotógrafo, ou o escritor.

Quando perguntaram ao Peter Eisenman se se considerava um pós-modernista ele respondeu algo como: sim, mas isso é dizer muito pouco. É evidente que vivemos na pós-modernidade mas ainda hoje não sabemos bem o que isso é ou para onde vai. E não falo do pós-modernismo segundo Charles Jencks que é uma mistificação: a mixagem eclética de elementos estéticos, antigos e modernos, que conduziram a arquitectura dita “pós-modernista” a um beco sem aparente saída. Pura e simplesmente, como alertava Eisenman, somos pós-modernistas porque somos herdeiros da grande tradição modernista. Esquecem-se os que auguram a falência da modernidade, acusada de desumanizadora, que alí se fundaram os princípios da arquitectura e do urbanismo enquanto serviço público. E devem ser relembrados que os grandes modernistas da história, a começar em Le Corbusier, foram homens que tentaram constituir uma doutrina que pusesse a industrialização e as novas tecnologias da construção ao serviço do homem. Fizeram-no com base nas possibilidades abertas pelos progressos tecnológicos e científicos do século XX e fazendo frente aos graves problemas que a transformação das sociedades (e das cidades) introduzia na realidade humana.
Muitos dos problemas acusados à arquitectura e urbanismo modernistas são na verdade problemas que não têm a sua génese na arquitectura. A transformação da economia social com a fixação de estruturas industriais nas cidades. A consequente migração de população para áreas urbanas e as novas hierarquias sociais. As exigências crescentes das populações no que respeita a necessidades básicas, como emprego, habitação, saúde, segurança social, ensino. O alastramento do automóvel e a consolidação da sociedade de consumo.
Os arquitectos e urbanistas do modernismo tentaram enfrentar estes problemas da comunidade urbana, mas era uma batalha difícil e sem precedentes. Aprendeu-se com o caminho e por isso olhamos para trás e parece fácil apontar os erros cometidos. Mas falhou o urbanismo modernista porque as cidades se encheram de automóveis? Falhou o modernismo porque as cidades cresceram sob as pulsões promotoras do fazer cidade ditadas por interesses económicos, políticos, imobiliários?
O modernismo falhou como tem falhado em tudo o homem (na economia, na sociologia, na política, etc.) porque a realidade é complexa e ainda não fomos capazes de construir modelos que respondam a essa complexidade, que é a da vida humana. Nisso sim, terá falhado na arquitectura aquilo a que se chamou de funcionalismo, porque a vida não se faz só do fazer material dos gestos mas também da necessidade de prover a uma experiência espiritual da arquitectura e da vida. Por isso, é muito interessante questionar de que falamos quando falamos de “habitar uma casa”. O que é que torna uma casa “habitável”? Serve uma casa só para o habitar (das funções) do corpo, ou também do espírito? A resposta é evidente e abre caminho a um mundo interminável de possibilidades de projectar. Derrubar essas barreiras, que são as que temos na mente, são o caminho para chegar à arquitectura em tudo aquilo que ela pode e deve ser. Ou seja, para transcender.

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