É a lei, estúpido! (3)

Não esperava voltar a este tema mas venho acrescentar alguns esclarecimentos em resposta a um texto publicado no blog Em Busca Da Límpida Medida. Apesar das minhas divergências, manifesto desde já um completo respeito pelas considerações do seu autor.

Nesse texto apontam-se duas situações:
A mais comum é a Câmara não saber nem ter que saber se existem ou não condições de habitabilidade. Isto porque à Conservatória, como refere o DL referido pelo Daniel, basta a a licença de utilização existente.

A licença de utilização tem uma validade de oito anos. Isto significa que, nos casos em que a sua apresentação é obrigatória no acto da escritura e esta perdeu validade, tem de ser pedida nova licença no seu município, sendo emitida após vistoria ao imóvel.

A outra situação, que pode levantar as questões que ocupam o Daniel, é ser efectuada, após a transmissão do imóvel uma vistoria camarária, nos termos e para os efeitos dos artigos 89º e 90º do Decreto-Lei n.º 177/2001, de 4 de Junho que aprovou o Regime Jurídico Urbanização e Edificação, que conclua pela não habitabilidade do edifício, podendo, neste caso a Câmara obrigar a obras coercivas.

Nesta última hipótese já não estaríamos no caso referido pelo Daniel, pois o vendedor que não tinha dinheiro teria, afinal, conseguido operar a venda. Seria o comprador a arcar com as despesas. Ainda assim estas poderiam ser evitadas se o comprador invocasse que não pretendia o imóvel para habitação (pelo menos naquele momento) e o mesmo não oferecesse perigo para a saúde pública.

O problema que exponho remete-se às situações anteriores à transmissão do imóvel por impedimento legal. Ainda assim, referir que o município pode obrigar a obras coercivas é uma visão algo cor-de-rosa da acção municipal. Basta ver os centros históricos das cidades do país. As câmaras actuam pontualmente em casos de risco de ruína ou situações mediáticas, mas essa acção é quase sempre a excepção e nunca a regra.

Mais longe do que isto não poderá ir a lei. Nem deverá. A exigência de uma licença de utilização faz sentido mesmo em alguns casos que estariam abrangidos pelo exemplo do Daniel. É que o intuito da licença de utilização, como bem refere, é de garantia do interesse público, como sejam a salubridade, a saúde pública, a segurança, etc. Por essa razão, mesmo que dois particulares, no exercício da sua autonomia privada, decidam comprar e vender ruínas, deve o Estado, se necessário, poder impedir, controlar ou minimizar, os efeitos nefastos que tal compra e venda possam gerar para os restantes habitantes.

Falei em ruínas como podia falar de um imóvel com uma simples degradação do telhado ou falta de caixilharias nos vãos. Situações que acontecem em edifícios com algumas décadas mas que não estão isentos de licença.
Existe aqui um problema grave entre o princípio e a prática. Podemos dizer que o intuito da licença de utilização é de garantia do interesse público. Sem dúvida, mas se a sua falta inviabiliza a transmissão de imóveis, impedindo-os de regressar ao mercado para as mãos de proprietários interessados em recuperá-los, que interesse público estamos a servir. Existe aqui um grave preconceito, ao defender que o Estado deve poder impedir a compra/venda entre dois particulares, como se a sua acção pudesse ser uma espécie de atentado com efeitos nefastos (...) para os restantes habitantes. É que aqueles particulares que compram casas com o intuito de recuperá-las, muitas vezes com os seus capitais próprios e sem apoio do Estado, também realizam uma acção de indiscutível interesse público.

Creio que o Daniel estaria a pensar numa situação em que a compra e venda não lesasse ninguém. Mas nesses casos dificilmente poderá a lei ser utilizada para impedir a compra e venda ou permitir obras coercivas. O que, em certos casos, pode ser negativo, pois significa propriedade ao abandono num país em que a Constituição postula a propriedade com fim social. E não completamente egoístico (num sentido mais liberal do termo).

O que digo, e reafirmo, é que a actual lei impede em muitos casos a compra e venda de imóveis degradados, negando-lhes a possibilidade de regressar ao mercado onde potenciais compradores poderiam promover a sua recuperação. Em discussão com colegas, várias vezes concluímos que parece faltar uma “licença de não utilização”, ou seja, um atestado de que o imóvel, não sendo clandestino, não reúne condições de utilização nos termos legais. Esta declaração deveria ser emitida, em substituição da licença de utilização, apenas para efeito de uma escritura específica sendo passada ao comprador e não ao vendedor. Deste modo, o comprador do imóvel não poderia afirmar posteriormente desconhecer o estado do imóvel que se propunha comprar.

Todo este vazio jurídico é, a meu ver, não apenas uma falha da lei mas também um erro grave que vai conta a nossa Constituição que diz no seu artigo 62º, o seguinte:

A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.

3 comentários:

  1. Ainda estou a aguardar o resumo da opinião de um jurista sobre esta matéria.

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  2. Caro colega

    Pelas opiniões que recebi parece ser fundamental distinguir entre questões substanciais referentes à habitabilidade ou à falta de habitabilidade dos prédios urbanos, e questões formais que se prendem, tão somente, com os requisitos legais sobre a transmissão dos mesmos prédios urbanos.
    Estas são questões com sedes diferentes e com tratamentos diferentes.
    Naturalmente que seria desejável que as mesmas tivessem uma interligação, mas parece que, de facto, as preocupações legais com a transmissão de prédios urbanos pouco tem a ver com as preocupações dos técnicos envolvidos em matéria de condições de habitabilidade, como a salubridade e a estabilidade, entre outras.

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  3. Eu até me atreveria a tentar deslindar os nós da legislação que estão na base desta discussão. Acontece que conheço o suficente deste país para facilmente concordar com a posição do Daniel. Olhem para o país! - será porventura um bom barómetro para aferir a eficiencia das leis - Os núcleos urbanos estão podres equanto florescem empreendimentos nos arrabaldes. Não será culpa exclusiva deste hiato legislativo, nem do aparecimento tardio e desajustado dos PDMs mas de todo o enquadramento legal que dá corpo à nossa sociedade.

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