Da dimensão afectiva da ética


Imagem via The Animal Blog.

É com interesse que tenho procurado acompanhar as reflexões que se vêm desenvolvendo no Animalogos, em particular pela preocupação que também partilho na discussão de temas de dimensão ética. Observo no entanto o que me parece ser uma patologia de pensamento recorrente, presente na abordagem excessivamente abstracta sobre algumas questões que ali se tratam e o risco de tal poder diluir as implicações éticas dos factos em presença.

Um texto recente – Diferentes Culturas, Diferentes Éticas? – é exemplar no modo como incorre num erro de método, ao questionar o conceito de ética sobre uma base lógica, pressupostamente científica. Afirma-se: A ética, como princípio filosófico, é a mesma. A aplicação prática desta é que difere de cultura para cultura. A moralidade impressa a todos os “actos” com animais é divergente, e isso sim, depende da cultura dos vários povos. Valerá a pena questionar o alcance desta proposição.

A ética reflecte um juízo sobre as acções humanas no contexto de ideias morais presentes na sociedade. A ética não é por isso a mesma entre culturas diferentes porque delas decorrem entendimentos diferentes sobre as implicações morais das suas práticas. A recusa presente nas sociedades ocidentais quanto a usar animais domésticos na alimentação tem essa base afectiva, subjectiva, moral, mas ela não deixa, por ser subjectiva, de constituir um “valor”, um conceito sobre o qual se estabeleceu um consenso social alargado. O facto dos valores não serem proposições objectivas não os torna num não-valor.

A ética não é uma ciência pura, não decorre de nenhuma lei (lógica/matemática). Não podemos [edição: ou é muito difícil] estabelecer uma ética universal porque ela traduz um entendimento de natureza cultural sobre princípios morais, de bem e de mal. E não poderemos por isso afirmar que a nossa ética é “superior” à que encontramos nas culturas orientais onde se utilizem cães ou gatos como fonte de alimento. Mas podemos defender a inaceitabilidade dessas práticas no contexto do nosso entendimento cultural sobre a acção humana e o seu impacto sobre o que nos rodeia, ou seja, no nosso juízo ético.
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Faço, a este respeito, um pausa para sublinhar um aspecto que considero importante. Tenho o maior respeito pela importância da Ciência para a evolução das sociedades. Julgo mesmo que um dos grandes problemas da sociedade em que vivemos decorre da perda da dimensão científica no domínio da reflexão sobre os problemas e da tomada de decisão, até no campo político.
Mas não posso deixar de alertar para o facto de não se poder sobrepor um entendimento lógico, abstracto, de origem académico-científica, sobre valores culturais de sociedade. Este tipo de discurso corre o risco de promover uma “relativização” desses valores, porque eles não são demonstráveis sobre uma base lógica. Mas a sua anulação, por absurdo, provocaria aquilo que não deixaríamos de considerar uma aberração cultural. Ou seja, em resumo, temos de defender a nossa própria subjectividade, a construção civilizacional em que vivemos.

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A questão mais interessante que por isso se levanta naquele texto não é tanto a reflexão comparativa, qualitativa, entre culturas, mas a subjectividade ética das nossas próprias diferenças de critério quanto ao uso de animais para alimentação. Porque aqui colocam-se questões de tabu cultural – comer cães e gatos, ou cavalos – bem como preocupações morais quanto aos processos de criação e abate de animais para consumo humano, e ainda razões de natureza social e ambiental quanto às necessidades alimentares da população. E sobre isso podemos encontrar práticas diferentes na nossa própria sociedade. Porque o nosso modo de vida não é inócuo. Tal facto não nos pode fazer deixar de alimentar ou existir. Mas podemos, ou devemos, ter preocupação ética sobre os impactos que temos sobre o meio que nos rodeia e o modo como os poderemos minimizar.

Sobre essa consciência ética coloca-se o problema da nossa actuação sobre animais sencientes, como bem apontado nos comentários por David. É uma questão muito complexa que resvala para a discussão do direito animal, tema sobre o qual encontramos correntes de pensamento muito diversas. [E sobre o qual, diga-se, seria bom não desenvolver dissertações maniqueístas que confundam a defesa de uma discussão sobre o “direito animal” como um exclusivo de “grupos extremistas defensores dos direitos dos animais”. Cuidado com o risco de, mesmo inconscientemente, promover uma forma de dissonância cognitiva.]

A respeito do debate ali observado não posso deixar de reputar de muito errado o que escreveu Anna Olsson quanto ao tema da experimentação: Uma pessoa pode ter a noção que está a ser explorada, um animal não. Logo, não é óbvio que o direito a ser tratado como um fim em si próprio é relevante para quem não sabe a diferença entre isto e o de ser explorado.
O direito sobre o modo como um animal é tratado é mesmo, pelo contrário, uma questão de princípio, e não uma questão decorrente da capacidade de entendimento do facto de estar a ser explorado. Poderíamos contrapor com o exemplo humano. O facto de uma pessoa possuir limitação cognitiva (por exemplo, até, numa situação de inactividade cerebral) não torna legítima a sua utilização para experimentação.
O que legitima, ou não, um acto de experimentação é o entendimento social sobre a sua justificação de força maior, no âmbito científico, médico, ou mesmo industrial. É uma questão muito difícil e sobre a qual também me debato a nível das minhas escolhas pessoais. Mas que deve ser reflectida, exactamente, no plano ético, numa discussão subjectiva mas que é essencial à formação da ideia de sociedade em que vivemos.

1 comentário:

  1. Os animalogantes agradecem a contribuição ao debate. Pretendemos um debate fundamentado e reflectido, ao mesmo tempo que queremos dar espaço a vozes que estão no início da aprendizagem, que foi o caso com o post que cita.

    O seu comentário está agora no animalogos, onde continuaremos o debate.

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