O mercado, a classe e a falta de classe



Este texto foi escrito na sequência de um comentário de Lourenço Cordeiro ao post anterior.

Daniel, fazes mal ao desprezar dessa maneira a opinião do Manuel Pinheiro. Apesar de discordar com a sua posição, acho que lança pistas importantes. Especialmente no que toca a este paradoxo: se os arquitectos produzem mesmo melhor arquitectura, porque fogem os clientes de nós? A resposta não se fica pelo "é mais barato" apenas. Há, de facto, um problema entre o "mercado" e a classe, e não só com queixumes e alterações à lei que vamos lá. Não é fácil. Lourenço Cordeiro

Não acho que o Manuel Pinheiro lance pistas importantes. Acho mesmo que lhe escapa toda a parte “arquitectónica” da questão. Para MP trata-se de um problema de mercado. E na verdade, também é um problema do mercado, mas não nos termos em que MP o apresenta.
O sector da arquitectura em Portugal tem vários problemas e a certificação de profissionais habilitados a exercê-la é um deles. Não se trata de fundamentalismo académico ou de corporativismo de classe. Em primeiro lugar, começa por ser resultado de vivermos num país com carências que também são de ordem económica. É difícil explicar porque é que um projecto de uma casa não deve ser apenas um projecto formal nos termos mínimos regulamentares de um licenciamento. É difícil fazer ver a quantidade de investimento técnico e intelectual que deveria ser impresso num verdadeiro projecto de arquitectura, mesmo no caso mais comum de uma habitação. O problema começa no facto de que mesmo os arquitectos não produzem esse investimento intelectual ao trabalho que desenvolvem, por falta de saber ou devido à realidade pressionante do mercado. Mas o cerne de tudo está na qualificação dos profissionais, na educação e na sua certificação.

Na educação em primeiro lugar, porque a arquitectura não é apenas uma realidade conceptual. A maioria dos licenciados de arquitectura sai da faculdade sem nunca ter ouvido falar de segurança infantil por exemplo; mal tendo ouvido falar de acessibilidades e nunca o tendo aplicado; nunca tendo reflectido sobre racionalização energética; nunca tendo lidado com a realidade económica da edificação e as suas implicações; sem dispôr, no fundo, de um conjunto de metodologias praticadas, de know-how que contrarie o exercício aleatório em que se transformou a prática da arquitectura.
Estas carências têm implicações directas na expressão pública do nosso trabalho colectivo. Os arquitectos, mesmo aqueles que têm preocupações com a qualidade, acabam por empenhar-se no exercício conceptual ou formal. Parece então que a componente erudita da arquitectura termina aí. A subalternização de um conjunto de componentes técnicas extremamente importantes para a leitura colectiva do nosso trabalho, desvaloriza-nos. Despido de substância técnica, é o próprio exercício conteptual que se torna fútil. Os arquitectos deixaram de ser vistos como uma mais valia na busca de soluções, de ideais fortes, da economia do desenho e da capacidade de lidar com os constrangimentos das condições existentes, para serem vistos como uma extravagância descartável.

É evidente por isto tudo que uma arquitectura feita ou assinada em exclusivo por arquitectos não vai resultar num efeito de melhoria espectacular da qualidade da arquitectura e urbanismo produzidos em Portugal. Será preciso escrevê-lo. Mas o problema avoluma-se quando do outro lado do espectro temos profissionais que trazem para baixo o referencial de actuação técnica. Os tais engenheiros e desenhadores que são capazes de produzir projectos com a legalidade e qualidade suficiente para serem aprovados pelos mesmíssimos arquitectos das autarquias e estruturas consultivas que subscrevem o manifesto da OA onde alegam o contrário dos seus pareceres (via). E aqui é preciso compreendermos bem do que é que estamos a falar.
Muitos destes técnicos produzem arquitectura nos termos formais regulamentares. Encontrarás desenhadores e agentes técnicos que são verdadeiros peritos em RGEU: sabem de trás para a frente que a área de envidraçado deve ser 10% da área do compartimento, que o comprimento de uma divisão não deve exceder o dobro da largura e nele se deve inscrever um círculo de 2 metros, que a altura da chaminé deve estar 50 cm acima do ponto mais alto da construção e por aí fora. E utilizam o RGEU como um manual de projecto e com ele produzem arquitectura anónima e despida de mais conteúdos mas que se inscreve nos quadros mínimos regulamentares daquilo que podemos definir como um projecto licenciável.

