Tenho aprendido a evitar essa tentação da escrita blog que resulta na ruminação sobre o “tema do momento”. Como abordar questões polémicas da actualidade sem cair no comentarismo mais simplista? Como introduzir uma perspectiva mais vasta para buscar o esclarecimento profundo das coisas, para lá da mera aparência. É uma arte que reconheço a poucos, como na lucidez crítica de João Lopes no excelente Sound+Vision. Um blog que questiona a cultura da imagem, desconstruindo sentidos e simulacros da sua própria representação mediática.
Aproveitando o recente episódio da gaffe de Manuela Ferreira Leite, João Lopes desmonta o sentido perverso da linguagem política, hoje codificada segundo critérios altamente profissionalizados. O discurso político vive hoje refém das lógicas da comunicação, sobrepondo-se à sua substância o efeito de percepção sobre o público-alvo, a que se pretende agradar e, ultimamente, conquistar.
A cadeia de reacções previsíveis à declaração de Manuela Ferreira Leite oferece-nos um conjunto de sintomas bem entranhados na nossa vida democrática. Que muita da discussão política assenta hoje na anulação do outro, no jogo voluntário da presunção de nulidade daquilo que se nos opõe. À inépcia retórica de Ferreira Leite soma-se um efeito de interpretação assassina, opaca sobre os seus eventuais sentidos.
É uma patologia cultural que tomou conta do debate em política – em jornalismo, em blogs, etc. – e da qual resulta a anulação de toda a possibilidade de diálogo. Ferreira Leite é vítima do mesmo veneno que tem corroído dirigentes partidários atrás de si e ao qual ela não será igualmente alheia, na sua actuação enquanto interveniente na imprensa escrita.
Este jogo de simplificação, de redução da realidade à expressão mais unidimensional dos factos, parece transformar aquilo que é complexo numa equação de uma única variável: veja-se, a título de exemplo, a recente abordagem ao problema da longevidade do desemprego centrada no argumento único da “generosidade” do actual regime do subsídio de desemprego. O problema é, como qualquer um compreenderá, certamente mais complexo, mas discute-se assim em praça pública como se da manipulação de um único factor pudesse advir a sua resolução. E no entanto, apesar do absurdo dos termos do debate, a opinião pública continua afável ao discurso político assente na solução que dá para tudo – subir impostos, baixar impostos, fazer obra, avaliar – em vez de investir numa consciência crítica mais exigente e lúcida quanto à complexidade dos problemas e, necessariamente, das suas soluções.
Da exposição atabalhoada de Manuela Ferreira Leite fica uma interrogação que, lamentavelmente, não chegará a ser discutida. Se sabemos nós, portugueses, viver em Democracia? Se depois de trinta anos de vida democrática nos encontraremos dependentes de um qualquer déspota iluminado, para viabilizar à força a introdução de reformas urgentes e necessárias? É um cenário evidentemente retórico, indesejável e, felizmente, inviável, mas sobre o qual devíamos reflectir. Porque se o despotismo é inaceitável em democracia, é igualmente inaceitável o vigor corporativista que assume o atrito institucional como a sua missão principal, e que tanto nos aproxima de regimes passados - que todos afirmam censurar, mas parecem empenhados em praticar.
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