Lisboa em altura: o manto diáfano da arquitectura


Imagem: Heinz Lieber, Panorama Alexanderplatz (parcial), 1972.

O artigo de Paulo Martins Barata – ler Lisboa em altura, disponível na íntegra aqui – propõe-se abrir um debate em defesa da densificação e do aumento da altura dos edifícios no centro da cidade, no que entende ser um imperativo ecológico de grande urgência para criar uma cidade mais acessível e democrática.

O texto toma a forma de manifesto espontâneo, mais provocatório do que um exercício ponderado de reflexão e análise sobre o fazer da cidade. Talvez dessa impulsividade resultem algumas falácias e contradições que ali podemos encontrar, de que o exemplo mais infeliz será a acusação de que a mesma opinião pública que durante a sinistra gestão de Edite Estrela, serenamente sancionou o crime ambiental que foi a construção de um tapete ininterrupto de 5 milhões de metros quadrados em 10 pisos ao longo do IC19 (…) sente-se agora ferida na sua probidade histórica e patrimonial por uma “torre” de 16 pisos na Almirante Reis.

Ainda que possa não ser essa a intenção do autor, a exposição e a actualidade do tema não podem deixar de ser entendidas no contexto da actual discussão em torno do projeto da requalificação do Quarteirão da Portugália, que o próprio referencia nesta passagem. A este respeito temos desde logo uma evidente contradição: defende-se, por um lado, que a construção em altura deve obrigatoriamente ser concursada, avaliada, escrutinada e debatida como nenhuma outra, mas por outro não se abstém de desconsiderar a opinião pública quando essa reacção é negativa e contrária às vontades dos arquitectos. Tomado à letra, outra coisa não seria do que atacar o povo em nome da democracia.

Importa dizer que a opinião pública não foi tida nem achada na construção massificada da grande mancha suburbana que se estendeu em várias direcções da área metropolitana de Lisboa durante as décadas de 80, 90 e ainda durante os primeiros anos deste século. Devemos também ter presente que, em boa verdade, a conformação dos subúrbios do eixo Lisboa-Sintra antecede em muito, na sua origem, os anos do mandato autárquico da presidente socialista e que estes têm por base factores muito diversos e mais vastos que impactaram todo o território nacional e em particular o litoral, entre os quais não podemos deixar de elencar as políticas de acesso ao crédito para aquisição de habitação e o enorme peso que o sector da construção civil atingiu no todo do produto da economia durante estas décadas.

Ao invocar os subúrbios dormitório dos arredores de Lisboa, com os seus 10 pisos ao longo do IC19, como contraponto à opção pela construção em altura que entende ser a solução de densificação sustentável e ambientalmente desejável, o autor está a laborar numa falácia: o facto de “a” ser mau – ou ter dado maus resultados – não significa que “b” seja bom – e que não possa também dar maus resultados. Por outro lado, elencar o exemplo da proposta de Hans Kollhoff para a Alexanderplatz em Berlim ou da Park Avenue em Nova Iorque é contribuir para uma amálgama argumentativa com vista a estabelecer correlações que uma análise mais cuidada facilmente refutará.

Não está em causa rejeitar, por princípio, a possibilidade de projectar uma operação urbanística com edifícios em altura no enquadramento de uma grande requalificação da Praça de Espanha, como avança o arquitecto, mas importa ter presente que os contextos de escala urbana, das tipologias de espaço e de vias, são substancialmente diversos. Basta dizer que na Alexanderplatz cabem duas Praças de Espanha e oito Quarteirões da Portugália e que a praça berlinense é enquadrada por grandes vias urbanas, enquanto a Praça (presentemente só em nome) de Espanha é atravessada por estradas rodoviárias de intenso volume de tráfego, hostis à vivência humana – que o projecto do novo parque urbano irá impactar de uma forma que se espera positiva e onde até os patos (mansos, não bravos) serão bem-vindos.

