Sábado
[Imagem de Fernando Guerra]
N’O Projecto o Lourenço Cordeiro escrevia sobre a necessidade de que as pessoas «aprendam» a apreciar a arquitectura, constatando as diferenças entre o que chama de arquitectura dos arquitectos e a arquitectura do público. O seu texto lança várias pistas sobre o problema, que me faz regressar ao que escrevi em Nós Os Sábios - um texto que de alguma forma ficou por concluir.
A exposição do Lourenço culmina numa interrogação exemplar: O que ganho eu em contratar um arquitecto? A pergunta expõe, preto no branco, a simplicidade do problema. E eu acrescentaria apenas uma outra: para que serve afinal a arquitectura?
Estas perguntas simples têm respostas complicadas porque se desdobram numa série de outras questões. Em primeiro lugar é aos arquitectos que compete defender a utilidade do trabalho que desenvolvem. Assim, a ideia de que existe uma arquitectura dos arquitectos e uma arquitectura do público não traz nada de bom porque reduz a questão à sua aparência. Uma aparência que acentua a ideia de que a arquitectura custa mais caro, como se fosse um extra, um bem só acessível a alguns: a arquitectura transformada num luxo. As razões para este problema são partilhadas tanto pelos arquitectos como pelo público.
Em primeiro lugar nos arquitectos que por vezes são educados na ideia de que o custo é um aspecto menor e uma restrição à sua liberdade criativa e individual. Isto torna-se ainda mais grave quando o resultado dessa liberdade criativa ou artística não produz nada de pertinente, relevante ou interessante, apenas justificável com o desejo do arquitecto sobre todas as coisas: porque sim, porque o arquitecto assim o quis.
A arquitectura deve ser uma disciplina com forte componente económica, no melhor sentido do termo. A capacidade de transformar meios limitados em soluções de exemplar qualidade (formal, artística, construtiva) é uma obrigação do trabalho da arquitectura. Não é bom arquitecto aquele que só sabe fazer arquitectura recorrendo ao seu cardápio de materiais topo-de-gama e soluções a todo o custo, revelando-se sem eles incapaz de conjugar soluções tecnicamente relevantes que não comprometam a qualidade da obra.
Mas o público também partilha uma forte parte do problema. A ideia de que se consegue viabilizar uma construção a preços mínimos sem pôr em causa a qualidade da edificação – e de vida – que daí resultará, é uma ilusão. Para lá disto, é o próprio entendimento de poupança que também não é racional: poupa-se em tudo na construção para depois se pagar em aquecimentos centrais ou ar condicionado, enfim, em gastos energéticos e custo de vida daí para a frente. É um problema de prioridades: o público continua mais desperto para investir naquilo que é visível como em acabamentos superficiais “de luxo” (por vezes muito questionáveis). Poupa-se nas paredes e nas janelas mas gasta-se facilmente na aspiração central, na cozinha topo de gama e no frigorífico americano.
De certo modo, trata-se de um problema que devia ser abordado numa óptica de defesa do consumidor, através de informação e formação do público. É necessário criar padrões de exigência nas pessoas, para que estas saibam aquilo a que têm direito e que deveriam exigir.
Mas isto é apenas uma pequena parte do problema. A importância da arquitectura vai evidentemente muito além destes aspectos tão particulares.
Eu acredito na liberdade do arquitecto, na importância da criatividade e na sabedoria de conjugar referências e soluções com vista ao melhor fim. Mas a liberdade do arquitecto é uma liberdade na vida real, e como tal condicionada a responsabilidades. Isto só engrandece a arquitectura, o facto de enfrentar problemas reais e de ser feita com meios reais. Ela é um instrumento de transformação, efectiva, dessa realidade e da vida das pessoas. A arquitectura pode, deve e tem de ser utilizada para dignificar a sociedade. Não é indiferente ao nosso desenvolvimento se o ambiente que habitamos nos constrange, nos deprime, ou nos engrandece. Não é indiferente, por exemplo, crescer numa escola-prisão feita de blocos pré-fabricados, desconfortável, onde faz frio e nos sentimos mal, ou crescer numa escola luminosa, arejada, que melhora a interacção das pessoas, que nos dignifica e faz sentir bem e nos faz, por fim, sermos pessoas melhores. E isto é verdade na escola, no hospital, no local de trabalho, na rua ou na cidade.
Criar essa cultura e sensibilizar o público a apreciar essas qualidades não deve ser assim tão impossível. O público pode não dispor de todas as referências para entender aspectos particulares da linguagem arquitectónica ou não dispor do refinamento estético para elaborar certo tipo de apreciações, mas o público saberá certamente distinguir conceitos de beleza, saberá distinguir o valor e a qualidade de vida que resulta do ambiente construído se isso lhe for mostrado no registo apropriado.
A arquitectura é um recurso importante que devia ser valorizado porque permite realmente interagir com as pessoas. Quando o espaço em que vivemos nos dignifica, não nos pressiona mas liberta, não nos reduz ao isolamento anónimo mas nos motiva a viver, tornamo-nos de facto em pessoas melhores. Acredito que, acima de tudo, é para isso que serve a arquitectura.
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"Criar essa cultura e sensibilizar o público a apreciar essas qualidades não deve ser assim tão impossível. O público pode não dispor de todas as referências para entender aspectos particulares da linguagem arquitectónica ou não dispor do refinamento estético para elaborar certo tipo de apreciações, mas o público saberá certamente distinguir conceitos de beleza, saberá distinguir o valor e a qualidade de vida que resulta do ambiente construído se isso lhe for mostrado no registo apropriado".
ResponderEliminarAcabei de ler o que escreveu o seu colega do blog "O Projecto" e parece-me que o texto acima resume de modo muito claro o que é necessário fazer, que tipo de leitura lhe é possível aceder. Eu julgo que o futuro dono de uma casa de autor precisa deste tipo de linguagem. E fazê-lo acompanhar esse modo claro e limpo de pensar o que é a arquitectura? Para que serve? O que pode melhorar a nossa vida?
Cumprimentos do worldcitizen
Pelos vistos, nem vós sabeis!
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