A Casa da Crise revista

Será justo dizer, numa perspectiva mais assertiva, que o exercício lançado pelo Expresso a Souto Moura tinha tudo para ser um contributo positivo a uma reflexão sobre modelos alternativos de “habitar”. É possível conceber novas tipologias de casa, de custos contidos, sem comprometer a necessidade de prover uma experiência maior da arquitectura e da vida? Era esta, afinal, a essência do desafio a que pretendia responder a Casa da Crise. O resultado é, por isso, tanto mais confrangedor quanto mais se procura revestir de realismo. As palavras não batem com o objecto, resultando do trabalho jornalístico uma mensagem condenada a vender gato por lebre. Porquê?

Em primeiro lugar por um problema de contexto. A especificidade do local fere à nascença a replicabilidade do exercício que se pretende exemplar. A casa de sonho desta família de classe média é afinal uma casa de sonho de Souto Moura enquanto projectista. Fica a sensação de estarmos perante um objecto que materializa uma vontade do arquitecto em se debruçar sobre questões muito particulares: da relação com o rio à implantação difícil, do acesso pelo nível superior à casa que descende ao nível da margem. O encaixe destes factores de projecto nos limites orçamentais do programa resultam numa casa espartilhada a áreas mínimas, em que cada compartimento equivale a um piso.

Segundo problema: densidade e altura são coisas diferentes. Uma casa de quatro pisos produz rácios negativos sobre vários parâmetros. Uma simples análise comparativa com uma tipologia compacta de dois pisos permite ver que a Casa no Rio Mau motiva um aumento de superfície de fachada de 30%. Mesmo considerando a área de cobertura, esse aumento é ainda assim de 15%. Pior, a área gasta em acessos verticais (escada e área de circulação imediatamente contígua) é quatro vezes superior, resultando num decréscimo de área de 17% (áreas brutas; se o termo de comparação fosse área útil, a percentagem seria ainda maior). Na prática, estamos perante ao equivalente a mais um quarto ou a uma sala com o dobro do tamanho.



Análise comparativa da Casa da Crise e de uma tipologia de referência com dois pisos.

Estes dados têm como consequência um inevitável aumento orçamental, ou seja, a perda de verbas para investir na qualificação daquilo que importa: os espaços e as funções que lhe devem estar presentes. De resto é difícil acreditar nos dados apresentados no projecto, com custos estruturais arredondados de €26.450 (betão) e €30.500 (térmicos? – presumo destinados a tratamento de fachadas e isolamento de cobertura). Principalmente perante um objecto com paramentos em betão e 5 lanços de escada maciça – veja-se o projecto com atenção.

A grande questão, porém, não se coloca ao nível das deficiências da peça em si. O que é questionável é o modo como perante este desafio se nos apresenta uma habitação tipologicamente ultra-convencional. Se entendermos que uma casa se resume a uma sala de estar, apoio de cozinha, quartos e instalações sanitárias, pois bem. É uma casa. Fora disso, nada mais há senão um formalismo reconhecível e a interminável vista de rio. Fica o desalento de estarmos perante uma oportunidade perdida para comunicar com o grande público modos diferentes de habitar e de viver a casa e a família. De pensar economia de desenho, racionalidade na aplicação dos meios materiais, obtendo mais qualidade com menos material de luxo e, em contrapartida, mais design – ou seja, mais funções de espaço, mais oportunidades para o convívio, para a interacção, para a vida. Desafios que não são respondidos com uma tipologia T3 dos anos setenta, apenas porque se nos é revelada como um harmónio de quatro pisos.

Se o exercício da Casa da Crise do Expresso resulta, em si mesmo, pouco consequente, não deixa de ser um fracasso enquanto oportunidade de sensibilização do público para os méritos da arquitectura. É pena.


FAR frohn&rojas: Wall House.


Kraus Schonberg: House W.


Moomoo Architects: I House.


Bevk Perovic: House R.

8 comentários:

  1. O estudo apresentado parece-me bastante credível e acertado. Contudo é um exercício meramente teórico, não tendo em conta questões essenciais como a implantação.

