O pombal do Rio Mau


Souto Moura visivelmente entusiasmado com o desafio lançado pelo Semanário Expresso para desenhar uma Casa para a Crise. O seu entusiasmo é contagiante.

Ver: Souto Moura projecta casa barata encomendada pelo Expresso (vídeo); Como Souto Moura projectou a casa para a crise (imagens).

«Na curva do rio desagua o sonho.» Com estas palavras começa o texto de Valdemar Cruz onde se apresenta a Casa da Crise, resultado do desafio estimulante do Expresso lançado ao arquitecto Souto Moura. O artigo é comovente e a casa também, a ponto de eu próprio ter ido às lágrimas.
O programa de projecto, definido pelo próprio semanário, estabelece como destinatários «um casal da classe média, ele professor, ela técnica de informática, com dois filhos, um rapaz de 8 anos e uma rapariga de 10 anos», auferindo um rendimento anual de €39.200 – o que me deixou já a ponderar a hipótese de ir eu também dar aulas para o Porto e montar computadores nas horas vagas. Gente do povo, pois então, como se pode aferir pelo Audi A3 estacionado na planta de cobertura. O casal, que doravante denominaremos como os Gomes (assim nos indica o artigo), são gente simples mas esclarecida. Em vez de comprar um apartamento anónimo nos subúrbios, os Gomes ficaram entusiasmados com a leitura do guia Trabalhar com um Arquitecto e assim decidiram recorrer aos serviços de um técnico devidamente avalizado para a tarefa. Souto Moura reservou para eles um singelo quadriplex junto às margens do Douro, para deleite da vizinhança.



Para captar a vista da sala de estar o fotógrafo muniu-se de uma grande angular e sentou-se dentro do lava-loiças. O quadro de Picasso foi gentilmente cedido pelo Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia.

Alguns – não eu, entenda-se – poderão dizer que o problema da casa da crise de Souto Moura é ser uma casa de Souto Moura. Maldosos. Trata-se afinal de uma casa muito para além da crise económica, antes destinada a uma verdadeira crise de espírito. Os Gomes passam a beneficiar de uma bela sala com kitchenette, embelezada por uma gloriosa vista de rio que só é disputada pelo garboso flat-screen que adorna a parede contígua. Nos pisos inferiores, respectivamente o -2, -3 e -4, ficam os quartos, cada um servido por instalação sanitária. No vídeo, o jovem arquitecto Sérgio Koch explica-nos que também aí os residentes poderão usufruir das janelas voltadas a poente, voltando a poder olhar o rio no percurso que dista entre a loiça sanitária e o lava-mãos.
A habitação está dotada de um poço preparado para a instalação de um elevador, cumprindo assim com os requisitos do disposto no Decreto-Lei n.º 163/2006 de 8 de Agosto, e que também se pode vir a revelar muito útil não vá alguém lembrar-se de tropeçar por aquelas escadas abaixo. Entretanto, enquanto o infortúnio não acontece, a Dona Joana Gomes poderá montar um cesto com corda e fazer descer a roupa suja até ao piso inferior, acedendo ao estendal situado no logradouro.
É sempre salutar ver os arquitectos imbuídos deste espírito de serviço público, ajudando gente bem real como o Alfredo e a Joana. Já aos filhos não lhes auguro nada de bom. Chegados à adolescência, o pequeno Adriano irá refugiar-se no seu quarto jogando sessões intermináveis de Counter-Strike, enquanto a frágil Matilde fugirá com o filho do vizinho para França onde poderá auferir um rendimento superior ao dos pais com a experiência adquirida a lavar escadas lá em casa. Se antes disso não se lançar ao rio.

10 comentários:

  1. eh eh eh! a sério! o melhor é rir, mesmo!