A tese do Manuel Pinheiro é inconsistente porque a sua preocupação com o mercado apenas vê a questão concorrencial sobre a perspectiva do custo do projecto e não sobre a subida de referencial técnico e da responsabilidade que lhe devia estar inerente. Isto não significa que a campanha da OA para a revogação do 73/73 não possa ser acusada de acção corporativa cujos reais intentos sejam a conquista de espaço do mercado. Pode não ser inteiramente verdade mas seria uma crítica que mereceria reflexão. Agora defender, como Manuel Pinheiro, a ausência de certificação profissional da prática de arquitectura por razões de ordem concorrencial é uma forma muito tacanha de ver a questão.
A nossa fragilidade, nesta como em tantas coisas, é andarmos a inventar sem ver o que fazem os países de onde vêm as boas práticas que tanto gostamos de elogiar. A certificação da prática profissional da arquitectura devia passar pela qualificação universitária (como em tantas demais actividades profissionais que nos rodeiam), garantindo que esse curso esteja validado ou reconhecido pelo Estado (o mesmo que tutela a abertura de novos cursos) ou pela Ordem que tutela a profissão. É assim em Espanha, em França, na Holanda ou no Reino Unido. Infelizmente em Portugal as tutelas do ensino e da profissão não estão associadas: o Estado licencia cursos que a Ordem não reconhece, o que só ajuda à desordem profissional em que vivemos.
Por fim, é importante percebermos que uma parte importante desta discussão passa pelo divórcio enorme entre o referencial e a norma. Existe um nível de discussão teórica da arquitectura, erudito, muito virado para o criticismo e de grande influência na linguagem académica. Mas essa inteligentsia não produz know-how, doutrina, saber técnico ou o que lhe queiram chamar, que produza efeitos nas normas práticas da profissão corrente. Isto tem repercussões políticas. Investe-se colectivamente numa Casa da Música onde a variável conceptual é elevada à máxima potência, mas desses investimentos não derivam boas práticas com efeitos na produção arquitectónica e urbana massificada de que resultam as nossas cidades. Quanto a isto também há uma reflexão a fazer que devia começar na Ordem. A arquitectura erudita não pode ser um laboratório estanque onde se produzem peças conceptualmente admiráveis mas sem consequência colectiva ou contributo de cidadania para a qualidade da prática arquitectónica ou da vida dos cidadãos. Mas este é também o país em que vivemos e com o qual, sejamos francos, poucos se preocupam a partir do momento em que têm a sua cozinha bem equipada e o seu Audi à porta de casa.

Nota: eu preocupo-me. Falta-me o Audi.

5 comentários:

  1. Fazes uma boa análise, com a qual concordo. Mas acho que foges à minha interrogação (para a qual também não encontro resposta consistente, apenas algumas ideias). O que correu mal, ou o que corre mal, na relação entre o "mercado" e os profissionais da arquitectura? Cada vez mais acho que a génese do problema está nesse monstro dificilmente domável que é a "imagem" dos "arquitectos" junto das pessoas. Julgo que não deve andar muito longe de um tipo culto, educado, crítico, caro, complicado, ligeiramente autista e muito pouco diplomata. A "arquitectura" ainda é um luxo, não é algo que se identifique com um bem-estar geral.