    Os exemplos apresentados como alternativa parecem-me, no entanto bastante desadequados à realidade construtiva e económica do país. São os exemplos típicos apresentados pelas revistas (de e para arquitectos) em países em que o custo médio de construção é o dobro de Portugal. Em que a repercussão da mão-de-obra no preço por m2 de construção é muito superior ao do nosso país (facto que justifica a utilização de sistemas pré-fabricados e industrializados). Quase que me atreveria a dizer que qualquer destas alternativas se revelaria mais cara que a casa proposta pelo Souto.

    Além do mais apresentam soluções, tal como a casa do Souto, que nada têm a ver com o custo:
    -envolver todo um edifício com uma pele têxtil não me parece a opção mais económica para a resolução do controlo solar de um edifício;
    -utilizar o mesmo material na fachada e na cobertura em nada ajuda a utilização óptima dos materiais;
    -criar a ilusão de uma fachada suspensa sobre um paramento de vidro parece-me estar nas antípodas da utilização óptima dos recursos projectuais e construtivos numa casa "low-cost".

    A Arquitectura situa-se mais além de questões estritamente económicas e técnicas. Situa-se mais no âmbito perverso do desejo. Na capacidade de gerar um produto que desperte a vontade de um indivíduo gastar mais dinheiro na sua aquisição ou aluguer. Afinal não é este o principio básico do sistema Capitalista?

    A economia transforma-se assim numa dicotomia entre meios e efeitos, situada no domínio da pura subjectividade, mas que englobam sem qualquer dúvida as questões do custo puro e duro da construção.

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  2. Os exemplos que deixei, mesmo sem qualquer introdução, não pretendem ser alternativas literais ao programa da casa para a crise. São no entanto modelos exploratórios de formas alternativas de pensar “a casa”. E são acima de tudo projectos de arquitectura destinados a fazer pensar, o que deveria ser também o objectivo deste desafio lançado pelo Expresso.
    Não me irei alongar sobre questões do domínio de opinião, naturalmente tão respeitáveis quanto as minhas. Creio no entanto que parte da argumentação peca por falta de rigor. O caso em que mais se debruçou, da Wall House, é o mais exemplificativo. Não creio que o Chile seja um país em que o preço de construção seja “muito superior ao do nosso país”. E independentemente das particularidades próprias desse projecto, destinado a uma realidade construtiva e um contexto ambiental diferentes, o que dele nos fica é um exercício de articulação de diferentes componentes materiais para dar origem a um objecto versátil e capaz de responder a uma vivência diversa de modelos convencionais ou comercialmente tipificados de habitação.
    A Casa para a Crise poderia ser programa disso mesmo, uma oportunidade para subverter o conceito tradicional de uma casa de família e assim gerar um objecto inovador, versátil, económico. Que, de igual forma, fizesse pensar sobre os modos como habitamos e como poderíamos habitar. É isso que neste caso se perdeu.

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  3. Eu referi-me de igual maneira em relação a outros dois projectos.
    No entanto, gostaria de acrescentar que a Wall House não é aquilo a que se possa chamar arquitectura barata. Trata-se de um projecto de habitação unifamiliar singular e experimental, seguramente para clientes de um extracto socio-cultural elevado (com tudo o que isso implica na realidade de disparidades sociais da América Latina). Veja-se como modo de comparação o projecto de habitação social para o mesmo país Quinta Monroy de Alejandro Aravena.

    Acrescento ainda que o meu comentário se refere a uma avaliação dos projecto tendo em conta a questão da economia de projecto em tempos de crise. Nunca quis apresentar a minha opinião sobre as qualidades arquitectónicas gerais do projecto.

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  4. A ideia dum "Casa da Crise" encomendada a um arquitecto como Souto Moura é, à partida, um contrasenso. Souto Moura não é conhecido pela economia dos seus projectos ou pelo rigoroso cumprimento de constrangimentos programáticos.
    A iniciativa do Expresso estava, por isso, condenada a um fracasso constrangedor. A publicação deveria ter dirigido o convite a outro arquitecto e/ou o próprio Souto Moura deveria ter declarado a sua indisponibilidade para um exercício desta natureza.
    Prestou-se um mau serviço ao exercício da profissão, na minha modestíssima opinião.

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  5. Eu a pensar que o Arqº Souto Moura tinha feito esta nova forma de ver a casa (a planta parece o "alçadito" tradicional da "Casa Tipo Maison") como uma resposta irónica à proposta do Expresso, que desilusão...

