Dois terços da minha vida profissional foram passados no Estado. Hoje, uma grande parte do meu trabalho na função pública – talvez mesmo a mais importante – consiste na produção de programas e cadernos de encargos de concurso para a elaboração de projectos de arquitectura.
Aquilo que eu e a equipa com que trabalho procuramos fazer é detalhar, tanto quanto possível, os objectivos, as necessidades, mas também todas as contingências que enquadram uma determinada obra. Por vezes esse esforço obriga a avançar um pouco pelo projecto adentro, desenvolvendo uma planificação conceptual ao nível de estudo prévio ou anteprojecto, mas mais importante do que isso, o elemento crucial reside em estabelecer o equilíbrio correcto entre o desejo daquilo que se pretende ver projectado e o enquadramento objectivo da gestão funcional e financeira em que a obra se deve vir a desenvolver.
Diria, em resumo, que a parte mais importante do meu trabalho consiste em poupar dinheiro ao Estado ou, pelo menos, garantir uma adequada aplicação dos seus meios financeiros na procura em obter a melhor qualidade possível. Não é um trabalho fácil e aprender a fazê-lo bem feito tem sido uma tarefa de vários anos. Trabalhar com as contingências é um acto contra-natura para os arquitectos. Em geral procuramos encontrar modos de fugir ao que chamamos de condicionantes. A minha missão tem sido fazer o oposto. Abraçar essas condicionantes e fazer delas uma parte determinante do encontro das soluções de arquitectura.
Uma das maiores fragilidades na promoção de arquitectura (e urbanismo) por parte das muitas entidades estatais – ministérios, autarquias e demais instituições públicas – reside na programação débil dos projectos que desenvolvem. Poucos parecem compreender que o projecto de arquitectura é algo que começa muito antes de uma concepção formal ou mesmo de um organigrama de funções. Que o acto de promover algo depende de uma necessidade profunda de contextualização das suas necessidades, da procura, das tendências da comunidade, do espaço e da sua utência futura. Para que essa contextualização seja possível é fundamental que os promotores desse processo, aqueles que o influenciam e que tomam decisões, sejam, de alguma forma, parte da equipa. Se não há bons projectos sem bons arquitectos, tal é igualmente impossível na ausência de bons promotores que conheçam a fundo aquilo sobre o qual estão a decidir.
Desconheço a atenção que os outros órgãos do Estado dão a este trabalho e o rigor com que o desenvolvem. O que observo são repetidos exemplos de desproporção dos investimentos relativamente às capacidades operativas que apresentam na sua vida funcional. Quanto maiores as obras, mais dramáticas se tornam as consequências financeiras da sua execução. Infelizmente, também parecem ser os maiores investimentos os que mais latitude oferecem aos seus projectistas. No vazio programático, os arquitectos tomam por vezes decisões que consomem recursos sem fundamentação racional e que resultam na gestão difícil, tantas vezes deficitária, da sua vida futura.
Podemos considerar que a responsabilidade derradeira por este problema pertence, em exclusivo, aos promotores, aos decisores públicos. Mas podem os arquitectos, enquanto classe, apresentar-se perante a sociedade como observadores inocentes deste fenómeno? A ideia que a boa obra, formal, de arquitectura, tudo justifica, é afinal uma ilusão que vamos alimentando mais do que quaisquer outros. Eu, pelo menos, ainda não ouvi ninguém queixar-se.
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Tens razão.
ResponderEliminarAs ilusões pagam-se caro. O ego desmesurado dos decisores muitas das vezes com a cumplicidade dos projectistas é uma mistura explosiva.
Subscrevo o texto na íntegra.Este "tiro à queima-roupa" atinge em 1.º lugar toda uma sociedade que não tem aquilo que alguém chamou de "cultura de projecto".Por vezes a falta de dinheiro tem estas vantagens: pôr a descoberto o lodo mental em que certa 'inteligentzia' e 'aparatchik'chafurdam à custa do dinheiro dos outros.Também não posso deixar de referir a sensação de estupefacção quanto ao reiterado incumprimento das leis em vigor por muitas das nossas 'estrelas' da arquitectura publicadas acriticamente em fotogénicas edições.Alguém me diz:"RCCTE, acessibilidade a edifícios, segurança incêndios? Tudo isso são enormes 'chatices'que só estragam o desenho, pá!". O mais grave é que nas Câmaras há promotores e projectos de 1.ª (a quem há que dobrar a espinha)e de 2.ª(a quem há que infernizar a vida durante anos até à sua desistência).E depois queixam-se de que há corrupção...
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