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Tacteando o caminho

Este texto foi originalmente publicado no blogue A Barriga de um Arquitecto no dia 10 de Fevereiro de 2005. Partilho agora numa versão ligeiramente revista, com fotografias da minha viagem à Índia e ao Nepal tiradas com uma velha “Praktica”, acompanhado pelo meu irmão mais velho, no Verão de 1992.



É necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não saímos de nós.

— José Saramago.



Em geometria descritiva usa-se a palavra charneira para descrever o eixo de rotação de um plano. A charneira é a linha de viragem de uma projecção ou, em sentido figurado, o momento em que a realidade se transforma.

Quando, em 1992, eu e o meu irmão planeámos viajar para o Nepal, vimo-nos compelidos pelo incrível apoio dos pais cuja motivação roçava a inconsciência. Nesses dias conversei com a minha prima Margarida que já lá tinha estado e nos havia inicialmente proposto a ideia da aventura. Ela contou-me como tudo aquilo era fantástico e diferente, o que tinha visto e o que devíamos fazer. No final da conversa teceu umas palavras sobre como, quando regressou, tudo lhe parecia estranho. O regresso tinha sido deprimente, tudo lhe parecia distante como se nada retivesse a mesma importância.

Não pude compreender aquilo e rapidamente o esqueci na densidade da viagem. A chegada a Nova Delhi de noite sem reservas, o ambiente sufocante, uma viagem de comboio rumo a norte até ao fim da linha, um autocarro pela monção e a passagem na fronteira fora de horas. O Nepal foi como devia ter estado à espera, estranho e fascinante como só podia ser aos olhos límpidos e inexperientes de dois jovens ocidentais.











A aventura, há muito arquivada em volumes de fotografias entretanto guardados numa pasta poeirenta, foi um tempo de charneira nas nossas vidas. Não o podíamos ver mas pudemos comparar nos nossos retratos, o antes e o depois. A experiência ficou vincada nos traços da cara como minúsculas marcas que escorreram junto do olhar e nas barbas por fazer que entretanto nos iam crescendo. E quando regressámos recordei as palavras da Margarida, pois também a mim tudo pareceu distante nesse regresso a Portugal. Não era o país que me desagradava, antes esta existência sem parâmetro de comparação que nos submerge num monte de futilidades diárias.

Esse tipo de sensação vamos perdendo com o passar dos dias, à medida que a lucidez se vai esbatendo na rotina do tempo. O que fica no fim é como um sonho quase esquecido mas que nos diz no fundo da mente que algo não está certo, como um pequeno alerta no prisma distorcido das percepções quotidianas.

A realidade é que o mundo é um lugar ambíguo onde é difícil cultivar grandes certezas. Ao pôr o pé fora da Europa pela primeira vez compreendemos que não era o mundo que estava lá fora mas antes nós que sempre vivêramos num estranho aquário, ignorantes da nossa própria condição.

No Nepal, com a lucidez da distância de milhares de quilómetros, descobri pela primeira vez o que significa ser Português. De volta a Portugal, foi difícil não acabar por esquecê-lo. Nestes dias em que vamos tacteando o caminho, sem conseguir ver o que espreita para lá do horizonte, tenho procurado recordar aqueles longos dias de viagem num país longínquo onde a memória do canto das gaivotas junto ao mar ao pôr do sol me fazia perceber aquilo de que eu era feito. E olho agora à minha volta, para um país de gente esquecida, ignorantemente insatisfeita com a sua falta de generosidade, de maturidade.

Entretanto, dia a dia, vamos perdendo o tempo que passa, à espera de uma charneira nas nossas vidas.


Vista da região do Annapurna, Nepal, 1992.

M.



Alguém me disse que na vida, a partir de certa altura, não existem anos bons. Há sempre algo mais que se perde do que aquilo que se ganha. Sei, no fundo, que não é verdade. Que as coisas boas, por breves que possam ser ou parecer, valerão sempre muito mais do que o mal que por vezes nos possa atingir.
A Margarida era uma lutadora. Uma gata franzina que nunca cresceu, tribulações de uma doença na infância, porque os gatos também podem ser crianças. Se a vida se regesse pela lógica, há muito que nos teria abandonado. Mas a M., no tempo breve que nos concedeu, ofereceu-nos duas vidas. Renasceu para nos lembrar que vale sempre a pena ter esperança, sem garantias, assim é o seu mistério. E se agora resta o vazio, nos seus recantos, no silêncio celebramos aquilo que nada pode preencher. Pois quem poderia pedir generosidade maior.

