
É necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não saímos de nós.
— José Saramago.

Em geometria descritiva usa-se a palavra charneira para descrever o eixo de rotação de um plano. A charneira é a linha de viragem de uma projecção ou, em sentido figurado, o momento em que a realidade se transforma.
Quando, em 1992, eu e o meu irmão planeámos viajar para o Nepal, vimo-nos compelidos pelo incrível apoio dos pais cuja motivação roçava a inconsciência. Nesses dias conversei com a minha prima Margarida que já lá tinha estado e nos havia inicialmente proposto a ideia da aventura. Ela contou-me como tudo aquilo era fantástico e diferente, o que tinha visto e o que devíamos fazer. No final da conversa teceu umas palavras sobre como, quando regressou, tudo lhe parecia estranho. O regresso tinha sido deprimente, tudo lhe parecia distante como se nada retivesse a mesma importância.
Não pude compreender aquilo e rapidamente o esqueci na densidade da viagem. A chegada a Nova Delhi de noite sem reservas, o ambiente sufocante, uma viagem de comboio rumo a norte até ao fim da linha, um autocarro pela monção e a passagem na fronteira fora de horas. O Nepal foi como devia ter estado à espera, estranho e fascinante como só podia ser aos olhos límpidos e inexperientes de dois jovens ocidentais.









A aventura, há muito arquivada em volumes de fotografias entretanto guardados numa pasta poeirenta, foi um tempo de charneira nas nossas vidas. Não o podíamos ver mas pudemos comparar nos nossos retratos, o antes e o depois. A experiência ficou vincada nos traços da cara como minúsculas marcas que escorreram junto do olhar e nas barbas por fazer que entretanto nos iam crescendo. E quando regressámos recordei as palavras da Margarida, pois também a mim tudo pareceu distante nesse regresso a Portugal. Não era o país que me desagradava, antes esta existência sem parâmetro de comparação que nos submerge num monte de futilidades diárias.
Esse tipo de sensação vamos perdendo com o passar dos dias, à medida que a lucidez se vai esbatendo na rotina do tempo. O que fica no fim é como um sonho quase esquecido mas que nos diz no fundo da mente que algo não está certo, como um pequeno alerta no prisma distorcido das percepções quotidianas.
A realidade é que o mundo é um lugar ambíguo onde é difícil cultivar grandes certezas. Ao pôr o pé fora da Europa pela primeira vez compreendemos que não era o mundo que estava lá fora mas antes nós que sempre vivêramos num estranho aquário, ignorantes da nossa própria condição.
No Nepal, com a lucidez da distância de milhares de quilómetros, descobri pela primeira vez o que significa ser Português. De volta a Portugal, foi difícil não acabar por esquecê-lo. Nestes dias em que vamos tacteando o caminho, sem conseguir ver o que espreita para lá do horizonte, tenho procurado recordar aqueles longos dias de viagem num país longínquo onde a memória do canto das gaivotas junto ao mar ao pôr do sol me fazia perceber aquilo de que eu era feito. E olho agora à minha volta, para um país de gente esquecida, ignorantemente insatisfeita com a sua falta de generosidade, de maturidade.
Entretanto, dia a dia, vamos perdendo o tempo que passa, à espera de uma charneira nas nossas vidas.

Vista da região do Annapurna, Nepal, 1992.
If you ever lived with a cat or a dog you know they are all very different. Not just in temper but in regard to intellect. Yes, I said intellect. Cinza was, and probably always will be, the most intelligent cat I have ever known. And so we gave her the nickname of “cat-person”, for her clarity, profound affection, neediness, jealousy, for all the magical things that made her the brightest presence in our home for years.
Cinza left this world, as I held her in my hands, last Sunday, joining our little white dog that passed away two months ago. Every life begins soaked in pain and perhaps a new life began that very moment. A life that Cinza will not be a part of, but in which the memory of her gestures, her hugs and kisses, her scent, will always be a part of us. May everyone know, at least once in this lifetime, the miracle of love and purest devotion that Cinza blessed us with, the most extraordinary cat that ever existed.