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  6. Tenho imenso respeito e consideração por ESM, mas todos (incluindo ele) devem saber ter a humildade de se absterem de fazer aquilo que não sabem fazer. Ele já mostrou saber fazer muito, e bem. Mas pelo que agora nos mostrou não sabe fazer isto, ou não quis. Desperdiçou-se uma oportunidade de, através de um grande nome, mostrar ao grande público que os arquitectos sabem trabalhar com poucos meios. É pena, podia ter passado a vez a outros. Não admira que, quando há crises, ninguém se lembre de nós - um colega italiano me mostrava, desolado, as casas que se estavam a construir em L'Áquila, sem que os arquitectos tivessem sido ouvidos, ao ver este projecto percebo porquê.

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  7. Meu caro Sr.Arqº ESM: da próxima vez tente lá por favor fazer "em" Rio Mau uma casita politica e ecológicamente correcta , que seja do agrado geral dos jovens profissionais, e sff não se esqueça de lhe meter aquele seu "je ne sais quoi" modernaço. Ps. Para agravar este caso de incúria ambiental anteprojectado para Penafiel, veja só a quantidade de CO2 que tantos comentários de pesar e desagrado juntos já emitiram para a atmosfera. Por favor Sr. Arqº, pense nisso quando vir na tv aquele pedaço de antárctida atracar numa praia da Nova Zelândia. Cumprimentos.

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  8. Ainda bem que a arquitectura não se resume ao política, ecológica e economicamente correcto. A casa do polímico Sr. ESM serve justamente para prová-lo.
    O próprio Souto, numa entrevista recente fez questão de salientar que "Todo o arquitecto medíocre recorre sempre a um factor.
    (...)Chama-se a isto na psiquiatria a sublimação." Ou seja, um bom arquitecto não precisa de entrar em histeria com a sustentabilidade, a ecologia, a economia por não ter necessidade de se escudar nisso para justificar as suas propostas. Implicitamente isso reflecte-se no seu trabalho, porque está claro que são aspectos que sempre integraram a disciplina da arquitectura ao longo da história da humanidade.
    A arquitectura é sempre contextualista e integradora, aspirando consciente ou inconscientemente à transcendência e a uma supostamente ética vontade de oferecer qualidade de vida aos cidadãos.
    Não pode, por isso, reduzir-se a um modelo "crise" falacioso, centrado apenas no custo da construção.Os modelos abstractos e desterritorializados pouco mais servem que para estudos académicos.
    Os próprios economistas tornam-se por vezes redutores, com o objectivo de defenderem as suas teses e números. Como exemplo, refiro um projecto no qual trabalhei, de grande escala, em que a empresa que faz o estudo de viabilidade decide encolher o orçamento suprimindo um piso de estacionamento, sem ter a mais pequena ideia das implicações que isso poderia ter na implantação, estrutura, instalações, paisagismo, etc.
    O projecto do ESM tem um terreno específico, e um contexto urbano/paisagístico/social. Isto para um arquitecto tem implicações.
    Além disso, a crítica que se faz à segregação do espaço, pessoalizando e exemplificando com os vários membros da família parece-me pertinente embora indicie uma certa vontade de engenharia social. No entanto, também é oportuno tentar imaginar a mesma família a viver num "open-space", com o filho a jogar CounterStrike ao lado do pai a ver o Benfica e da filha a tocar violino. Aparentemente, a tipologia de habitação unifamiliar pode ser muito dada a experimentalismos, e não temos que viver como manda a Carta de Atenas porque não somos autómatos, mas tem que haver sempre uma articulação harmoniosa entre espaços públicos e privados, na qual os elementos de uma família têm espaço para estar juntos ou separados se assim o desejarem.
    Além disso, é sempre imprevisível a ocupação do espaço pelos seus utilizadores. Imprevisível mas também uma forma de dar continuidade aos projectos, pois a ocupação faz da arquitectura de revista, arquitectura evolutiva.Não a desvirtua, revela-a e prova a sua capacidade de simbiose com o uso, ou com diversos usos.
    Regra geral, em habitação, isso consegue-se com poder de observação e experiência, e não com uma vontade irreprimível de ser diferente, novo, giro, verde ou panfletário.

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