No âmbito deste debate, a discussão despoletada pela pequena “torre” do Quarteirão da Portugália afigura-se paradigmática. Tal discussão nada tem que ver com feridas sentimentais ou hipersensibilidades à construção em altura, assim como não está em causa a qualidade conceptual da proposta. Mas o que este processo veio expor, por ter sido submetido a debate público, foram as fragilidades do regime de incentivos em vigor na cidade de Lisboa, que se traduz na possibilidade de alavancar expressivamente as áreas de construção muito acima dos limites previstos no PDM, bem como o deficiente (para não dizer nulo) escrutínio que a Câmara Municipal exerce na análise da aplicabilidade dos seus parâmetros – ler Contributo para o debate público do Quarteirão da Portugália.

É esta circunstância que, no contexto da Avenida Almirante Reis, se traduz numa solução em altura que resulta na desconformidade com a envolvente ao abrigo de uma cláusula de excepcionalidade dificilmente aceitável no enquadramento regulamentar. Não beneficia o debate público o facto de, neste caso, a arquitectura aparecer como uma espécie de manto diáfano, fantasiando a realidade de uma operação que é tão especulativa como qualquer outra e cujo efectivo suporte nos regulamentos urbanos motiva a justa interrogação dos cidadãos.

Não se trata assim de defender – ao contrário do que é sugerido neste artigo – a subalternização da arquitectura em relação a outros parâmetros estratégicos. Antes se constata que um debate sobre a construção em altura não pode ser feito ao abrigo de exemplos avulsos ou no domínio estrito da arquitectura, mas no quadro mais vasto de uma discussão multi-disciplinar da cidade, que tem o seu lugar na conformação, participada e discutida, dos planos e regulamentos que posteriormente informarão o seu destino. Um lugar onde pode ser questionada uma estratégia de densificação, para lá de uma visão binária como aquela que nos é apresentada, a preto e branco, acerca dos seus impactos.

Preocupação maior nos deve motivar tal repto, assente apenas no entusiasmo retórico e sem qualquer dever de quantificação, quando estamos perante tecidos consolidados como são os nossos centros urbanos, onde o vigor do imobiliário e da construção, neste breve ciclo de sobreaquecimento, faz já sentir os seus limites de carga e as suas muitas fragilidades.

Ninguém vem para nos salvar



Se eu fui o Éder deste 10 de Junho, o Presidente Marcelo foi o meu Fernando Santos – a congratulação em jeito de metáfora futebolística serve de corolário a essa fogueira de mediocridades que foi o discurso de João Miguel Tavares nas comemorações do dia 10 de junho. Um texto em tudo previsível, atabalhoado, feito de ideias avulsas, entre a crónica do meu pequeno ego e a construção narrativa de um Portugal imaginário. De resto está bem salpicado com laivos de populismo de puxar ao sentimento na vã tentativa de ocultar as suas próprias contradições.

Tomemos como termo de comparação o apontamento deixado por João Lopes a respeito do discurso de Jon Stewart no Congresso dos EUA. Sublinha o crítico que não é a emotividade daquele depoimento que o torna notável, mas a precisão das palavras. Refere João Lopes: São momentos em que, também na televisão, voltamos a acreditar no valor primordial das palavras e na precisão que o seu uso pode envolver.

Voltando a João Miguel Tavares vale a pena olharmos para a frase que se tornou mote daquele discurso: Dêem-nos alguma coisa em que acreditar. Eis o que não deixa de ser de um repto pueril feito “aos políticos” para que façam alguma coisa pelo povo; tão mais confrangedor pelo modo como o próprio quase se reconhece como aquele provinciano a quem foi concedida a bênção de poder ir falar às elites. Melhor seria dizer aos Portugueses que ninguém vem para nos salvar. Chega de apelar aos homens providenciais, chega de déspotas esclarecidos que desses já cá tivemos que chegue – e para experiências recentes já nos bastaram os déspotas da troika que bem sabemos o mal que por cá andaram a fazer.

Em boa verdade não faltam coisas em que acreditar. Acreditar numa profunda reforma do sistema económico que permita evitar uma catástrofe ambiental sem precedentes. Acreditar na defesa do nosso modelo social, herdeiro do pós-Segunda Guerra Mundial, que assegurou a paz à maior parte dos países da Europa. Acreditar no combate à desigualdade crescente que corrói a relação entre gerações e ameaça a estabilidade social em que assentam as nossas democracias.
Não faltam coisas em que acreditar e partidos que, de uma forma ou de outra, procuram promover agendas políticas que vão ao encontro desses objectivos.