    Por exemplo. Para um construtor não é vantajoso investir na arquitectura do seu empreendimento na medida em que essa arquitectura (tudo aquilo que poderá apresentar alguma criatividade) não lhe trará um preço de venda por metro quadrado superior à média que obtém aplicando a "chapa 3" do prédio de rendimento. Porquê? Porque quem compra, ou arrenda, não está disposto a pagar mais por isso. E isto advém do facto de sermos um país pobre.

    P.S: E por ser um país pobre, o mercado onde o arquitecto se move não é isto mesmo: malta que nos pede para desenhar paredes interiores de 10 cm para poupar no tijolo e ganhar (em cm2) área, ou para reduzirmos a espessura da pedra de revestimento da fachada de 3 para 2 cm (pondo em risco a sua qualidade) porque isso faz com que uma pedra possa ser transportada por um homem só, reduzindo para metade a mão de obra da sua aplicação.

    Falta brio e orgulho.

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  2. Torna-se caricato ler isto pois sou estudante de arquitectura e neste momento lido todos os dias com as familiares folhas de assinaturas para a revogação do 73/73...Decorre uma acçao da ordem dos arquitectos na concreta com o intuito de angariar o que se espera serem as ultimas assinaturas para a apresentaçao da nova proposta de lei a assembleia da republica(como ja deve ser do conhecimento de muitos).
    Todos os dias surgem pessoas diferentes, as que nao dão importancia, as que nao estão interessadas, as que nao concordam por alegarem que é contra a sua profissão, as que concordam completamente e as que nao se importam sequer do que se trata,desde que seja contra a legislaçao/estado.
    Caricato é tambem aperceber-me como ha pessoas que pensam que os 6 anos do curso de arquitectura equivalem a uma disciplina ou outra com um construtor mais sabidola...é muito estranho...



    Ps - Daniel Carrapa, os meus parabens pelo blog e um agradecimento pela colocação do link para o Tgv - Faup.

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  3. falta de cultura
    falta de educação
    falta de civismo
    falta de inteligência
    falta de respeito pelo trabalho intelectual e não só
    e falta de outras coisas mais... dá vontade de ir embora e nunca mais voltar
    parabéns pelo blog, dá um jeitaço :)

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  4. O problema da separação "mercado"/"profissionais de arquitectura" passa, em traços gerais, pelo grande desconhecimento por parte do público do que consiste a actividade do arquitecto. A do engenheiro parece óbvia: Pôr aquilo em pé para que não caia. O arquitecto é aquele que "complica" ou que vem "pôr bonito" ou caro com as suas cozinhas miele. Os arquitectos são "artistas", logo supérfluos. Estou a repetir um estereótipo mas que talvez ainda seja a regra, não a excepção.
    O não reconhecimento da arquitectura como uma profissão que alia a técnica, o conhecimento com a sensibilidade, a beleza, etc, será um dos problemas do afastamento da arquitectura ao público.
    Ninguém questiona o papel do médico, a opinião do médico,de um engenheiro ou advogado, reconhecendo que esse "porque estudaram" saberão mais do que falam.
    Parece-me que o problema é estrutural e não será facilmente utrapassável. O facto de haver uma lei como o 73/73 que diz que qualquer desenhador, etc é tão competente como um arquitecto para fazer um projecto não ajuda a que os arquitectos sejam reconhecimos como MAIS competentes.
    Seria como se houvesse um decreto que dissesse que os enfermeiros agora tb podiam operar. Passávamos a olhar para os médicos com outros olhos, de certeza. "Olha, fazem a mesma coisa mas os enfermeiros estudam menos tempo e saiem mais baratos, nem penso duas vezes..." Parece um disparate não é?