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  2. O teu texto está muito divertido e partilho da crítica à caracterização da família Gomes, mas não partilho a crítica ao projecto.
    Eu não tenho esse ódio às escadas que muitos arquitectos portugueses parecem ter. Pessoalmente, gosto de escadas. De resto, uma casa com vários pisos tem um factor de forma favorável à eficiência energética.
    Eu sempre gostei daquele projecto do Álvaro Siza Vieira júnior, que está cheio de escadas e muita gente o criticou por achar aquela casa inabitável.
    Penso que viveria com muito mais gosto neste "pombal", como lhe chamas, do que num apartamento anónimo em Vila Nova de Gaia.
    Tenho uma irmã que morou em Lille numa casa antiga, com 4 pisos. Todas as casas daquela zona são assim e não me perturba nada. Naquele caso são antigas e não têm nem terão elevador.
    Também as casas de Peter Harnden e Lanfranco Bombelli, em Cadaqués, são frequentemente cheias de escadas, com vários pisos e vazios de uns para os outros. Acho aquilo belíssimo.
    No caso do pombal do Souto Moura, eu ter-lhe-ia pedido algumas zonas de duplo ou triplo pé direito, a ligarem os vários pisos. Facilitava a ventilação natural e torna os espaços menos estanques e mais próximos.
    É a minha opinião.
    Um abraço.
    ZM

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  3. Boa.Já faziam aqui falta mais textos deste tipo para servirem de "abre-olhos".Tem este blog a menos o que o "Quando as Catedrais eram Brancas" tem demais.
    E não estou a fazer publicidade a nenhum.
    Um abraço

    JM

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  4. Está muito bem, sim senhor. A ironia é uma arma a usar com conta, peso e medida e, aqui, tudo bateu certo.

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  5. Concordo com tudo o que escreveu. Não me parece que o exercício tenha sido levado minimamente a sério.
    A arquitectura está demasiado intelectualizada e egocêntrica, parece que se basta e se justifica a si própria, mostrando indiferença (ou mesmo desprezo) por questões práticas tão prosaicas como as que descreveu. É pena, a arquitectura não ganha nada com isto perante a sociedade, reduzida que é a uma peça de "alta costura".
    Já agora um reparo: não é cumprido o 163/2006 - onde está o percusro acessível logo desde a chegada à casa? E a casa de banho com as peças todas e dimensão para a zona de manobra a 360º?...

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  6. Caio aqui de pára-quedas, empurrado por um link, e tropeço no texto de um arquitecto que se preocupa com questões práticas, além de ver um aborto onde está um aborto. Ó Amigo, quer dizer que ele há gente que vê as obras sem se impressionar com as assinaturas? Já estou a ver que o Amigo é do género que prova o vinho, faz o seu juizo, e vai ver o rótulo. Não é costume.

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  7. "Por doações de cavaleiros e donos das estirpes, já no século XII possuia aqui haveres o mosteiro de Paço de Sousa. Na composição de 1235, entre o abade e a mesa conventual, foi cedido à oficina dita de Santa Maria, “in Rivulo Malo, unum casale”.

    Em 1250, por comissão de D. Afonso III, os priores de Vila Boa de Quires e de Vilela e o juiz da terra de Aguiar deram sentença de não serem realengas as “herdades” do mosteiro em Rio Mau, adjudicando-as ao cavaleiro-fidalgo João Martins de Ataíde e seus irmãos e aos mosteiros de que eram herdeiros.

    Alguns dos haveres do de Paço de Sousa provinham de doação feita, em 1143, por D. Elvira Peres. O tal casal “in Rivulo Malo” foi por certo doado, em 1161, por D. Soeiro Pais. Parece que este casal se situava na Torre, como se vê de um documento de 1740 e de um emprazamento feito em 1600 a André Soares pelo convento.

    No princípio do século XIX, os habitantes do lugar de Rio Mau, separados do resto da freguesia pelo Douro, requerem à Coroa a inclusão de Rio Mau em Sebolido.

    Em 1911 já Rio Mau era o lugar mais povoado da freguesia (126 fogos, 505 habitantes).
    A principal actividade residia na pesca, que se fazia num vasto areal (hoje totalmente coberto pelas águas, por efeito da barragem de Crestuma-Lever), onde, desde Janeiro até fins de Maio, se empregavam mais de vinte barcos, à lampreia, ao sável, à tainha, ao mugem. A pescaria era feita com redes de arrastar. Nos restantes sete meses pescavam-se outras qualidades de peixe, agora com “travesilhos” ou à tarrafa (a que aqui chamam chumbeira).
    O peixe era vendido, algum para o Porto e a maior parte para as povoações rurais circunferentes.