Acredito pois que o que está aqui em causa é que João Miguel Tavares e os “neoliberalinhos” órfãos do Passismo que ele representa não têm nada em que acreditar. Certo é que se as ideias que eles defendem orientassem a nossa governação estaríamos pior, nestas como em tantas outras áreas da nossa vida comum.

Eis que clamam agora em defesa do “elevador social” – que tanto melhorou no tempo da democracia que gostam de depreciar – mas defendem políticas que repetidamente demonstraram acentuar o fosso da desigualdade e a clivagem entre gerações. Clamam pela defesa da família, mas defendem políticas que potenciaram a precariedade e os baixos salários que tanto adiam e prejudicam a estabilidade da vida familiar.
Clamam assim pelo homem providencial que os salve e os faça acreditar, incapazes de compreender porque é que as ideias que defendem – que tanto ocupam a bolha do comentariado mediático de que fazem parte – têm cada vez menos expressão junto do eleitorado.

Risível é o repto às elites como risíveis são as suas ideias pueris sobre a História. Num dos mais acutilantes exemplos escapa-lhe a dimensão dos “Descobrimentos” enquanto visão narrativa de um passado comum, sem correspondência na complexa e contraditória experiência humana que lhe deu corpo. Uma História sobre a qual podemos hoje ter uma visão crítica porque vivemos em democracia, um sistema que nos permite confrontar, em liberdade, essas narrativas em que foram construídas as exaltações do passado, como assentam tantas vezes as falsidades do presente.

Ninguém vem para nos salvar. Prefiro uma democracia imperfeita, feita de pessoas e partidos imperfeitos, feita de compromissos, de tentativas e erros, à crença em homens providenciais que “venham pôr ordem nisto tudo” e vender o quinto império a reboque de grandes efabulações sobre esse animal mitológico que é o português comum. De resto, João Miguel Tavares bem podia ter feito o seu discurso com um boné encarnado com as palavras “tornem Portugal grande outra vez”.

Não em meu nome.

O tempo da arquitectura; breves notas sobre a Catedral Notre-Dame de Paris



Vivemos num tempo de grandes comoções súbitas, repercutindo-se na repetição intensiva da informação – e acima de tudo das imagens – num curto espaço de tempo, seguindo-se o esquecimento. O tempo das redes sociais e da mídia em geral é, afinal, pouco compatível com o tempo lento da arquitectura. Mais assim é quando na presença de edifícios que percorreram longos séculos de história. Talvez por isso valha a pena lembrar que o nosso processo civilizacional é feito de perda constante, perda de conhecimento humano e perda de conhecimento material. Por vezes parece-nos mesmo que é mais aquilo que se perde do que aquilo que conseguimos salvar, preservar, reconstituir. Perdemos pela negligência humana, como terá sido o caso do incêndio da Catedral Notre-Dame de Paris, mas também por causas naturais, como também ainda pela ignorância e, mais grave do que tudo isso, pela guerra.

O entusiasmo mediático gerado pela destruição substancial daquela que é a mais visitada catedral gótica do mundo trouxe consigo reacções curiosas. Houve de tudo um pouco: desde a parada indecorosa de bilionários que se assomaram para doar milhões para a reconstrução, aos desabafos daqueles que viram nas chamas a metáfora perfeita para o declínio político e social da Europa, até aos manifestos mais inflamados em defesa do abandono da ruína como rejeição da comodificação do património. Não obstante as perplexidades com que se confronta a doutrina da arquitectura transformada em objecto de mercado, seria uma estranha ironia que, em nome da rejeição do capitalismo, deixássemos morrer património nascido muito antes dele mesmo. Seria talvez o símbolo supremo do estertor deste capitalismo tardio em que vivemos. De resto, convém recordar que em nome dos melhores manifestos se cometeram algumas das maiores atrocidades da história. E que, por fim, mais cedo ou mais tarde, a terra se ocupará de reclamar o retorno das pedras que erguemos.

