É a lei, estúpido! (2)

Expliquei no início do texto anterior que apresentava um exemplo de vazio legal, de forma simplificada. Não pretendia sujeitar os leitores a uma argumentação jurídica exaustiva sobre a matéria. No entanto, e tendo sido levantadas algumas questões nos comentários e entre elas, um ou outro equívoco, importa desenvolver o contexto legal do caso para esclarecer todos os que ficaram interessados pelo tema.

Afirmei no contexto da situação específica que estava a expor ser obrigatória a apresentação de licença de utilização do imóvel no acto da escritura de venda do mesmo. Em comentário, e. afirmou que todas as construções inscritas na matriz com construção anterior a Agosto de 1951 (que não sejam um monte de pedras mas um prédio urbano em ruínas) não carecem de licença de habitação para serem vendidas.
Importa explicar:

1) Genericamente, todas as construções inscritas na matriz predial com construção anterior a Agosto de 1951, data da aprovação do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), estão isentas de licença de utilização (LU);
2) Esta isenção, no entanto, já não se estende aos imóveis que (a) mesmo tendo sido construídos antes dessa data tenham sido sujeitos a licenciamento municipal; ou que (b) tenham sido âmbito de projectos de alteração em data posterior, a partir da qual passaram a estar igualmente sujeitos a emissão de LU.

Para além destes casos existem ainda excepções em que os imóveis estão isentos de apresentação de licença no momento de escritura, situações que foram definidas pelo Decreto-Lei n.º 281/99 de 26 de Julho. São elas:

3) Construções novas ou fracções autónomas em regime de propriedade horizontal, em que tenha sido requerida licença de utilização num período superior a 50 dias, que não tenha sido indeferido nem sido notificado para o pagamento das taxas respectivas;
4) Prédios urbanos não concluídos com licença de construção em vigor ou edifícios inacabados (prédios em fase de construção interrompida, quando não tenha sido emitida a correspondente licença de utilização e já tenha caducado a licença de construção em virtude de falência ou insolvência do anterior titular da licença de construção, de abandono da obra por facto não imputável ao titular da licença ou ainda de efectivação da garantia bancária), sendo neste caso apenas necessária a exibição da licença de construção, independentemente do seu prazo de validade. Estas situações não se aplicam na transmissão de fracções autónomas em propriedade horizontal ou moradias unifamiliares.

Este Decreto-Lei (curiosamente aquele que ilustrei na imagem) apresentou em preâmbulo uma exposição sobre as divergências de interpretação e os problemas resultantes da sua aplicação. Apesar de longo, recomendo a leitura do mesmo como belo exemplo da nossa linguagem jurídica.

O artigo 44.º da Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro, na redacção atribuída pelo Decreto-Lei n.º 74/86, de 23 de Abril, foi mantido em vigor por força do n.º 6 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro.
A disposição do seu n.º 1 daquele preceito tem suscitado duas interpretações opostas: segundo uns, a expressão «licença de construção ou de utilização, quando exigível» significa que a escritura pública que envolva a transmissão da propriedade de prédios urbanos pode ser celebrada desde que uma das licenças seja exibida, aludindo a expressão «quando exigível» aos prédios para cuja construção a lei não obrigava a licenciamento; segundo outros, a mesma expressão não atribui valor equivalente àquelas licenças, querendo significar que deve ser exibida a licença que, em concreto, couber, ou seja: a de construção, no caso de a compra incidir sobre prédio em construção; a de utilização, se respeitar a prédio já concluído.
A divergência, pelo seu relevo no tecido económico-social, carece de aprofundada reflexão e inserção na sistemática normativa do regime de licenciamento de obras particulares, pois é, por excelência, nesse domínio que a norma em causa decisivamente interfere.
Entretanto, importa transitoriamente superar os efeitos gravemente nocivos de tal diferendo interpretativo, o qual, no segundo termo da alternativa, pode inviabilizar a transmissão de milhares de prédios urbanos; do mesmo passo, é necessário pôr cobro à incerteza em que se encontram numerosos adquirentes de fracções autónomas transmitidas apenas mediante licença de construção.
Até melhor estudo, de carácter mais genérico, opta-se por uma solução que, salvaguardando os limites razoáveis de segurança do comércio jurídico, vá de encontro às compreensíveis preocupações de todos os interessados.


As excepções introduzidas pelo Decreto-Lei n-º 281/99 não isentam o grande conjunto de casos em que a existência de uma situação de insalubridade torna impossível a emissão da licença necessária à sua transmissão como ilustrei no meu texto anterior. Mesmo aqueles em que o comprador pretende proceder à recuperação do imóvel. Nesses exemplos, desconheço quais são as maneiras hábeis de contornar a lei que supõe o comentário de e. e para as quais o seu advogado talvez nos pudesse fazer o favor de iluminar.

Em conclusão, importa observar o que escreveu criolinha num outro comentário. Diz e bem que a licença de utilização não é por si só garantia de condições de habitabilidade (é apenas o culminar de um processo de licenciamento municipal) e que o mecanismo legal que impede a venda de imóveis sem LU teve como principal objectivo o combate à construção clandestina. Este facto é muito importante para compreender os pressupostos deste mecanismo jurídico e os seus problemas. É que se a existência de licença de utilização faz prova de legalidade do imóvel, a sua falta (ou a impossibilidade de a obter) já não faz prova de ilegalidade (e muito menos clandestinidade). E é neste espaço que está o vazio legal de que falei, que existe de facto e se constata na nossa prática profissional e na vida de alguns cidadãos. O que me leva de volta ao conselho de e. para consultar um perito em legislação quando se trata de interpretar a lei. Tanto quanto entendo esta sugestão, devo dizer que concordo na mesma medida em que deveriam os nossos legisladores consultar peritos das áreas para as quais produzem doutrina jurídica.

3 comentários:

  1. Acabei de o ler.
    Como respeito mt o seu trabalho neste blog, tentarei procurar a resposta à sua questão, que virá, certamente, de forma sucinta.
    e.

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  2. Boa noite.Gostaria que me exclarece se sobre um assunto muito delicado .Doaram me uma moradia que nao tem licença de habitaçao e tb nao esta legalizada a camara nao me quer por agua ,se eu por acaso limpar o furo que la existe posso ir para la morar sem problemas?Alguem me pode impedir de viver naquilo que e meu? Obrigado

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