Cinza


Imagino agora o que ela terá pensado, por detrás daqueles olhos verdes, ao ver-me invadir o território sagrado da sua vida partilhada com aquela que por certo tinha como sua única companheira. Quem será este? Com que intenções se apodera do nosso lugar, do nosso tempo de aconchego, quando a noite cai e o mundo pertence apenas a nós duas?
Dediquei à pequena Cinza o mesmo desprezo que ela me dirigia. Não por desgosto ou falta de afeição. Pelo contrário, porque nestas coisas dos gatos devemos sempre respeitar os seus tempos e os seus espaços.

Passaram por certo duas semanas. Pensei que estaria para mim perdida aquela gata que a tantas doçuras se entregava pela mulher com quem um dia eu haveria de casar. E estava eu sentado, rodeado sei lá que afazeres, quando ela chegou por cima de tudo como quem atravessa o mundo. Assim me dedicou o seu primeiro beijo áspero, delicioso como se nada fosse, a maravilhosa Cinza.

Sabe quem alguma vez conviveu com gatos ou cães que todos são diferentes. Não apenas no temperamento mas no grau de evolução intelectual. Sim, eu disse intelectual. A Cinza foi, e porventura sempre será, a gata mais inteligente que eu já vi. Assim lhe dedicámos o cognome de “gato-pessoa”, pelo brilho, pelo afecto profundo, pela carência, pelo ciúme, por tudo aquilo que fez dela a mais luminosa presença da nossa casa durante os anos que agora julgaremos sempre tão curtos. E, no entanto, se as probabilidades mandassem, a Cinza já devia ter morrido há muito.

Quando a tristeza se apoderou das nossas vidas, no tempo suspenso de uma frágil gravidez perdida, foi ela quem sentiu mais fundo a dor que nos atingiu. Acolheu-a como sua, deixou de comer e assim se abeirou da morte. Duas novas palavras entraram na nossa casa: lipidose hepática. O estado clínico da Cinza disparava em valores dez vezes para lá de todas as esperanças. Diversos dias de internamento deixavam-na agora prostrada para a encontrarmos, mais um dia passado, à beira do fim.
Podíamos ler-lhe nos olhos: a Cinza desistiu de viver. Se aqui fica, morre. Falámos com os veterinários explicando porque tínhamos de levá-la para casa. Os médicos alertaram-nos para a complexidade do tratamento, com muita medicação e alimentação regular, por um tubo esofágico, de três em três horas, sem excepção. Sim, numa situação normal, levá-la para casa seria uma loucura. Mas nós não somos pessoas normais.

A Cinza viveu um mês em cima da nossa cama. Uma capa impermeável esticada, com cobertas por cima. Uma caixa de areia ao fundo, assim mesmo. Quase não se movia e a nada reagia. Mas foi sobrevivendo, dia-a-dia, àquela rotina desesperada. De quando em vez a indisposição sobrevinha para se perder em espasmos. Ficava desfeita. E a rotina recomeçava mais uma vez.
A pouco e pouco a medicação, a comida e o amor foram curando aquele frágil fígado doente. E regressou um dia, como se nada fosse, para o meio de nós, cumprimentando-nos com um novo primeiro beijo. Para mais uma vida.


A Cinza deixou este mundo, suspensa nas minhas mãos, no Domingo passado, juntando-se à nossa pequena cadela branca que morreu há cerca de dois meses. Todas as vidas começam encharcadas em dor e talvez uma nova vida tenha começado ali mesmo. Uma vida de que a Cinza já não fará parte, mas em que a lembrança dos seus gestos, dos seus abraços, dos seus beijos, do seu cheiro, fará sempre parte de nós. Possam todos conhecer, uma vez na vida, a bênção da devoção mais pura como a da nossa pequena Cinza, a gata mais extraordinária que alguma vez existiu.

I wonder now what she must have thought, behind those green eyes, as I invaded the sacred territory of a life shared with the one she deemed to be her only companion. Who is this man? What brings him to our place, invading our time of cuddling, when the night falls and the world belongs to just the two of us? I ignored Cinza just as she ignored me. Not for contempt or lack of affection. It was, in fact, the opposite, for when it comes to cats one should always respect their own time and space. [+/-]
Two weeks passed. I thought she would never offer me the compassion she candidly expressed for the woman I would one day marry. And there I was, distracted by some kind of business, when she came walking through it all and surprised me with her first sand paper kiss. Wonderful Cinza.

