Para acabar de vez com a traça (arquitectónica)



De quando em vez passam pelo meu leitor de feeds projectos destes e dou por mim a pensar como isto seria inviável em Portugal. Só em países culturalmente subdesenvolvidos, sem o nosso aprumado sentido de defesa do património e a sua correspondente robustez jurídica, é que isto é possível. Países como… a Áustria?
Estamos perante um exemplar de uma arquitectura anti-traça. A traça arquitectónica, tal como o seu correspondente homónimo entomológico da ordem dos lepidópteros, é um mal do espírito que tem de ser enxotado com naftalina intelectual. Claro que é mais fácil acomodarmo-nos na preguiça do proibicionismo. Validar a diferença exige saber distinguir o valor das coisas, distinguir as qualidades em presença, aceitar o confronto de um debate cívico de ideias, de quem promove, quem desenha, quem constrói e quem detém o poder último de decisão sobre aquilo que na arquitectura é do domínio público.
A cidade, afinal, devia ser um reflexo da cidadania. Não um domínio de insectos.

A arquitectura é do atelier Lakonis Architekten. A fotografia é do Hertha Hurnaus.

6 comentários:

  1. No link para este post que pus no meu facebook argumentaram que não é bem assim, e deram o exemplo da Casa dos Bicos em Lisboa e da pousada de Santa Maria da Oliveira em Guimarães para mostrar que há vários exemplos de excelentes obras de arquitetura contemporânea em edifícios antigos portugueses.

    Mas será que estamos a falar de coisas diferentes? Nesses edifícios, há sobretudo uma lógica de completar sem alterar, enquanto no teu exemplo há uma ruptura.
    (eu a falar do que não sei...)

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  2. Uma pequena adenda ao texto. Temos felizmente bons exemplos de intervenção contemporânea em edifícios antigos – o texto também não é especificamente sobre isso. Em tom irónico, é sobre duas coisas que me incomodam…

    Em primeiro lugar, sobre a expressão “traça” arquitectónica. Após muitas pesquisas sobre a origem da expressão, continua no domínio do indeterminável; temos “traço” e “traçado”, mas como é que a traça se foi meter com a arquitectura, não sei…

    Segundo, sobre uma cultura de proibicionismo que também existe, em especial na tutela dos centros históricos, que impede muitas vezes, de forma liminar, que se pense a cidade com ideias novas. Casos em que o arquitecto se depara com alguém (porventura também arquitecto) que lhe diz coisas como: “Olhe, nós aqui usamos estes três beirados… Escolha um!”

    Ainda assim, levando o tema um pouco mais “a sério”, é verdade que temos bons exemplos. A Casa dos Bicos talvez seja demasiado específica como obra de reconstrução (e não terá tanto a ver com o que falo no texto), mas outros exemplos como a intervenção do Castelo de São Francisco em Portalegre, pelo Cândido Chuva Gomes, ou o Conservatório Regional de Música de Vila Real, pelo António Belém Lima, mostram que é possível adicionar ao antigo, introduzindo uma nova linguagem, desenho, textura e volumetria, de formas em que o novo vem em benefício do que já antes existia.

    É uma regra antiga, de resto. A boa arquitectura beneficia sempre o lugar onde se inscreve. Mesmo quando “não tem nada a ver”, para usar outra expressão bem popular… :)

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  3. Indeferir é mais simples e fácil ao abrigo do traçado existente.
    - Não cumpre isto, não cumpre aquilo e zás ...
    - Ai os precedentes!
    Dá trabalho justificar as intervenções e o poder político interfere em quase tudo que possa gerar polémica, até nas coisas mais simples.
    As memórias descritivas dos projectos nem sempre apresentam a justificação técnica necessária para suster, suportar ou acompanhar as pretensões.
    Caros colegas, na minha opinião, um bom projecto tem sempre hipótese de ver viabilizada a sua obra.
    Há que o defender é bem.

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  4. É muito curioso este apontamento, uma vez que sempre partilhei da opinião de que as nossas políticas e práticas de intervenção no património são por norma muito viciadas nos mesmos dogmas, e pouco abertas a alternativas igualmente preservadoras mas muito mais engenhosas na integração da arquitectura moderna.
    Este tipo de extensão na cobertura de edifícios habitacionais do centro histórico é uma prática muito corrente na Áustria, e sempre a vi como uma alternativa claramente oposta ao fachadismo, conseguindo preservar a tipologia do edifício antigo e adicionando-lhe uma nova estrutura que lhe respeite e permita ampliar a oferta programática.

    Deixo mais dois exemplos, em Graz, que particularmente gosto bastante:
    Gangoly & Kristiner, Villa (Graz, 2011) - http://www.gangoly.at/en/projekte/transformation/villa/
    Nieto Sobejano Arquitectos, Kastner & Öhler expansion (Graz, 2011) - http://www.a10.eu/magazine/issues/22/department_store_graz.html

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