Mais importante do que tudo isto é, em boa verdade, a arquitectura. E o tempo que se segue convoca arquitectura mas também as engenharias, as artes, a história, a cultura, a política. Em primeiro lugar porque é um processo de ética que obrigará a tomar decisões, por certo, bem difíceis.

Sabemos agora, passada a inquietação das chamas e dos escombros, que o casco edificado que sobreviveu à devastação do incêndio ficou fragilizado e vulnerável. Perdeu-se toda a estrutura de madeira da cobertura, muito antiga e muito rica, bem como o telhado em placas de chumbo. Com o seu colapso ruiu também a flecha, a torre erguida por Viollet-le-Duc durante a extensa e controversa intervenção de restauro de meados do século XIX.
As paredes da Catedral parecem ter resistido, bem como a maior parte das abóbadas, com colapsos parciais. Mas o diagnóstico que se segue será certamente extenso para compreender com rigor os efeitos do incêndio e da elevada temperatura sobre a pedra e nas argamassas de junção e revestimento.

As fotografias disponíveis do desvão do telhado da catedral – a notável “floresta” estrutural de madeira agora desaparecida – parecem sugerir que as abóbadas teriam um revestimento argamassado pelo extra-dorso – desconheço se parte do processo construtivo original ou se resultado de uma acção de reforço posterior. O estado de todos esses materiais terá de ser bem compreendido para orientar as decisões seguintes.
Existirá também um vasto conjunto de elementos mais finos que se terão perdido, entre os quais os mais notáveis serão alguns dos vãos com envidraçados decorativos e obras de arte de maior dimensão que não puderam ser removidas durante o incêndio.

Para o que toca a arquitectura, as questões éticas que se colocarão não podem deixar de ser orientadas pelo dever de transmitir o património histórico às gerações vindouras. A Catedral ardeu durante a nossa vigília. Temos certamente a obrigação de reconstruir. Mas várias questões se irão colocar, como por exemplo a vontade de reconstruir aquela maravilhosa estrutura de madeira – sendo certo que a perda da estrutura original é um motivo de consternação irremediável – por um lado, e a ponderação daquilo que pode ser melhor para a salvaguarda da vida futura do edifício. Será uma decisão de ética construtiva, ética do processo construtivo, da mediação entre engenharia e arquitectura, assente no que os diagnósticos informarem. Não serão questões de achómetro ou de opinião, como não será a decisão de repor a elevada carga de placas de chumbo da cobertura, na tipologia original, ou outra solução porventura mais compatível com as suas capacidades – e vulnerabilidades – estruturais.

Acima de tudo há uma coisa que devia ser compreendida por todos: nenhuma solução, nenhuma proposta avançada sem estar sustentada por um profundo trabalho de diagnóstico estrutural do edifício pode ser levada a sério. Arquitectura não são imagens, não são renders, não é design conceptual, por mais belo e inspirador que seja. E é também por isto que este só pode ser um longo, lento e laborioso processo de estudo e de decisão, incompatível com o calendário avançado pelo presidente Emmanuel Macron que se comprometeu a reconstruir a catedral até à data da inauguração dos jogos olímpicos de Paris de 2024.

Também o Senado Francês veio refrear o repto dos líderes políticos para uma reconstrução inventiva, estabelecendo como condição ao financiamento da operação o restauro do edifício de acordo com o seu último estado visual. A decisão não deixará de motivar o desagrado de alguns, mas tem também o mérito de rejeitar muitas das ideias prematuras, mal cozinhadas, que têm vindo a público. Parece aliás revelador de uma certa mediocridade contemporânea, uma insegurança disfarçada de irreverência que urge em afirmar-se a todo o momento, cuja apoteose seria a elevação de uma flecha paramétrica sobre uma catedral gótica com oitocentos anos de história. Está em causa, afinal, salvaguardar a coesão construtiva, arquitectónica e estrutural daquele conjunto, que importa não devassar em nome de uma pretensa noção muito discutível de “modernidade”.