If you ever lived with a cat or a dog you know they are all very different. Not just in temper but in regard to intellect. Yes, I said intellect. Cinza was, and probably always will be, the most intelligent cat I have ever known. And so we gave her the nickname of “cat-person”, for her clarity, profound affection, neediness, jealousy, for all the magical things that made her the brightest presence in our home for years.

Cinza left this world, as I held her in my hands, last Sunday, joining our little white dog that passed away two months ago. Every life begins soaked in pain and perhaps a new life began that very moment. A life that Cinza will not be a part of, but in which the memory of her gestures, her hugs and kisses, her scent, will always be a part of us. May everyone know, at least once in this lifetime, the miracle of love and purest devotion that Cinza blessed us with, the most extraordinary cat that ever existed.

Centro Interpretativo da Igreja de Santiago



Estou bastante feliz com a recente abertura do Centro Interpretativo do Castelo de Montemor-o-Novo, na Igreja de Santiago. Pela participação no projecto de recuperação da igreja e pelos resultados que foram conseguidos. Com as normais condicionantes de intervenção neste tipo de edifício e os meios naturalmente limitados para a sua realização, penso que alcançámos um feliz exemplo de boas práticas.
O novo Centro Interpretativo já está aberto ao público e dá a conhecer a história do castelo e as diversas fases da sua evolução, acompanhado de suportes informativos e peças expositivas. O Centro também irá servir de espaço para a realização de eventos como recitais e conferências.
Deixo a ligação para o blog Montemaior, belíssima página mantida pela minha colega Manuela Pereira, com um olhar sempre sensível à paisagem e à história física e humana de Montemor-o-Novo.

Ver: Igreja de Santiago, Frescos da Igreja de Santiago.

O professor corajoso

Tinha olhos e nome de rapina. Em mim, tudo nele inspirava um medo terrível. Talvez fosse o rigor do seu bigode enrolado à inglesa ou o brilho cintilante dos botões de punho, mas tremia ao ouvir o ranger dos seus sapatos percorrer a sala de aula.
Aos treze anos tudo é de vida ou morte. O temível professor de história tinha-nos na palma da mão e na ponta do taco de bilhar que esgrimia sobre as nossas cabeças. Imaginava o taco incendiar-se como um sabre laser e o espadachim ser dominado por uma pesada respiração. Sim, ele era o lado negro da Força.
Certo dia percorri o meu pesado manual de caneta em punho disposto a vandalizar o seu domínio. Encontrei a Vénus de Milo, desnudada e desprotegida, e sobre ela descarreguei a minha ira adolescente. Na imagem da deusa grega desenhei um provocante soutien e ligas a condizer, dignas da mais pura alta costura.
O destino é fatal e assim foram as aulas de história. Meses passados e o professor bateu de novo as asas, sentenciando a abertura do livro na página cento e oitenta e quatro. Folhas rolaram soando como o ressoar da roleta. Nas minhas mãos o livro abriu em câmara lenta, revelando finalmente a garbosa Vénus em todo o seu esplendor.
Um centésimo de vacilante horror foi quanto bastou. O cérebro rapidamente enviou os primeiros sinais aos dedos que rodaram mais uma folha, assim se ficando como o meu corpo inteiro gelado sob o olhar do mestre. Os olhos da águia enegreceram e não mais deixaram de me fitar. Os sapatos chiaram até mim como a ave que se lança cega sobre a presa. Parou de taco em punho e olhou o meu livro. “Mas está na página errada” - afirmou com indizível prazer. E eu já não dominava o corpo e os dedos e, seguindo as instruções do professor, recuei a folha para revelar o inevitável.
Sob o olhar atento daquela Afrodite renascida, do professor e da sala inteira li, em voz alta e de uma ponta a outra, todo o texto daquelas duas páginas abertas. E os lentos minutos arderam na minha mente para eternamente se gravarem, a dor pior que todos os castigos que poderia vir a sofrer.

