Escrever não é apenas pensar. É construir uma realidade. As referências que escolhemos fabricam um ponto de vista. A linguagem nunca é neutral, como não o são os factos que invocamos, as imagens, os vídeos. O que vemos no assalto ao jovem agredido Asyraf Haziq, por exemplo? Um instantâneo da realidade ou algo mais? E dissertando sobre isso, falamos da verdade dos factos ou do simbolismo de tudo o que podemos ver para lá das imagens?
O que nos separa dos eventos de Londres da semana que passou? O primeiro obstáculo é mesmo uma questão de distância. É demasiado fácil discorrer sobre aquela violência, seja para exigir repressão implacável ou para desmultiplicar a complexidade das causas. E é fácil porque, de uma forma ou de outra, estamos todos sentados nas nossas torres de marfim, em condomínios fechados ou num apartamento dos subúrbios. Se aqueles selvagens estivessem no nosso bairro a pilhar e a destruir seríamos os primeiros a clamar pelo exército nas ruas já. E no entanto, depois da tempestade, o que fazer? Dispomo-nos a pensar sobre o que aconteceu ou, como escreve o Russell Brand, varremos aquela juventude perdida por entre os destroços do motim?
Escutemos o debate acalorado entre alguns jovens londrinos em plena rua – ver aqui. Podemos perceber que o instantâneo não será tão espontâneo assim; afinal não sabemos ao certo quem são aqueles jovens, quem é actor convidado e quem é intruso na peça. Mas a discussão é rica e resvala rapidamente para fora de um qualquer guião. A dada altura um daqueles rapazes diz sobre os looters: estes são os filhos das mães adolescentes.
É uma daquelas frases que faz soar campainhas. Sim, é um belo pedaço de retórica e carrega consigo uma boa dose de generalização romântica. Mas há ali qualquer coisa de verdade, não é assim?
Sabemos que os jovens encapuçados – e os adultos – das noites da última semana não são todos filhos de mães adolescentes. E sabemos que aqueles grupos não são representativos de uma comunidade e muito menos de toda uma geração. Mas se aquelas imagens nos perturbam é porque encontramos ali algo que nos é reconhecível. Afinal, ali testemunhamos o que pode significar o fim da linha de uma sociedade.
Não posso deixar de pensar que o que está ali em causa é, em parte, o momento em que a família – seja qual for a cor, o tamanho, o feitio – deixou, de alguma forma, de existir. Não se trata de afirmar que a culpa é dos pais. Sim, a culpa também é dos pais, seja pela carência, pela indiferença ou pela inaptidão total. Mas não podemos deixar de questionar o plano mais vasto em que tudo isto existe. De interrogar o papel a que a nossa sociedade vem votando o espaço da família. E aqui temos de ir mais fundo, à estrutura social que a dimensão económica e política da nossa realidade está a construir. À ética empresarial, por exemplo, porque no mundo em que vivemos se subjuga a família ao sucesso profissional. Ou, no caso mais extremo, à mera sobrevivência financeira.
Quando a destruição chega às ruas não há lugar para mais do que a repressão. Mas o problema de fundo, para lá do plano da criminalidade que também existe, não é apenas um caso de polícia. E ao pensar nisto já não estamos só a pensar em Londres, Manchester, Liverpool, Birmingham. Ou em Paris. Mas em Europa.
Talvez o futuro de tudo isto, e de todos nós, se balance num fio tão instável como o dos mercados da última semana. Na ausência de afirmação de uma Europa forte em torno de um desígnio económico conjunto para o desenvolvimento, estes podem ser problemas que ficarão por responder no contra-ciclo do empobrecimento das nações. Restará assim a única saída fácil, viável, que é a da repressão. E assistiremos ao definhar de um sonho, talvez mais romântico ainda, de uma sociedade de direitos e liberdades, para vermos ascender uma nova sociedade de desesperança e conflito.
A história do Século XXI ainda não está escrita. Esperemos que os motins de Londres não sejam, dessa história, as primeiras palavras.
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A família não deixou de existir, mas nos últimos tempos insistiu-se mais na preservação da forma do que na valorização do conteúdo. As famílias dos nossos tempos têm que encontrar um espaço de adaptação que valorize as relações que as compõem nas diversas formas em que surgem. A pressão para se ter uma família convencional potencia o desastre: inicia-se uma família porque sim, com referências caducas, e depois arranjam-se desculpas para justificar a sua disfuncionalidade - e as desculpas remetem-nos outra vez para a forma e culpam-se "os filhos das mães solteiras, adolescentes".