    Rio Mau é a mais nova freguesia do concelho de Penafiel. Adquiriu autonomia em 1 de Janeiro de 1985. É hoje caracterizada pelo seu bairrismo dedicado à cultura e ao desporto."

    Estas citações são retirados do site da www.jf-riomau.pt Junta de Rio Mau (www.jf-riomau.pt)
    Pelos vistos não somos i/emigrantes nem muito menos casas pos 25 de abril ilegais.

    Penso que da proxima vez antes de abrir a boca e dizer asneira talvez fosse melhor saber do que esta a falar.

    vá fazer esses projectos muitos giros pro lado da casa da musica que aqui isso não pega

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  8. Caro Blogger,

    Acho que este palco de debate é realmente interessante, e acho que é sempre bom criticar ou expôr pontos negativos destes projectos;

    Contudo, não concordo com o tom de ódio/ironia exagerada do discurso (felizmente para a democracia, criticar dessa forma, ou criticar a critica, é uma liberdade de todos!);
    Não acho que essa ideia de "tipologia inovadora", na qual se encontrem "novos modos de viver", seja assim tão pertinente. A verdade é que a aioria da população não se identifica com uma estrutura flexivel do espaço, tipologias "diferentes".

    Ora, pelos exemplos que deste, essas 3 moradias unifamiliares estão construidas em paises nórdicos, nos quais a estrutura familiar e cultural é significativamente diferente; Alias, são projectos em terrenos planos, sem uma evolvente à qual o projecto deva responder.

    Quanto ás escadas, são uma resposta natura ao terreno! Não há como lhes fugir! (o elevador, para responder ao anónimo, pode pura e siplesmente sobressair na cobertura, e ser ele o hall de entrada!). Mas a verdade é que certos terrenos como estes, pura e smplesmente nunca deviam ter sido urbanizados (dificil acesso, riscos de cheias, proximidade das águas - contágios do rio, pendentes excessivas, etc..), contudo, o problema não é a construção per-se, é a qualidade generalizada da construção. Olhem para a Suiça, Holanda, Luxemburgo; a qualidade média, é muito superior á nossa!

    Ora, em Portugal há um Gravissimo problema de dizer mal, criticar, olhar para o lado negativo sem nunca, num discurso se encontrar algo de positivo (da conversa de café ao parlamento); É preciso é coragem para olhar para a envolvente e dizer: Aquilo é que é mau! Caracterisitico, sim, mas Mau! Uma construção caseira (nada contra quando em casos excepcionais, mas aquém da civilidade de um pais que se quer de primeiro mundo quando generalizada), com graves problemas de implantação, isolamentos e impermeabilizações (quem não vê as manchas negras, os raiados das massas de acentamento dos tijolos, sobe o reboco já embebido em humidade, sem qualquer manutenção.

    Tenhamos a coragem para dizer: A nossa construção e urbanização é MÁ, e enquanto não ambicionarmos a mais, e quisermos ser melhores, vivermos mais orgulhosos, nada vai mudar, e continuaremos num "ataque" ao mediatismo, em vez de atacar o real problema.

    Para mim o mérito deste projecto do Souto Moura, é o de pensar numa possível solução de qualidade para um problema real; os valores só são possíveis no Norte, onde o preço da construção ainda é significativmente mais baixo;
    Pode conter um excesso de desenho (apesar de pessoalente não achar, mas isso é subjectivo e pessoal), pode parecer um "nice", mas tem reflexão, tem qualidade quer de desenho quer de concepção constructiva.

    Espero que consigamos um dia parar de olhar para os umbigos, e sim, criticar à vontade, mas olhar para a "big picture". E nem tudo é mau no Souto Moura, nem tudo é bom.

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  9. Não há duvida, o Rei vai nu em Portugal. Ainda bem que existem pessoas com capacidade para raciocinar apesar da reputação dos autores, neste caso o Arq. Souto Moura.
    As afirmações de politicos e comentadores deveriam ser desmontadas da mesma forma, independentemente da sua reputação e curriculum.

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  10. Bom, provavelmente a ideia começou mal com as premissas que o jornal cedeu a este famoso arquitecto.

    No entanto concordo com este belo texto, aprofundada crítica e má arquitectura.

    è mesmo uma casa para a crise, e não para sairmos dela!

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