No ano seguinte encontrei, naquela mesma disciplina, o melhor professor que alguma vez conheci. Alma e coração de aviador, os seus olhos doces planavam sobre a nossa admiração atenta. E a história universal enchia-se de vento e nós voávamos com ele pelo passado distante. Nos intervalos falava-se de tudo; culinária, cinema ou os estreantes passos de dança de Michael Jackson que o novo professor imitava com perfeição. Era mestre e era actor, cabelos e barba levemente soltos e rebeldes como o próprio.
Um dia, talvez algures entre o renascimento e o último disco dos Simple Minds, o mestre aviador descobriu esquecido no canto da sala o taco de bilhar do seu arquinimigo. Dominou o ceptro maldito e lançou-nos perguntas avulsas imitando o seu verdadeiro dono. E nós respondíamos e ríamos daquela atrevida representação. E eis que, de repente, o professor de olhos brilhantes ergue o taco e lança-se pelo corredor entre as mesas simulando um salto à vara - e Plim! Mal calculado, o toque da ponta da vara no chão revelava-se fatal para a madeira envelhecida. Diante de nós, o taco parte-se a trinta centímetros do topo e os seus poderes esfumam-se para sempre. Tornou-se, na minha mente, um momento histórico. A velha rapina perdera finalmente a sombra e eu estava para sempre livre do seu negro poder.
Recordo com magia aqueles tempos de colégio. E recordo, hoje com saudade, todos aqueles professores que nos metiam medo ou nos inspiravam.
Magia, verdadeiramente, é o que fazem dia após dia os verdadeiros professores, os que se entregam de alma e coração à conquista da compreensão dos seus alunos. De todos eles, os melhores professores não são os que querem apenas ensinar, mas os que se dispõem a compreender. Os que todos os dias fazem a barba ou se maquilham das suas próprias dores; e nos encantam entre o rigor do palco e um passo de dança e nos abrem o mundo para lá do cenário pardacento. Que com coragem nos fazem acreditar no poder das ideias e das palavras e, quem sabe, num futuro um pouco melhor.

O fabuloso destino



Os meus leitores mais fiéis devem lembrar-se da Amélie. Encontrámos a pequena caniche anã abandonada a viver escondida numas obras. Estava tão suja que parecia literalmente um trapo velho, o pêlo crescido e espesso de tanta sujidade. Pior, uma pata dianteira partida abanava de um lado para o outro e fazia indiciar um futuro sombrio. Latiu poucas vezes quando nos aproximámos mas deixou-se pegar envolvida num pequeno cobertor.
A ida ao veterinário correu bem. Umas análises mostraram que por detrás daquele aspecto desanimador estava uma cadelinha cheia de vontade de viver, apenas um pouco subnutrida. Mais boas notícias vieram da observação da pata dianteira; a recuperação estava à distância de uma cirurgia bastante simples.
Chamámos-lhe Amélie e acabou por viver connosco durante longos meses. Um penteado, umas vacinas em dia e uma cirurgia depois, e a pequena miniatura começou o seu longo processo de recuperação. Durante mais de um mês viveu praticamente fechada numa gaiola de um metro quadrado: ordens do médico. Não podia andar muito nem saltar porque poderia danificar ainda mais a pata, segura por um reforço metálico. Aos serões passava as horas ao nosso colo no sofá, onde se aninhava muito cuidadosamente. Tentávamos mimá-la o mais possível para compensar os seus dias difíceis.
Passado aquele período mais crítico começou a poder andar em espaços maiores e a aventurar-se para descobrir o novo território que lhe estava disponível. A Amélie estava cada vez melhor.
Durante este tempo fomos abençoados com o aparecimento de uma família fantástica que adoptou a nossa menina e a acompanhou durante os meses de recuperação em que esteve connosco. Agora, há poucas semanas apenas, a pequena caniche partiu para a sua nova casa onde tem uma vida feliz e é o centro de todas as atenções. E nós, cheios de saudades, também estamos felizes pela nossa menina e pelo seu fabuloso destino.

Hoje estou vivo

What is it exactly that makes up a satisfying and meaningful life? Is it still possible to reach the end of my life and say, “Yes, I lived my life fully and as best I could.” and to die with a full heart? Is the modern template for what constitutes a “successful” life the only option? For so much of what I see seems completely insane to me. So much of what so many people think of as important seems dull and without imagination, apathetic and blind to the world around.
Laughing Knees