ResponderEliminarOlá Margarida. Só uma nota. Não sei se viste o vídeo mas a referência aos "filhos das mães adolescentes" não é uma atribuição de culpa, pelo contrário. Num caso que veio a público numa reportagem da Sky deu-se a conhecer um dos "looters" que não só era ele próprio adolescente (17 anos) como era igualmente pai.
ResponderEliminarPor isso aqui a reflexão já não pretende ser sobre culpa ou desculpabilização. Apenas um convite a que se pense em tudo o que está ali em causa.
Bêjo.
"Afinal, ali testemunhamos o que pode significar o fim da linha de uma sociedade."
ResponderEliminarO que é facto, é que hoje temos pior qualidade de vida do que a que tinhamos a 30 anos.
Talves o turbilhão de eventos digitais em que vivemos já tenham esgotado a nossa estrutura física e mental... e infelizmente não consigo ter mais de 150 "Amigos".
E quando cidadãos londrinos (todos amigos) trocam Informação de forma concertada, em redes sociais com centenas de milhares de indivíduos, para combater de forma deliberada o dna daquilo que nos define como civilizados, é aí que soam as sirenes de alarme.
Algo está mal... Penso que o conceito de civilização/sociedade em equilíbrio passa inexoravelmente por uma distribuição equilibrada de Informação, sob pena de o sistema todo entrar em colapso.
É o que vemos na economia... Hoje todos nós somos "peritos" em bolsas, ratings, alta finança, obrigações, dívida pública... Sempre ouvi dizer que "o segredo é a alma do bom negócio"... e quando já não há segredo, o resultado é a incerteza nos mercados.
É aquilo que eu chamo de uma sociedade "intoxicada" de informação.
Pois... Talvez o que eu disse seja a triste confirmação de que estou mesmo a ficar velho... nostálgico... como os nossos pais. http://www.youtube.com/watch?v=2qqN4cEpPCw&feature=player_embedded
Não sei se será tanto a "família". talvez a disrupção da família tradicional tenha começado nos anos 60, em plena abundância, com a eleição dos jovens como um mercado gigantesco, o desvincular da sexualidade em relação à "procriação" e à constituição de uma família e a uma progressiva tomada de consciência relativamente à hipocrisia de muitas instituições. nesse tempo, estalaram muitos conflitos, sendo os jovens protagonistas. O que aconteceu entretanto? Se calhar, nem eu sei. aqueles jovens tinham ideais, mas, em consequência das crises que surgiram nos anos 70, com o choque petrolífero, o surgir de novas potencias, etc já se tornou muito complicado sustentar o modo como vivíamos no Ocidente. Nos anos 80 assistimos ao nascimento e reforçar das teses ultra liberais (Tatcher e Reagan, por exemplo) e a um declinar dos valores relativos à sociedade como um colectivo (Tatcher afirmou claramente que a sociedade era uma coisa que não existia, só os indivíduos). A situação não de corre, assim, tanto da dissolução da família: a dissolução da família, a surgir ao mesmo tempo que porventura, teríamos que reequacionar o que é a família e construir novas soluções relativamente ao papel da família, surge mais como reflexo de uma profunda crise de valores. Banalizou-se aquilo que é humano, o que antes pertencia ao sagrado, e passou-se a idolatrar o bezerro de ouro, coisas que não valem a ponta de um corno. E isso tem muitas causas. O excesso de informação não será uma delas, certamente, porque a avaliar pela dose de mentiras, manipulação e lixo que presenciamos todos os dias nos "media", não é por aí. A internet, as redes sociais, etc, por outro lado, são what you see is what you get. Censurar ou reprimir a livre associação de pessoas é o que fazia a PIDE. Para mim, a única chave de mudança, consiste em obrar profundas mudanças na sociedade, que está doente. No outro dia, na TV, vi um homem que construía e ensinava a construir instrumentos musicais à base de sucata e lixo e punha crianças das barracas a tocar Bach, etc... - se calhar é de homens desses que precisamos numa sociedade que trocou os valores espirituais todos, que antes eram meramente impostos, por nenhuns. Nota: não sou religioso.
ResponderEliminarComo valores "espirituais" até posso estar a referir coisas muito simples: ser capaz de reconhecer o outro como um semelhante, independentemente da cor da cara, da marca do telemóvel que usa ou do facto de andar a pé ou de Mercedes (e isto vale para os dois lados)... tanta coisa que está mal... a pouco e pouco, acho eu, podemos tornar-nos em bichos e é pena, porque a nossa sobrevivência depende de nos entendermos e o universo que nos rodeia...
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