    Sou uma recém-licenciada em arquitectura com quase nehuma experiência profissional. Mas por acreditar que o facto de estudarmos 6 anos, com todas as falhas que referes Daniel, mas procurando estabelecer bases seguras, nos confere uma melhor preparação para desenhar/construir seja o que for acho um disparate completo o texto do Manuel Pinheiro.
    Sou a favor da revogação do 73/73 quer seja uma atitude de lobby ou a defesa dum direito legítimo. Sou a favor de imensas actividades da Ordem que procuram uma maior interacção entre uma classe profissional (muitas vezes snob e elitistas) e o público para o qual trabalha.

    Claro que, como dizes, a arquitectura feita só por arquitectos não vai ser a salvação. Assim como agora a medicina feita só por médicos não nos tornou menos doentes ou meos susceptíveis a erros. Há muitos outros parametros...

    A educação nas escolas de arquitectura, muita legislação, a actuação profissional, os estágios, os devaneios artísticos e arrogantes de muito arquitectos, os arquitectos-estrelas e tantos outros assuntos dão muito pano para mangas! Por agora já falei demais.

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  5. Antes demais parabéns Daniel,pelo trabalho que tens feito, o blog passou a barreira da divulgação e trazes a bom porto alguma pedagogia necessária a muitos
    dos interessados em arquitectura, ou temas relativos.

    Conheci o teu blog a pouco tempo, e sou estudante de arquitectura, fiquei fan!...eu normalmente uso estes "locais(blogs)" como modo de expressão mais pessoal
    e elo de comunicação com aqueles que gosto!Um pouco contraditório visto ser INTERNET!!!mas...



    Agora partindo para o que interessa, adorei o tema de conversa e o rumo que a discussão tomou...porque apesar de as pessoas que pela arquitectura circulam
    andarem num mundo de fantasia lirica...a arquitectura é um "coisa" bem real, e o show off é muito importante, já que temos de vender um produto/serviço, mas

    muitas vezes esquecem-se que também lidamos com um lado humano bem mais importante...o da vida!!!Porque o nosso dever(pregado desde o momento que se ouve
    falar em arquitectura ou design) é solucionar problemas...com arte e criatividade!

    Em relação à revogação do 73/73 também sou de acordo, afinal em tudo na vida tem que se começar por algum lado, e isso n quer dizer que chegue para
    solucionar o problema, é a casa partida para lutar e vencer o monstro final e esperar que o cofre com o tesouro e a princesa sejam finalmente nossos!!!


    Acho que o grande problema desta discussão é o facto de as pessoas confudirem, direito a um trabalho/serviço qualificado com status!...eu adoro quando dizem
    que Frank Lloyd Wright, Tadaos andos e outros que vingaram no MARAVILHOSO MUNDO DO SHOW BIZ..."THE ARQUITECTURAL MEDIA SHOW"!!!O problema meus amiguinhos é bem mais no nosso quintal...porque as próprias autarquias estão a seguir um caminho que eu acho óptimo, o caso de matosinhos e póvoa d varzim, que estão a redesenhar a cidade com serviço QUALIFICADO!...SIM, porque uma autarquia não vai buscar um desenhador ou empreiteiro abilidoso...sabe-se lá porquê!?

    "O problema é simples: Há um conjunto de engenheiros, desenhadores, etc., que são capazes de produzir projectos com a legalidade e qualidade suficiente para

    serem aprovados pelos mesmíssimos arquitectos das autarquias..."Manuel Pinheiro
    ....só dá para rir!

    Além da revogação do TAL artigo! deveriamos deixarmo-nos de merdas, e começar por melhorar as relações dentro de "casa", isto é, já que há uma boa oferta de
    serviço qualificado, vamos usá-lo. Nós futuros arquitectos temos que começar a dar o exemplo e nos nossos projectos académicos procurarmos opinão
    interdisciplinar...procurar engenheiros,designers, empreiteiros e até mesmo operários de obra...porque afinal somos todos construtores civis!!!



    nota: eu vi um site que me chamou a atenção pela obra, e linguagem e propósito, se puderes dá uma espreitadela e na melhor das hipoteses adiciona-o nos teus
    links! www.grupo3.pt

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