O blog vai avançando, lento e desfocado, e assim bem mais próximo do meu estado de espírito do que gostaria. Por vezes, parar para pensar pode ser a pior coisa. Mas “a vida tem de parecer certa”, afinal. Por estes dias sigo atravessado por uma nova e estranha sensação, de que ou reinvento tudo ou acabo com ele.
Parece-me tão distante a “blogosfera” e os temas que a alimentam. Poucos são os blogs que visito e desses ainda mais raros os portugueses. Assim abismo nas páginas mais pessoais, escritas por pessoas a sério que falam das coisas que vivem e de como as sentem. Distantes ou próximas, nelas se descobre a razão de ser de tudo isto, desinteressada e sem agenda.
Há um mundo maior lá fora. Descobre-se nas coisas pequenas, no germinar das plantas do terraço, no fucinhar do Moby quando quer festas, no esperguiçar dos gatos. No azular saturado do céu ao fim da tarde quando tudo parece mais lento e as luzes começam a acender pela cidade. Coisas pequenas e ridículas aos olhos dos falsos adultos que tantas vezes nos rodeiam, esses que olham para nós incrédulos quando lhes revelamos os mais fundos segredos. Que não compreendem porque estas coisas são tão especiais e importantes que as lágrimas nos vêm aos olhos ao falarmos delas.
Porquê escrever, então, se não para falar destas coisas, afinal? A vida é isto e sempre, tantas coisas por fazer e outras tantas ainda por dizer. Sempre. Por isso sei...

Moby

Carioca



O Chico, o maravilhoso Chico acompanha-me há longos anos. Trilhou comigo noites de estrada fora com velhas cassetes rolando no rádio. Ou talvez seja eu que o acompanho a ele, seguindo o trilho das letras como as pistas de um caminho mais vincado. Vi-o em tempos em concerto, ao vivo em Lisboa. Ali estava ele com o sorriso grisalho cheio de doçura rasgando pontes com a platéia. E o que começou como concerto cedo se tornou uma festa de garagem com todo o mundo dançando amor barato lá na frente. Sim, sigo as pisadas do homem de quem um dia se disse ter o coração grande feito "caminhão de mudanças". Vou atrás dele desde os tempos do vinil e agora seguirei mais uma vez as palavras do belo Carioca.
O Chico está de volta!
_
Deixo-vos com o texto de Bolero Blues. A canção nasceu de uma composição de Jorge Helder, aparentemente impossível de "letrar", onde Chico foi construir mais uma das suas estórias. Sem a trilha sonora disponível, resta-me dizer-vos que vale mesmo a pena ouvir.

BOLERO BLUES

Quando eu ainda estava moço
Algum pressentimento
Me trazia volta e meia
Por aqui
Talvez à espera da garota
Que naquele tempo
Andava longe,muito longe
De existir
Tantos tristes fados eu compus
Quanto choro em vão,bolero blues
Eis que do nada ela aparece
Com o vestido ao vento
Já tão desejada
Que não cabe em si

Neste crucial momento
Neste cruzamento
Se ela olhar para trás
É bem capaz de num lamento
Acudir ao meu olhar mendigo
Mas aquela ingrata corre
E a Barão da Torre e a Vinícius de Moraes
São de repente estranhas ruas
Sem o seu vestido ficam nuas
E ao vento eu digo
-tarde demais

Quando ela já não mais garota
Der a meia-volta
Claro que não vou estar mais nem aí

Chico Buarque e Jorge Helder, Bolero Blues, 2006.

Reler

E eis que me recordo, na derradeira página deste livro, desses burocratas envelhecidos que nos serviram de comitiva na madrugada do primeiro correio, quando preparávamos a nossa transformação em homens, porque havíamos tido a sorte de ser escolhidos. Não é que eles não fossem semelhantes a nós, mas ignoravam em absoluto que estavam famintos.
Há gente de mais que se deixa dormir.
Aqui há anos, no decorrer de prolongada viagem de caminho de ferro, apeteceu-me visitar essa pátria em marcha na qual eu me fechara por três dias, por três dias prisioneiro desse ruído de calhaus rolados pelo mar, e levantei-me. Por volta da uma hora da manhã percorri o comboio de lés a lés. As carruagens-cama estavam vazias. Vazias estavam as carruagens de primeira.
Mas as carruagens de terceira abrigavam centenas de operários polacos despedidos de França e que regressavam à sua Polónia. E eu percorria os corredores de ponta a ponta passando por cima de corpos. Parei para observar: de pé, à luz das lampadazinhas eléctricas, distinguia nesse vagão sem compartimentos, e que se assemelhava a uma camarata que tresandava a caserna ou a esquadra de polícia, toda uma população confusa e agitada pelos movimentos do rápido. Todo um povo mergulhado em pesadelos e que regressava à sua miséria. Grandes cabeças rapadas bamboleavam-se na madeira dos assentos. Homens, mulheres, crianças, todos se voltavam dum lado para o outro, como que atacados por todos esses ruídos, todos esses solavancos que os ameaçavam no seu letargo. Não tinham achado a hospitalidade de um bom sono.
E eis que eles me pareciam ter perdido parte da sua condição humana, sacudidos dum extremo ao outro da Europa pelas correntes económicas, arrancados à casinha do Norte, ao jardim minúsculo, aos três vasos de gerânio que eu vira outrora nas janelas dos mineiros polacos. Haviam reunido somente os utensílios de cozinha, os cobertores e as cortinas, em embrulhos mal atados e rasgados por hérnias. Mas tudo o que haviam acariciado ou atraído, tudo o que tinham conseguido domesticar em quatro ou cinco anos de permanência em França, o gato, o cão e o gerânio, haviam sido obrigados a sacrificar e não levavam consigo senão as baterias de cozinha.
Uma criança mamava numa mãe tão cansada que parecia adormecida. A vida transmitia-se no absurdo e na desordem dessa viagem. Eu considerei o pai. Um crânio pesado e nu como uma pedra. Um corpo curvado no sono desconfortável, comprimido no fato de trabalho, feito de altos e baixos. O homem fazia lembrar um montão de argila. Assim, despojos informes carregam à noite os bancos dos mercados. E eu pensei: o problema não reside de maneira alguma nesta miséria, nesta imundície, nem nesta fealdade. Mas este mesmo homem e esta mesma mulher um dia conheceram-se e o homem certamente sorriu à mulher e por certo depois do trabalho trouxe-lhe flores. Tímido e desajeitado, tremia talvez à ideia de se ver repelido. A mulher, porém, por garridice natural, a mulher segura da sua graça, divertia-se porventura a inquietá-lo. E o outro, que hoje não é mais que uma máquina de cavar ou de martelar, experimentava desse modo uma angústia deliciosa no coração. O mistério está em que eles se tivessem tornado nestes volumes de argila. Em que terrível molde foram metidos e por ele marcados como por uma máquina de embutir? Um animal envelhecido conserva a sua graça. Por que razão este belo barro humano se estragou?
E eu prossegui na minha viagem por entre este povo cujo sono era turvo como um prostíbulo. Pairava no ar um vago ruído feito de roncos roucos, de gemidos débeis, do raspar dos sapatorros dos que, maçados de um lado, experimentavam o outro. E sempre em surdina esse interminável acompanhamento de seixos revolvidos pelo mar.
Sentei-me diante de um casal. Entre o homem e a mulher, o filho, bem ou mal, aninhara-se e dormia. Mas a dormir voltou-se e o seu rosto surgiu-me à luz da lampadazinha. Ah! que rosto adorável! Nascera daquele casal uma espécie de fruto dourado. No meio dessa grosseira manada nascera este prodígio de encanto e de graça. Debrucei-me sobre essa fronte lisa, sobre esse doce trejeito dos lábios, e disse de mim para mim: eis um rosto de músico, eis Mozart criança, eis uma bela promessa de vida. Os principezinhos das histórias em nada se diferenciavam dele: protegido, resguardado, instruído, que não poderia ele vir a ser! Quando, por mutação, nasce nos jardins uma nova rosa, eis que todos os jardineiros se comovem. Isolam a rosa, cultivam a rosa, protegem-na. Mas para os homens não há jardineiro algum. Como os demais, Mozart menino será marcado pela máquina de embutir. Mozart fará as suas alegrias mais altas da música de pacotilha, na fedorentina dos cafés-concertos. Mozart está condenado.
E regressei à minha carruagem. E ia dizendo de mim para mim: estas pessoas quase não sentem a sua sorte. E aqui não é a caridade que me atormenta. Não se trata de nos enternecermos por causa duma chaga eternamente reaberta. Aqueles que a têm não a sentem. Quem é ferido aqui, quem é lesado, é qualquer coisa como a espécie humana e não o indivíduo. Creio pouco na piedade. O que me atormenta é o ponto de vista do jardineiro. O que me atormenta não é de modo algum aquela miséria, onde afinal de contas nos instalamos do mesmo modo que na preguiça. Gerações de orientais vivem na imundície e folgam com isso. O que me atormenta não são aquelas covas, nem aquelas bossas, nem aquela fealdade. É um pouco, em qualquer desses homens, Mozart assassinado.


Antoine de Saint-Exupéry em ”Terra dos Homens”.

Cada lugar teu

Ninguém sabe o que isso é sem o ter vivido. A caminho do terceiro mês o destino traçou que não tinha de ser; e assim se perdeu a nossa pequena promessa no lugar das coisas de que ninguém gosta de falar. Acontece com frequência nestas alturas, é uma coisa normal – disseram-me. Uma coisa normal, que a areia do tempo cobrirá, como algo que não deveria ter sido.
Puro e absoluto, esse mistério. Que se essa vida tivesse sido talvez tudo fosse hoje diferente. Que por mais que mergulhemos nas profundezas deste mundo apenas tocaremos a sua fina superfície. Não, nada é normal na magia de uma vida que começa. Nada é normal no que nos une e desune, no bater do nosso coração, no simples facto de estarmos aqui.
É incómodo escrevê-lo? Não será este o lugar? Talvez. Mas sei que por demasiado tempo silenciei esta perda. Sólido, como carvalho, o ombro firme onde te quis proteger. Apaguei as lágrimas, como quem quebra o mecanismo da dor, que é o mesmo do sentir. Fiz da minha cara uma barragem das tormentas que lá dentro revolveram. E por um instante apenas chorei, quando pensei que por momentos tive um filho, que o destino traçou nunca iria conhecer; a sua face, o seu sorriso, tudo o que poderia ter sido.
Já percorremos um bom caminho juntos, entrelaçámos estas nossas histórias. E algures nesse trilho, no desejo de pintar o quadro perfeito onde tudo pudesse recomeçar, esquecemo-nos de nós. Que o amor é o caminho fino e frágil, como o berço ventre de uma nova vida. Que preciosos são estes momentos, finos dedos que se espraiam ao som de um pequeno coração. E é por isso que hoje não estou mais triste, porque hoje tudo começa e posso escrevê-lo, como o amor por estas coisas que nunca foram, mas serão sempre dentro de nós e estarão connosco, em toda a parte. Amanhã, sentados no topo do mundo soltaremos gargalhadas perguntando porque esperámos tanto. E voltaremos a descer desses lugares distantes para mergulhar nestes mistérios, e hoje apenas isso me faz acreditar, que eu vou chegar contigo, onde só chega quem não tem medo de naufragar.
Eu amo-te.

Sei de cor cada lugar teu
atado em mim, a cada lugar meu
tento entender o rumo que a vida nos faz tomar
tento esquecer a mágoa
guardar só o que é bom de guardar

Pensa em mim protege o que eu te dou
Eu penso em ti e dou-te o que de melhor eu sou
sem ter defesas que me façam falhar
nesse lugar mais dentro
onde só chega quem não tem medo de naufragar

Fica em mim que hoje o tempo dói
como se arrancassem tudo o que já foi
e até o que virá e até o que eu sonhei
diz-me que vais guardar e abraçar
tudo o que eu te dei

Mesmo que a vida mude os nossos sentidos
e o mundo nos leve pra longe de nós
e que um dia o tempo pareça perdido
e tudo se desfaça num gesto só

Eu vou guardar cada lugar teu
ancorado em cada lugar meu
e hoje apenas isso me faz acreditar
que eu vou chegar contigo
onde só chega quem não tem medo de naufragar

Montanha


Na visão daquela montanha escutei o silêncio maior da minha vida. Estático como a paisagem que me envolvia, não estava já ali mas nas profundezas de um mundo maior onde tudo era invisível. Nunca estivera tão longe de casa.
Entre mim e aquele silêncio está um oceano de coisas, pequenos nadas que se pulverizariam na base daquela montanha como poeira no deserto. Coisas, pequenas gotas de chuva na torrente em que sou submerso, no meio de uma multidão que braceja para ver a superfície.
Provavelmente, não voltarei a ver aquela montanha com os meus olhos. Esta verdade, simples, define-me. Prestes a afundar-me, posso compreender com uma última mas transparente clareza a razão do montanhista. Uma montanha só tem um sentido, uma razão de ser: a subida. Quando perguntaram a George Mallory porque subia o Everest, ele ofereceu uma resposta digna daquele assombro da Natureza: Porque está lá. Porque triste é a vida sem trilho, sem uma montanha nas nossas vidas.
Sim, é por ali!

(imagem via)